"1940 - 1941. Dez decisões que mudaram o mundo", por Ian Kershaw
"A Segunda Guerra Mundial remodelou de tal modo o século XX que seus efeitos repercutem até hoje".
Assim Kershaw abre seu livro. Gostei, copiei e colei. A frase, concisa, responde à pergunta recorrente de "porque tanto interesse por um conflito que aconteceu há sete décadas". Ora, por isso. Armas e manobras militares são um assunto enfadonho. Mas guerras fazem a História.
Talvez seja mesmo necessário conhecê-las.
"E essa guerra", diz Kershaw, "tomou forma em algumas escolhas fatídicas feitas pelos líderes das maiores potências do mundo em meros dezenoves meses, entre maio de 1940 e dezembro de 1941".
Quero ver então. O historiador diz que é mais fácil e conclusivo observar isto em perspectiva: "Quanto mais o século XX se aproximava de seu fim, mais se tornava evidente que seu período definidor havia sido o da Segunda Guerra Mundial".
Para não nos perdermos, vou continuar dando aspas ao autor, antes de avançarmos livro adentro.
"Evidentemente, a Primeira Guerra Mundial foi a 'catástrofe original'. Ela abalou regimes políticos (os impérios russo, austríaco e otomano desmoronaram quando ela surgiu), destruiu economias e deixou uma marca profunda nas mentalidades", explica. Claro como água. Didático.
E contrapõe: "Mas as sociedades e estruturas políticas altamente instáveis e voláteis que surgiram depois dela se revelaram de curta duração. O imenso custo social, econômico e político da carnificina de quatro anos aparentemente sem sentido implicou que uma nova grande conflagração não só era bastante provável como foi se tornando gradativamente inevitável."
Esta inevitabilidade leva o autor a arrematar que "a Segunda Guerra Mundial foi, de maneira óbvia, o assunto não resolvido da Primeira."
Pior - digo eu - que em maior escala. Tanto que, anos depois do seu início, Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha, exultou, ao saber do ataque japonês no Pacífico, em 7 de dezembro de 1941: "Esta guerra se transformou em uma guerra mundial, no sentido mais verdadeiro da palavra. De início pequenas, suas ondas agora abarcam todo o globo".
Não compartilho desta alegria escrota. Como disse, frotas e exércitos são menos interessantes do que a imensa maioria de assuntos. À guerra eu prefiro o futebol.
Mas a questão que não quer calar é que a civilização que eu dei de cara ao chegar no mundo havia sido determinada pelo que aconteceu meras duas décadas antes que eu nascesse. Daí meu natural interesse no tema.
E mais: o mundo desenhado por este evento era a maior reformulação geográfica e demográfica que o globo experimentou nos últimos séculos. Ter a percepção de que isso se passou e não se deixar atrair por este tsunami histórico era impossível evitar. Eu quero saber e livros como este me contam.
Isto posto, voltemos ao vai-da-valsa. A tese de Kershaw e os momentos cruciais que ele elegeu.
Das dez "decisões" dissecadas, três são tomadas em Berlim, duas em Washington e outras duas em Tóquio; ficando Londres, Moscou e Roma com uma cada uma. Cada "decisão" corresponde a um capítulo com, em média, sessenta páginas. Vamos dar uma destrinchada em cada um deles.
O primeiro dos dez capítulos trata da decisão da Grã-Bretanha de continuar em guerra contra os alemães. O momento não era nada promissor. A blitzkrieg lançada por Hitler contra Bélgica e França em 10 de maio de 1940 fez ruir as defesas francesas - como um dique de papelão à beira mar. A sólida Linha Maginot foi bestamente contornada. A invasão nazista através das Ardenas pegou os Aliados de calças curtas e em poucas semanas já não havia resistência possível.
O exército inglês no continente bateu em retirada e foi encurralado em um bolsão cercado de alemães por todos os lados na região de Dunquerque. No fim de maio, uma opção provável era a capitulação dos 300.000 rapazes ingleses, que se tornariam prisioneiros de guerra, e asseguraria a Europa inteira como uma conquista nazista - absolutamente livre de oponentes.
Uma alternativa à rendição só era cogitada porque, em Londres, no mesmo 10 de maio do ataque alemão, o governo britânico havia mudado de mãos. O Parlamento transferira a condução do país a um novo primeiro-ministro, o polêmico e controvertido Winston Churchill. Enquanto os gabinetes ingleses durante toda a década de 30 passaram pano na ascensão de Hitler, Churchill havia sempre se batido por um antagonismo irredutível contra a Alemanha nazista.
O cenário, ressalve-se, era bizarramente negativo para a Grã-Bretanha. Seu Exército inteiro quedara impotente - e sua existência estava por um fio. Pior, a própria ilha estava agora vulnerável a um desembarque alemão. A decisão de fazer a paz com Hitler era, diante disso, extremamente sedutora - perder-se-iam os anéis, mas conservar-se-iam os dedos. O ditado não existe à toa.
Churchill e mais uma meia-dúzia de políticos e militares integrantes do gabinete de guerra se reuniram ao longo da semana e, liderados pelo primeiro-ministro, foram contra a decisão mais óbvia e conservadora. Churchill obteve o consenso do seu núcleo duro para manter o país na guerra. Suicida ou heroica, é esta a primeira tomada de decisão que Kershaw esmiuça.
A segunda das decisões é, talvez, a mais contributiva para o rumo da guerra: aquela que motivou Hitler a atacar a União Soviética em junho de de 1941. A despeito do pacto de não agressão nazi-soviético assinado entre Molotov e Ribbentrop em agosto de 1939, a determinação da Alemanha nazista pelo ataque aos russos era apenas uma questão de quando - e não de se.
Mas por que os alemães invadiram a Rússia no instante em que já havia uma frente aberta, a oeste? Centenas de historiadores já puseram muita tinta no papel para explicar este que é considerado o erro capital de Hitler - e Kershaw, autor de uma das mais reputadas biografias do facínora, talvez esteja entre os mais qualificados para cravar uma resposta.
Longe de meramente atribuir a decisão à uma eventual inépcia de Hitler, o historiador, meticuloso, montou um amplo painel das opções então disponíveis para a evolução do esforço de guerra alemão. A estabilização do cenário no Leste e uma investida no Mediterrâneo era uma alternativa que agradava a muitos dos generais da Wehrmacht.
A complexa rede de interesses que encilhava a Itália de Mussolini, a Espanha de Franco e a França de Pétain, entretanto, esfaqueou no nascedouro as expectativas de Hitler. O avanço alemão teria que ser concatenado com as pretensões territoriais destes três aliados, que se sobrepunham entre si. O führer nunca foi um craque da diplomacia concessiva e não soube conciliar os interesses, o que inviabilizou a operação que teria Gibraltar como a cereja do bolo.
Por outro lado, a guerra no Leste era inevitável. Era não só o Lebesraum, o espaço almejado já nas páginas de Mein Kampf, escritas quase duas décadas antes, mas era também o bastião judaico- comunista. Quanto mais cedo fosse enfrentado, mais vulnerável sua capacidade de defesa estaria (e, lembrando, a Alemanha vinha se preparando há anos para esta guerra).
E, mais que isso, a resistência soviética era a última esperança dos ingleses por um oponente que fizesse frente aos nazistas em solo continental europeu. Hitler acreditava que os ingleses capitulariam se não houvesse mais esperança na capacidade russa de deter os alemães - e os Estados Unidos, por sua vez, recuariam caso as expectativas britânicas ruíssem.
Assim, derrotar os soviéticos em uma guerra curta, de dois a três meses, era a chave para a vitória decisiva. Havia riscos, decerto, mas Hitler nunca fôra um sujeito que fugira dos riscos. Marchara contra eles - e até aquele instante, as apostas haviam valido a pena.
Kershaw chega inclusive a elaborar um cenário alternativo, contemplando uma eventual opção nazista pelo Mediterrâneo. É o império do se, o qual, embora interessante como conjectura, não leva a nada como compreensão da história. Esta foi uma história que não houve.
O terceiro capítulo aborda as bases da formação do Japão imperialista do século XX, que iria resultar na posição de hostil beligerância aos ingleses e norte-americanos e no pacto Tripartite com alemães e italianos (decisões que, meses depois, levariam ao estapafúrdio ataque japonês à Pearl Harbour, tema do oitavo capítulo).
O autor descerra a cortina sobre as ambições crescentes do Exército japonês sobre a China, Manchúria e Coreia, incluindo a sinuca em que se viram os japoneses com a administração do território chinês e a (péssima) repercussão internacional daquele que ficou como conhecido como o "estupro de Nanquim".
Em meados dos anos 30, diante de uma irreversível carência de recursos minerais, o grande dilema auto-proposto pelo império japonês era se manter atado a uma subserviência sem fim aos Estados Unidos, de quem importavam um grande volume de matéria prima estratégica, ou aproveitar a nova ordem mundial que o nazismo estava implantando para dar início a uma política expansionista no Pacífico, tomando as colônias inglesas, francesas e holandesas e afrontando a política externa norte-americana.
A Marinha japonesa, conservadora, não acreditava que o Japão tivesse fôlego para um confronto de longo prazo contra os americanos. O Exército japonês via muitos ganhos em uma escalada armamentista e influenciou na formação de um gabinete propenso ao confronto militar. É o plantio e o adubo dessa semente o tema do terceiro capítulo.
O quarto viés observado é o italiano - a ascensão de Mussolini e suas pretensões imperialistas (de novo, mas não por acaso; o mundo da primeira metade do século XX ainda era dominado pela ideia de que a aquisição de territórios era a solução para as carências econômicas e o combustível da idolatria política). Mas, neste caso, o trágico ganhou contornos histriônicos.
Para nós, brasileiros na terceira década do terceiro milênio, um olhar sobre a Itália dos anos 20 e 30 é pedagógico - o atual presidente do país, Bolsonaro, é, vira e mexe, comparado a Hitler. O paralelo, se divertido, entretanto, é impróprio, pois o dito cujo está muito mais próximo da persona de Mussolini, um líder populista, de retórica incendiária e decisões estúpidas.
Ironias da história, o capo italiano Mussolini serviu no seu surgimento como espelho para um desconhecido candidato a político - Adolf Hitler, que nunca escondeu sua admiração pelo fascista. Quinze anos depois, com o antes pequenino Hitler no comando de uma Alemanha cada vez mais poderosa, era Mussolini o satélite secundário de uma relação capitaneada pelos alemães.
Voltando ao paralelo com o Brasil, onde o presidente citado dois parágrafos atrás chegou a ameaçar Biden e o império norte-americano com a nossa "pólvora" - risos -, Mussolini, enciumado pelo papel de coadjuvante na relação com Hitler, decidiu invadir a Grécia. Pior é que fez isso deliberadamente sem avisar o parceiro nazista, pois se sentia inferiorizado pelas ações individualistas do Reich. O previsível fracasso da invasão italiana é decupado por Kershaw, desde a sua gênese.
Foi uma situação vexatória - e descabida. A guerra em curso era uma guerra alemã, e aos alemães não convinha nenhuma perturbação nos Balcãs. O ataque italiano poderia provocar uma intervenção soviética em uma região considerada dentro da esfera de influência russa, ao norte, e também trazer os ingleses para a defesa naval das bases gregas, ao sul.
Como a Operação Barbarossa (a invasão da União Soviética) já estava pré-determinada no último quadrimestre de 1940, com uma eclosão provável na primavera de 1941, Hitler não queria mexer antes da hora neste vespeiro. Não contava, porém, com o ataque de pelanca da diva italiana, estressada com os fait accompli volta e meia enfiados goela abaixo do Duce pelos alemães.
O líder fascista também queria ter nas mãos as rédeas da História. Faltou combinar com os gregos.
Como é sabido, Hitler teve que vir em socorro dos fascistas, para salvar os italianos de uma derrota acachapante em uma ofensiva hilariamente mal-sucedida. Uma decisão isolada e intempestiva de Mussolini que custou a guerra no Mediterrâneo e certamente teve impacto no resultado final do conflito. Em suma, o mal ajambrado ataque italiano contribuiu para a futura derrota alemã. Antes assim.
A propósito, o próprio Hitler foi explícito em atribuir a culpa do seu fracasso na Rússia à sua intervenção na Grécia para ajudar a Itália. "Apesar das dificuldades criadas para nós pelos italianos e sua campanha idiota na Grécia", reproduz Kershaw um comentário de Hitler em fevereiro de 1945, "eu devia ter atacado a Rússia mais cedo".
"A campanha inútil na Grécia", continuou o Führer, em retrospecto, já com o Exército Vermelho às portas de Berlim, "nos compeliu, ao contrário dos nossos planos, a intervir nos Balcãs, o que por sua vez causou um atraso catastrófico no lançamento do nosso ataque à Rússia. Fomos compelidos", reitera, "a gastar algumas de nossas melhores divisões. E como resultado geral fomos obrigados a ocupar vastos territórios em que, não fosse por essa exigência estúpida, a presença de qualquer soldado teria sido absolutamente desnecessária".
Pois é. Não falta quem diga tratar-se de choro de perdedor. Mas tudo leva a crer que, pelo menos aqui, houve lucidez nesta avaliação posterior, e melancólica, de Hitler. O austríaco concluiu, fatalista: "Não damos sorte com raças latinas". Imagina o que ele diria dos brasileiros.
O quinto capítulo, o primeiro sobre a decisão americana de acenar positivamente para os ingleses, envereda mais pela política interna do país - e as dificuldades de Roosevelt em aprovar leis que aproximassem os Estados Unidos da guerra.
A passagem pelo congresso da lei do Lend-Lease - uma "sacada" que FDR teria tido enquanto pescava em um cruzeiro no Caribe, reza a lenda - é o ápice deste capítulo estratégico, mas morno.
Já o capítulo dedicado aos russos, o sexto, está entre os pontos altos da dissecação de Kershaw. Porque se propõe a trazer luz para a atitude de negação aparentemente inexplicável de Stalin: o que o levou a ignorar os repetidos e variados avisos de que os alemães atacariam a União Soviética.
Para entender melhor o que se passou, há que se voltar ao famigerado pacto de não-agressão entre Alemanha e União Soviética assinado em 1939. O acordo, que teve por resultado imediato a partilha da Polônia - um nação até então soberana - entre os dois países invasores, era estratégico.
Liberava os alemães para destroçarem a Polônia e, em seguida, invadirem Bélgica, França, Dinamarca e Noruega, sem se preocuparem com o seu flanco leste - a Rússia. Já esta, totalmente depauperada pelos expurgos stalinistas, incapaz de ameaçar e de sequer se defender, ganhava um precioso tempo para se rearmar e reorganizar seu exército.
Muitos conhecem esta história, mas talvez sem tanto acesso às suas minúcias. Stalin, que lêra Mein Kampf, jamais teve dúvidas de que um ataque alemão fosse questão de tempo; por outro lado, estava absolutamente convicto da sua capacidade quase telepática de interpretar o momento em que Hitler consideraria propício um ataque.
Seu pensamento era matematicamente simples. Hitler esperaria o instante adequado e não lutaria desnecessariamente em duas frentes. Isto significava que enquanto houvesse um conflito em andamento no Oeste, ele não dispararia o gatilho no Leste. Nos entrementes, Stalin armaria a União Soviética para o inevitável. Estaria razoavelmente preparado em 1942 e totalmente pronto em 1943.
É, mas para isso dar certo, o calendário alemão precisaria seguir a mesma programação.
Não seguiu. E houve sinais evidentes de que os alemães estavam se preparando para lançar uma ofensiva ainda em 1941. De todas as frentes possíveis e imagináveis chegavam mensagens denunciando as movimentações nazistas na fronteira. O próprio Exército Vermelho. Os espiões do NKVD. Diplomatas soviéticos. Diplomatas estrangeiros. Os serviços de inteligência britânico e norte-americano.
O embaixador soviético em Berlim, Vladimir Dekanozov, antigo oficial graduado do NKVD, recebeu uma carta anônima em 5 de dezembro de 1940, advertindo que Hitler "atacaria a União Soviética na primavera seguinte" (duas semanas e meia antes, em 18 de novembro, foi baixada a diretiva intitulada Operação Barbarossa, o plano alemão de ataque aos russos). Stalin recebeu o relatório sobre o documento em 5 de janeiro de 1941.
Stalin, entretanto, desprezou este e todos os outros avisos. O grande líder comunista acreditava que os fatos trazidos a ele desmentiam sua leitura das intenções de Hitler. E confiava mais no próprio diagnóstico. Ele sabia o que Hitler pensava e o que Hitler faria.
Stalin discutiu com seus comandantes Timochenko e Jukov, que defendiam uma organização defensiva mais intensa nas fronteiras: "Vocês precisam entender que a Alemanha nunca tomará a iniciativa de atacar a Rússia", teria dito Stalin. "Se provocarem os alemães na fronteira, se movimentarem tropas sem nossa permissão, cabeças vão rolar".
Conta Kershaw que o comandante do Exército Vermelho em Kiev, o general-de-brigada Kirponos, que escreveu a Stalin informando que mobilizara algumas unidades em posições defensivas mais favoráveis na fronteira, teve suas ordens anuladas.
"Hitler e seus generais não são estúpidos a ponto de combater em duas frentes ao mesmo tempo", Jukov teria ouvido pessoalmente de Stalin. "Foi o que quebrou o pescoço dos alemães na Primeira Guerra Mundial".
Dez dias antes do ataque alemão, em 12 de junho, com constantes informes de uma concentração de tropas da Wehrmacht, os comandantes soviéticos debatiam, visando que o exército russo fosse posto em estado de guerra. Stalin, mais uma vez, foi cortante: "Estou convencido de que Hitler não se arriscaria a criar uma segunda frente atacando a União Soviética".
"Hitler não é nenhum imbecil e sabe que a União Soviética não é a Polônia, nem a França, nem mesmo a Inglaterra", afirmou o primeiro-ministro soviético para os seus generais. Rejeitou peremptoriamente uma mobilização russa em direção às fronteiras ocidentais do seu próprio império: "Isso significaria guerra".
O próprio staff próximo a Stalin, zeloso em repercutir as opiniões do chefe, também não ajudava. O espião russo na embaixada alemã de Tóquio, o lendário Richard Sorge, o Ramzai, informara em 1o de junho que o ataque alemão se daria em duas semanas, em 15 de junho. Quando o telegrama de Sorge foi decodificado, porém, os russos anexaram um comentário depreciativo: "Suspeito. A incluir entre os telegramas mandados como provocação".
Ainda em 12 de junho, um informe chegava ao Ministério do Exterior e ao Comitê Central contabilizando um total de 2.080 violações da fronteira soviética por aviões alemães nos cinco meses anteriores, sendo 91 violações nos últimos dez dias. Os vôos invadiram até cem quilômetros território russo adentro. Um deles avançou 190 quilômetros e foi forçado a aterrissar. Constataram que o piloto tinha fotografias aéreas da Ucrânia.
Em 17 de junho, o espião alemão Schulze-Boysen (codinome "Starshina") informou que os preparativos foram concluídos e que o ataque viria a qualquer momento. Um agente soviético apurou que o embaixador italiano em Berlim fora informado que a invasão aconteceria entre 20 e 22 de junho. O espião alemão Rudolf Rössler (codinome "Lucy") estipulou que o ataque seria em 22 de junho e forneceu detalhes do plano operacional alemão.
Em 20 de junho, o agente soviético em Sófia informou a Moscou que o ataque aconteceria em 21 ou 22 de junho - conhecidos também como "amanhã" e "depois de amanhã". Em 21 de junho, ninguém menos que Mao Tsé-Tung enviou um telegrama ao secretário executivo do Komintern, Gueorgi Dimitrov, afirmando que a Alemanha atacaria naquele mesmo dia.
Dimitrov telefonou para Molotov, que respondeu que "tudo não passava de um jogo". O embaixador soviético em Berlim, Dekanozov, reiterou que a invasão começaria no dia seguinte. Béria e Stalin cogitaram punir o embaixador por semear desinformação.
Às oito da noite do dia 21 de junho, um desertor alemão, ex-comunista, chegou ao posto da fronteira ucraniana avisando que os alemães chegariam pela manhã. Pois o general Jukov ligou às 3h40 da manhã do dia 22 de junho para Stalin, comunicando um maciço ataque alemão em todas as regiões da frente ocidental. A guerra chegara.
"Stalin ficou sem fala ao receber a notícia. Jukov ouvia apenas suas respiração pesada pelo telefone. Stalin não deu qualquer ordem imediata de contramedidas a serem adotadas", revela Kershaw. Conta o historiador que às 5h45 da manhã o Politburo estava reunido no Kremlin. Stalin, ainda em negação, cogitava que o ataque poderia ser uma mera provocação. "Hitler simplesmente não está informado a respeito", aventou.
O comandante supremo da União Soviética não deu nenhuma ordem para que o Exército Vermelho entrasse em ação. Enquanto isso, você que me lê leve em conta que os alemães estão avançando território russo adentro, matando gente e queimando cidades.
Somente quando chegou a informação de que o embaixador alemão em Moscou comunicara que recebera um telegrama às 3h da manhã, com a declaração de guerra à União Soviética, caiu a ficha. "Stalin recebeu a notícia em silêncio. Parecia chocado, cansado e deprimido", narra o historiador.
Apenas ao meio-dia houve uma comunicação ao povo soviético - e não por Stalin, e sim por Molotov. Chamou a invasão de "um ato de traição sem equivalente na história dos países civilizados", mencionando a perda de duzentos homens.
Antes fosse. Na verdade, àquela altura, 1.200 aviões soviéticos já haviam sido perdidos e a frente alemã já estava às portas de Minsk, capital bielo-russa. Stalin considerou isso "inconcebível", caracterizou o ataque como "crime monstruoso" e anunciou, furioso, que "cabeças haveriam de rolar".
O que não faltou, a partir daí, foi cabeça rolando. Uma semana depois, a Wehrmacht já tinha 400 mil prisioneiros soviéticos em poder e já avançara 500 quilômetros em território russo. Stalin desapareceu por dois dias. Se retirou para sua dacha. Mais tarde, alegou que considerara que iriam destituí-lo.
Porém, por incrível que pareça, todos permaneceram ansiando por sua liderança. O mais desastroso dos equívocos de avaliação da História não teria nenhuma consequência.
Devido a esta lambança histórica monumental, me estendi. Peço desculpas por ter me alongado tanto. Mas não resisti em por em pixels a inacreditável escalada da negação das evidências. A maior enfiada de cabeça de avestruz que se tem notícia. Eu tinha que fazer um registro mais minucioso, pois não é todo mundo que conhece tintim por tintim como tudo se deu.
O capítulo seguinte, o sétimo, retorna aos Estados Unidos. Para compensar minha empolgação com o capítulo anterior, neste vou ser bem sucinto. Até porque é mesmo sem graça acompanhar o lento jogo de xadrez de Roosevelt, sempre pisando em ovos entre a opinião pública americana e a parte isolacionista do Congresso.
O presidente norte-americano estava intimamente comprometido com a guerra, mas não podia dar um passo em falso, nem se precipitar. Mesmo a tão ansiada escolta pedida pelos britânicos ainda não havia sido autorizada por ele, temeroso da reação interna que tal decisão pudesse provocar.
Imagine o leitor a dificuldade em conduzir a situação. Ao disputar sua terceira eleição (que ganhou), FDR se comprometera a "não enviar nossos garotos para a guerra". Mas, diante do avanço no cenário internacional, com a Grã-Bretanha isolada, era claro que, com o domínio da Europa assegurado pelos nazistas, um confronto com os alemães seria questão de tempo.
Urgia dar apoio aos britânicos, mas sem participar efetivamente de qualquer beligerância. A aprovação da Lei do Lend-Lease pôs a indústria americana a serviço dos ingleses e, em seguida, dos russos. Mas de que adiantava produzir e entregar armas aos navios aliados, se eles seriam postos a pique, com toda a sua carga valiosa, no meio do caminho?
Por outro lado, escoltá-los era quase uma garantia de confronto - o que significava entrar na guerra. Quem resolveu a questão para o presidente foi a ganância japonesa, tema do capítulo seguinte, o oitavo.
É também a continuação do primeiro capítulo dedicado aos japoneses, uma espécie de segundo tempo da mesma partida. Agora a escalada do Japão rumo ao ataque já está nos últimos degraus. Atacaram em Pearl Harbor, onde os americanos jamais imaginavam ser atacados. Mas era uma ofensiva insustentável a longo prazo, por sua falta de autonomia para permanecer no ataque - pois dependia do sucesso da ofensiva alemã na Europa.
Como uma nação do tamanho da do Japão bombardeia covardemente um colosso como os Estados Unidos, sem ter sido agredida e sem ter recursos para se defender e se manter no ataque? É o que Kershaw pacientemente destrincha para o leitor.
Para nós, olhando em retrospectiva, parece ter sido uma imbecilidade completa do governo japonês. Na verdade, não que não tenha sido; mas analisar a progressão histórica que levou a esta decisão nos faz compreender o que a princípio se mostra incompreensível.
Antes de mais nada, é preciso que olhemos o mundo com os olhos das primeiras décadas do século XX. As ambições eram sobretudo territorialistas. Países tornavam-se mais fortes e enriqueciam de forma correlata à extensão dos seus domínios (pelo menos, esta era filosofia dominante à época). Os japoneses queriam um status à altura das suas pretensões. Para tanto, precisavam de terra.
Como Kershaw didaticamente recupera, o "Incidente da Manchúria", em 1931, foi a primeira incursão bélica deste novo Japão com ares de potência. Alguns anos depois, os japoneses perpetraram o "Incidente da China". O que eles chamavam de "incidentes" eram invasões militares, com subjugação da população e centenas de milhares de mortes.
Houve a reação econômica e diplomática contrária da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, com forte interesse na região. Este antagonismo seria a escalada da crise, que redundaria na guerra. Para chegar lá, o Japão cometeu desatinos em sequência, porque se balizou pelo que acontecia na Europa.
A oportunidade de mercado provocada pela destruição nazista do status quo mundial era uma chance única para o delírio expansionista japonês. Tal e qual os alemães, os japoneses não se conformavam com a repartição do mundo feita pelo imperialismo britânico e desejavam uma redistribuição - que só poderia acontecer à base da força.
O passo-a-passo de como esta decisão catastrófica (não é uma figura de retórica, os japoneses bombardearam covardemente um território estrangeiro com o qual mantinham relações diplomáticas e, em represália, foram tragicamente destroçados) foi tomada é o que Kershaw nos explica, em detalhes - minuciosos até a medula.
Já o penúltimo capítulo aborda a decisão de Hitler de declarar guerra aos Estados Unidos. O contexto, à ocasião, era o seguinte: o andamento da invasão alemã na União Soviética era preocupante. As seis semanas previstas para a tomada de Moscou tinham sido um retumbante delírio nazista. A Wehrmacht estava atolada na lama e titiritando na neve.
Hitler ansiava por uma ação japonesa que aliviasse a pressão sobre as forças alemãs. A princípio, queria que os japoneses atacassem a Rússia. Agora torcia para que o Japão se direcionasse para o Sul, atacando as colônias britânicas na Ásia. Mas precisava que os japoneses fizessem alguma coisa.
Goebbels reclamava. "Tojo fala grosso, mas não atira", se queixava o ministro da Propaganda. Não obstante, a diplomacia nipônica sondava naquele instante os alemães, sobre se a Alemanha declararia guerra aos EUA, caso o Japão atacasse - é que o Pacto Tripartite não comprometia os alemães. O acordo funcionava apenas se um dos signatários fosse o agredido, não o agressor.
Os alemães estavam totalmente no escuro sobre os planos de ataque do Império do Sol Nascente. Quando, em 7 de dezembro, chegou a notícia do ataque a Pearl Harbor, Ribbentrop não acreditou e achou que era uma provocação inimiga. Confirmado, Goebbels ficou eufórico. Hitler idem.
"Se ganharmos esse confronto, então nada mais estará no caminho da realização do sonho de um poder alemão mundial", resumiu Goebbels.
"Não há como perdermos a guerra", avaliou Hitler. " Agora temos um aliado que nunca foi conquistado em três mil anos".
A razão de tanta comemoração era a certeza de que os americanos desviariam seus imensos recursos econômicos para sustentar a guerra no Pacífico - e, de lambuja, os ingleses também teriam que se virar para proteger suas possessões na região. Uma garantia de que a batalha do Atlântico seria ganha pelos alemães, que tiveram não só o seu inimigo enfraquecido, mas conquistaram liberdade de ação.
É que os ameaçadores submarinos alemães vinham sendo cerceados em sua movimentação no Atlântico, por orientação de Hitler, que não queria que um confronto com navios americanos precipitasse a entrada dos EUA na guerra. Porém, com o ataque japonês, estava tudo resolvido. Os americanos teriam que lutar do outro lado do mundo e os U-boats poderiam afundar navios à vontade.
Este cenário cor-de-rosa já entregava a Hitler tudo o que ele queria, sem que houvesse necessidade da Alemanha declarar guerra aos Estados Unidos. Este é o ponto-de-vista de Kershaw, que critica a decisão alemã de um anúncio formal de guerra, que teria apenas facilitado as coisas para Roosevelt, sempre tolhido pelo Congresso, pela opinião pública e pelos isolacionistas.
Afinal de contas, o Japão é o Japão e a Alemanha era a Alemanha.
O último dos capítulos versa sobre a guerra dentro da guerra: a guerra de Hitler contra a população judia europeia. Nada se compara a ela em bestialidade e despropósito: nunca o ser humano dizimou o próprio semelhante indefeso em uma escala de milhões.
E era uma guerra pautada exclusivamente pela obsessão do ocupante do poder e da posse da máquina de morte - não havia antagonismo nem beligerância real ou potencial. Era uma guerra contra uma população civil desarmada, composta em sua maioria por mulheres e crianças, cujo único resultado era o espólio bilionário. Um Estado que colocou por diretriz máxima o roubo e o assassinato.
E, como em um crime, o criminoso tenta ocultar o que fez, do planejamento à execução.
A ocultação das arbitrariedades contra os judeus vinha desde o princípio. Quando da repercussão mundial da ignominiosa Kristallnacht, em 1938, Hitler atribuiu os ataques coordenados em toda a Alemanha a uma ação espontânea da população. Se esta ação de Estado já foi camuflada, todas as demais seguintes também o foram, até o último instante.
Em todo o processo de extermínio dos judeus, a linha de comando se manteve verbal, dos pelotões de fuzilamento às câmaras de gás. Mesmo ao final, com a guerra perdida e a retirada alemã para posições mais a oeste, com a chegada dos russos, em 1945. A fuga incluía o desmonte dos campos de concentração e a queima dos cadáveres.
Não à toa, uma parcela considerável do discurso negacionista sobre o extermínio se concentra na ausência de ordens escritas. Naturalmente, por tratar-se de um crime de guerra, e não de uma ação de combate, houve, por parte dos criminosos, enorme cautela, evitando associar seus nomes às ordens.
Para evitar a existência de uma enorme papelada comprobatória dos crimes praticados contra a humanidade, uma cadeia verbal de comando partia de Hitler diretamente para Himmler, daí para Heydrich e deste para Eichmann - ressalvando que, quanto mais distante de Hitler estavam as ordens, mais ramificadas eram as subordinações e mais agentes estavam envolvidos.
Hitler manifestava sua vontade. Seus acólitos interpretavam esta "vontade" como um código e a partir daí davam prosseguimento aos processos de extermínio. Provas da matança eram trazidas à Hitler, cujo assentimento se traduzia por comentários, via de regra criminalizando as vítimas pelo seu próprio destino: "Quem destrói a vida se expõe a morte. E o que está acontecendo com eles não é nada além disso".
Se em 30 de janeiro de 1939, no seu discurso pelo sexto ano da sua chegada ao poder, Hitler havia feito uma "profecia", de que os judeus seriam aniquilados caso "provocassem" a guerra, em 12 de dezembro de 1941, ao anunciar que Alemanha declarava guerra à América, ele foi taxativo: "A guerra mundial chegou. A aniquilação dos judeus deve ser sua consequência necessária."
A guerra mundial a que ele se referiu começou aí, na mesma data em que a Alemanha perdeu a guerra. Porque a partir de então a configuração da guerra planetária opunha Alemanha, Japão e Itália contra Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha. Não havia maneira de nações já depauperadas pelo conflito (Alemanha e Itália) ou sem recursos para se manter nele (Japão) fazerem frente ao infinito estoque de reposição bélica (pelos norte-americanos) e soldados (pelos soviéticos) dos seus adversários.
E, lutando uma guerra perdida, só havia uma guerra que Hitler pudesse ganhar: aquela contra os judeus. A quem matou perversa e covardemente. Porém, ao fim de tudo, foi uma guerra que ele também perdeu. Hitler se matou, a Alemanha foi ocupada e os judeus sobreviveram, erguendo um Estado judaico após dois mil anos de diáspora.
É isto. As dez decisões amealhadas contam, indiretamente, mas com enorme propriedade, o que foram os seis anos de guerra. O que a provocou, como foi conduzida e como foi perdida. Todas as teorias estapafúrdias se resumem a conclusões erradas, que geraram atitudes ainda mais erradas.
E, se esta sucessão de decisões equivocadas - alemãs, italianas, japonesas -, foram determinantes para provocar e estender a guerra mundial, talvez nem fossem tão nebulosas, mostra o autor. O conceito de "despossuimento", suscitado brilhantemente por Kershaw, já nas páginas finais, nos permite vislumbrar a gênese das motivações para a Segunda Guerra Mundial.
"No fundo, os riscos colossais que tanto Alemanha quanto Japão se dispuseram a correr tinham suas raízes no entendimento das elites no poder dos dois países de que a expansão era imperativa para a aquisição de um Império e para superar seu status de nações percebidas como 'despossuídas", acredita o historiador, que afirma que "o domínio imperialista da Grã-Bretanha e o poder internacional (mesmo sem Império formal) dos Estados Unidos apresentavam o maior desafio. A necessidade de combater com a maior urgência possível a disparidade econômica crescente, muito especificamente em relação à força material cada vez maior dos Estados Unidos, que como o passar do tempo só poderia vir a desfavorecer as nações 'despossuídas', significava que a busca por território como base do poder nacional não podia ser adiada".
"Era essa a base de raciocínio, aceita pelas elites alemã e japonesa no poder, para correr riscos tão altos que punham em risco até mesmo a sobrevivência nacional. Analistas norte-americanos reconheciam que o domínio econômico da massa territorial eurasiana pela Alemanha e do Sudeste Asiático pelo Japão teria minado a posição dos Estados Unidos como potência mundial. Era certamente assim que pensavam Berlim e Tóquio."
A história da mãe de todas as guerras é a narrativa da ganância e da estupidez. Nada mais humano.
Companhia das Letras, 687 páginas (1a edição) 2008 | diversos tradutores | Copyright 2007
Título original: "Fateful choices - ten decisions that changed the world, 1940-1941"
P.S.: A qualidade do livro não merecia este post scriptum, mas a indigência da revisão não me dá alternativa. Há uma quantidade inaceitável de erros factuais nesta edição da Companhia das Letras. Um ou dois erros, em um livro histórico de gabarito, já seriam intoleráveis; quase meia-dúzia é uma falha que deprecia o departamento de revisão e retira a confiabilidade do conteúdo e também da editora.
Para registro e correção nas edições seguintes, listo:
1) A edição informa que o ataque japonês deixou quase 250 milhões de civis chineses mortos (as estimativas do lado agredido e do lado vitimado giram entre 50 a 300 mil). O erro é de no mínimo 249 milhões e 700 mil mortos a mais (página 136);
2) Informa que a União Soviética foi pega desprevenida pela invasão alemã de junho de 1940. Errado. Foi um ano depois, em junho de 1941 (página 306);
3) Informa que Roosevelt teria dito que o incidente com o Greer era parte de um sistemático ataque americano a navios americanos. Não procede. Inversão de lados. O ataque aventado era alemão (página 387);
4) Informa que o governo Roosevelt alertara os comboios britânicos quanto à presença de submarinos norte-americanos. Mais um erro grosseiro em uma inversão absurda. Os submarinos eram alemães (página 476);
5) Informa que após chegar ao poder, além dos fiéis ao partido, mais de 13 mil alemães agora apoiavam Hitler. A cifra é irrisória para a questão, que menciona o apoio de 850 mil membros e 1 milhão de soldados. Provável que fossem 13 milhões (página 523).
Põe mais atenção nesse serviço, revisão.
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