"22 dias", por David Downing

terça-feira, junho 28, 2022 Sidney Puterman


A proposta da qual parte o livro é engenhosa: apresentar, em simultaneidade, diferentes teatros de ação num dado momento específico da Segunda Guerra Mundial. Uma sequência ininterrupta de 22 dias. O clímax é o bombardeio japonês a Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941.

Apesar dos nomes lendários no comando da guerra, praticamente ninguém fica bem no livro. David Downing é um escritor experiente e habilidoso, mas pouco concessivo. Seu olhar sobre os homens que tomaram as decisões, em um contexto que se revelou determinante para o futuro do planeta, é ácido.

"É demasiada a deferência concedida por historiadores a líderes políticos e militares, a maioria dos quais alia inteligência mediana a doses acima da média de atributos humanos menos desejáveis."

Ele parece conhecer do riscado, mas, não obstante sua intimidade com o texto e com o tema, a tarefa a que se propôs não é fácil; e o resultado não é homogêneo. Downing selecionou para o guarda-corpo do seu salto triplo carpado sobre Pearl Harbour o frustrado sprint final dos boches rumo à Moscou e um confronto que se pretendia decisivo no deserto líbio entre o Eixo (alemães e italianos) e Aliados (britânicos, neozelandeses, indianos e sul-africanos).

Como contraponto aos embates, ele acompanha a escalada do extermínio, com os trens alemães despejando judeus no leste europeu para serem fuzilados nus e jogados, mortos ou não, em grandes crateras e cobertos com cal viva. Pilhas de cadáveres, regadas à munição contada e bebida à vontade para os atiradores. Era o início da política de extinção total dos judeus. O Holocausto.

O primeiro dos vinte e dois capítulos é intitulado "Quarta-feira, 15 de novembro de 1941" e daí eles seguem nominados como numa contagem regressiva. Com cada um deles tendo em média entre 15 e 20 páginas (com exceção do último, que supera a marca de 30 páginas), Downing vai narrando os preparativos para o ataque no Havaí em consonância com o mambembe avanço alemão na Rússia e o jogo de erros que se desenrolava na África.

A concepção é instigante, a construção é engenhosa, o nível de detalhamento é alto, mas por vezes a leitura é frustrante. E isto acontece por duas razões, contraditórias, mas encadeadas.

A primeira é que a espinha-dorsal que tensiona a narrativa são as idas e vindas diplomáticas que antecedem o ataque traiçoeiro dos japoneses a Pearl Harbour. Como pano de fundo, o comando militar da terra do Sol Nascente, que aposta alto em demasia numa estratégia bastante questionável.

Como coadjuvante - no livro, não na essência da guerra, pois o conflito europeu era o principal, e a Rússia foi o divisor de águas nesta história -, temos a queda de braço entre os generais alemães e Hitler. Os primeiros queriam seguir a lógica, o segundo seguia uma certeza mística (como sabemos, ia dar a lógica, como sói acontecer em 99% das vezes).

Em oposição à ofensiva cambaleante dos nazistas (que não tinham reposição para os soldados mortos e para os tanques perdidos, e não tinham sequer casacos apropriados para um frio de 35 graus negativos, ainda faltando meio mês para a chegada do inverno), os russos multiplicavam os ataques-surpresa, as ações de guerrilha e sabotagem, e tinham um contingente infinito de reposição de cadáveres-finalizados por cadáveres-em-andamento - além dos tanques T-34, milhares deles.

Assim, cada vez que o texto deriva de uma destas duas frentes e escorrega para as areias do deserto, onde a guerra se desdobra numa confusa mistura de cabra-cega com carrinhos de bate-bate, a impressão que temos é a de quem troca de canal de uma final de Copa do Mundo para um jogo da segunda divisão alagoana (ok, nós sabemos a importância estratégica do controle do norte africano e do Mediterrâneo para o futuro da guerra - mas a história é um thriller, não um livro contábil).

E, de tanto em tanto, como uma forma de enfatizar a bestialidade do invasor nazista, a narrativa retorna aos campos de extermínio em Riga, já com os experimentos dos caminhões fechados, com o cano de descarga voltado para dentro, asfixiando a carga humana trancafiada na traseira. 

Por isso, o roteiro escolhido por Downing dá facilmente margem à críticas, pela dificuldade em manter um padrão de concomitância e relevância entre as três frentes narradas em simultaneidade. Tirasse Downing do roteiro o teatro de operações na África, o livro ganharia em ritmo e densidade - mas fugiria ao engenhoso arcabouço imaginado - mais, digamos, "erudito" e autoral.

Nem estes poréns, contudo, tiram a graça da obra. À medida em que se aproxima o ataque japonês, a leitura ganha velocidade vertiginosa, e o quebra-cabeças estratégico envolvendo as principais nações do planeta é suficiente para dar ao leitor a noção da complexidade das decisões.

E que, em sua maioria, são, como bem diz o historiador, decisões erradas. Sempre mordaz, deslizando do sarcasmo ao cinismo, David Downing não poupa ninguém. Enumera os equívocos de interpretação e a hesitação dos líderes militares e políticos, não importa a nação.

O epílogo é ferino em sua síntese. 

"A história desses 22 dias dias é repleta de estupidez, incompetência, falta de visão e maldade em cargos elevados e extraordinariamente deficiente de sabedoria, competência simples, visão de futuro e empatia humana. Horas melhores eram escassas por ali."

Não obstante, seu encerramento passa a impressão de ser um livro melhor do que é; ainda assim, esta impressão final nos fica tatuada, convictos de termos acompanhado uma epopeia humana marcada por som e fúria -  parodiando o velho bardo inglês -, ainda que significando nada.

"Em dezembro de 1941, não havia esperança de inverter a maré; a guerra já estava ganha e perdida. Infelizmente, os seres humanos ainda teriam de ganhá-la e perdê-la. Dois terços dos aproximadamente 50 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial perderam a vida depois do ataque do Japão a Pearl Harbour."

O colossal ataque japonês ao porto havaiano foi extremamente bem-sucedido. E ainda assim, não serviu para nada que não fosse colocar o recalcitrante Estados Unidos na guerra. Hitler exultou, Mussolini exultou, Churchill exultou. Mas só este último estava certo em sua celebração.

O insubstituível primeiro-ministro inglês foi dormir na noite de 7 de dezembro com um único pensamento: "Ganhamos a guerra". E dormiu como um neném. Tinha razão em ter bons sonhos. Os japoneses fizeram em duas horas o que ele vinha tentando fazer, em vão, há dois anos: trazer a economia e as divisões norte-americanas para dentro da guerra mundial. 

Li este "22 dias" em dez. 

Editora Objetiva, 398 páginas | 1a edição, 2014 | Tradução Maria Beatriz de Medina | Copyright 2009

Título original: "Sealing their Fate: the Twenty-two days that Decided World War II"



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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