"Terras de sangue", por Timothy Snyder

segunda-feira, março 07, 2022 Sidney Puterman


A Ucrânia, historicamente, jamais foi um lugar fácil de se viver. Nunca bombou nos classificados de imóveis. Uma vastidão de terras férteis, esparsamente povoadas, cujos principais produtos - comida in natura e recursos minerais - foram sucessivamente desejados por muitas nações. A cobiça alheia, porém, fez da sua propalada fertilidade o inferno na terra.

Mas não só. Sua localização estratégica foi sempre determinante na ambição política dos impérios que a cercavam. Rússia, Prússia, Turquia, Alemanha e Áustria (além da Polônia, às vezes invasora, outras vezes aliada, mas geralmente também vítima) lhe cravaram os dentes vezes sem fim.

Se faltava quem biografasse as duas primeiras décadas da sua curta existência (o país data sua fundação de 1917, acabou de completar 100 anos), não falta mais. E não foi qualquer um. Foi o cara. O pensador. Porque existem grandes historiadores, especialistas em coletar e encadear fatos históricos, que são operários fundamentais para localizar, estocar e organizar conhecimento.

Mas existe também um outro tipo de estudioso, em número mais reduzido que o primeiro, especialista na interpretação da História. Timothy Snyder, o autor, pertence a este último grupo. E ter acesso ao seu trabalho sobre uma região tão conturbada já é meio caminho andado para penetrarmos no âmago da coisa.

"Hitler e Stalin subiram ao poder em Berlim e Moscou, mas suas visões de transformação diziam respeito a todas as terras intermediárias. Essas utopias de controle se sobrepuseram na Ucrânia", dispõe o historiador. Aponta que "para ambos, a Ucrânia era mais que uma fonte de alimentos. Era o lugar que lhes permitiria romper com as regras da economia tradicional, resgatar seus países da pobreza e isolamento, e reconstruir o continente à sua imagem".

"Em 1933, os ucranianos morreriam aos milhões, na maior fome induzida da história mundial", não deixa por menos o escritor, que considera que "começava aí a história especial da Ucrânia", preconizando: "e ainda estava longe de acabar". Porque um pouco mais à frente, em 1941, como ele frisa, "Hitler confiscaria a Ucrânia de Stalin e tentaria realizar a própria visão colonial".

Seu olhar sobre a Ucrânia recém-nascida - e não só ela, mas suas vizinhas Bielorrússia, Letônia, Lituânia e a já citada Polônia - demonstra que aquele pedaço do planeta nunca desfrutou de uma sina banal. Lá se sofre mais, a vida é mais difícil, morre-se com mais frequência e mais cedo se morre. Geralmente de morte matada.

Vem daí o título Terras de sangue.

A obra é fenomenal e merece ser lida por todo aquele que pretende ter uma compreensão do século XX e das suas consequências. Se não fala do agora (nem poderia, porque a atual Guerra da Ucrânia  começou semana passada e ainda está em curso), é um livro estupendo sobre dois dos eventos mais trágicos deliberadamente cometidos pelo ser humano em toda a História conhecida.

A fome provocada pelos soviéticos, seguida do extermínio perpetrado pelos alemães.

"A distinção entre campos de concentração e locais de extermínio não pode ser estabelecida com exatidão", explica Snyder, pois "as pessoas eram executadas e morriam de fome nos campos". Mas ressalta que a "a imensa maioria das vítimas tanto do regime alemão quanto soviético nunca viu um campo de concentração".

Em números, dos 14 milhões de civis e prisioneiros de guerra mortos nas terras de sangue entre 1933 e 1945, mais da metade morreu porque não tinha o que comer. Snyder assinala que "os europeus mataram intencionalmente de fome os europeus em quantidades horrendas na primeira metade do século XX".

E atente que, entre estes 14 milhões, assassinados em um período de doze anos, não havia um único soldado na ativa; eram mulheres, crianças e idosos. Nenhum deles carregava armas. E, como diz o autor, "estas pessoas foram vítimas de uma política assassina, não de contingências de guerra".

"O simples número de vítimas pode turvar nosso sentido de individualidade", adverte Snyder. "Eu gostaria de chamá-los todos pelo nome", lamenta a poeta russa Anna Ahklmatova em seu Réquiem, "mas levaram a lista e não há mais onde procurar".

Em 1933, nas principais cidades ucranianas - Kharkov, Kiev, Stalino, Dinipropetrovsk - "centenas de milhares de pessoas esperavam todo dia por um simples pedaço de pão".

Apesar da prática selvagem, os planos eram traçados no escritório. "A fome em massa de 1933 foi resultado do Plano Quinquenal de Stalin, implementado entre 1928 e 1932". Em números, "mais de 5 milhões de pessoas morreram de fome na União Soviética no começo da década de 30, a maioria delas na Ucrânia soviética". Explica Snyder que "a penúria foi provocada pela agricultura coletivizada, mas a morte por inanição foi provocada pela política".

Em miúdos, Stalin e o Politburo riscaram na prancheta um plano que sequestrava as fazendas dos fazendeiros, as dividia em "fazendas coletivas", colocava gente incapaz para administrá-las e exigia uma produtividade muito superior à média, confiscando a produção existente e aterrorizando pela produção ausente. Os antigos fazendeiros eram executados e os novos também, por não preencherem as metas de produção de grãos. Irredutível, o governo soviético exigiu a entrega de toda espécie de alimento e a população ucraniana morreu por não ter o que comer.

Não se pode deixar de fora deste prontuário os crimes cometidos pela Frente Popular, no que ficou conhecido como Grande Terror: "Das 681.692 execuções efetuadas por crimes políticos em 1937 e 1938, as que eliminaram kulaks e as minorias étnicas representavam 625.483", contabiliza Snyder.

(Não se perca na nomenclatura: o Grande Terror foi a terceira revolução soviética em duas décadas. A primeira foi a bolchevique, em 1917, a segunda foi a coletivização no início dos anos 30, e veio então o Grande Terror para raspar o tacho.)

Já os alemães foram menos criativos e mais diretos. "No seu Plano da Fome, o regime nazista projetou a morte através de inanição de dezenas de milhões de eslavos e judeus no inverno de 1941-1942. Após a fome, veio o fuzilamento e as câmaras de gás."

Antes de 1941, porém, russos e alemães trabalharam juntos. Até mesmo porque tinham sonhos parecidos e um inimigo comum, os ingleses. Passo à palavra a Timothy.

"No final de 1940 e começo de 1941, a União Soviética e a Alemanha nazista eram as únicas grandes potências no continente europeu, mas não eram as duas únicas potências europeias. A Alemanha e a União Soviética haviam refeito a Europa, mas a Grã-Bretanha fizera um mundo. A União Soviética e a Alemanha nazista se influenciaram mutuamente de certas formas, mas ambas foram influenciadas pela Grã-Bretanha, o inimigo que desafiava sua aliança."

A charada proposta por Snyder é o que as duas potências tinham sobre a mesa. Como iriam reagir ao enigma definiria os rumos do planeta. "Fosse como inimigos ou aliados", continua o autor, "e apesar das suas ideologias diferentes, as lideranças soviéticas e nazistas enfrentavam a mesma questão básica, apresentada pela realidade do poder britânico. Como poderia um grande império terrestre prosperar e dominar no mundo moderno sem um acesso confiável aos mercados mundiais e sem muito recurso em termos de potência naval?"

A única resposta possível era autofágica. Stalin via a solução na industrialização. Hitler enxergava a saída na expansão agrária. Além de um contra o outro, no meio dos dois estava a Ucrânia.

Enquanto isso, diante da incapacidade da Alemanha nazista ser bem sucedida em sua guerra contra os aliados, Goring, Heydrich e Himmler promoveram uma guerra contra os judeus e colocaram em prática o plano de Alfred Rosemberg, "Erradicação biológica do povo judeu na Europa".

O plano era diabólico e partia das premissas iniciais do partido nazista, que via os judeus como uma ameaça simultaneamente de cunho bolchevique (esquerda) e de ação capitalista (direita). E há quem ainda acredite nesta dicotomia pseudo-política defasada e embusteira.

Embora apenas 0,25% da população alemã fosse de origem judaica (um judeu para cada duzentos e quarenta e nove alemães) e a Alemanha inteira não tivesse mais do que 150 mil judeus, a política de extermínio racial de Hitler matou seis milhões de judeus, 97,5% deles capturados fora das fronteiras do Reich.

Para cada judeu alemão assassinado, os nazistas mataram mais 39 judeus de origens diversas (poloneses, ucranianos, russos, lituanos, letões, bielorussos, húngaros, tchecos, eslovacos, italianos, austríacos, croatas, franceses, holandeses, belgas, dinamarqueses, gregos, romenos, búlgaros, sérvios, croatas etc).

Mais de 90% deles foram executados nas valas e nos campos de extermínio localizados no âmbito geográfico que trata o livro, as terras de sangue (que era também a pátria de origem da maioria - apenas como exemplo, 60% dos habitantes de Varsóvia em 1939 eram judeus).

Grosso modo, os soviéticos mataram 5 milhões e os alemães mataram 9 milhões de cidadãos indefesos nas terras de sangue. Mas vale o destaque para o período em que eles mataram juntos: de 1939 a 1941, o pacto nazi-soviético matou 200.000 poloneses, com macabra preferência pela elite intelectual (Elementar, meu caro Watson, diria o inglês: matando a cultura, você capa no nascedouro as sementes da resistência mais bem articulada). 

É uma história há 70 anos debatida, e original talvez não seja a melhor palavra para definir o ponto de partida deste novo livro do historiador Timothy Snyder. Afinal de contas, estamos falando de circunstâncias profundamente estudadas e que tiveram sua gênese há mais de um século. Mas o paralelo traçado entre nazismo e stalinismo expõe como os dois regimes totalitários se espelhavam; e como se valiam de estratégias equivalentes para chegar a resultados semelhantes.

Resumindo, ambos tiveram sua faceta redesenhada após a Grande Depressão de 1929. Precisavam sedimentar sua própria base de poder, reorganizar a economia e alimentar a população. Para esta última, ambos foram atrás da Ucrânia. Para otimizar as terras fertéis ucranianas, Stalin dizimou milhões de ucranianos pela fome. Para se apoderar das terras ucranianas em poder de Stalin, Hitler dizimou milhões de prisioneiros de guerra soviéticos pela fome.

Entre as duas ocupações da Ucrânia, passaram-se poucos anos. Para que a Alemanha alcançasse a Ucrânia soviética, era necessário passar por cima da Polônia, cuja população também foi assassinada. Uma mortandade inicialmente levada a cabo pelo acordo entre os nazistas e os comunistas. O pacto foi selado pelos prepostos Ribbentrop e Molotov, dividindo o território polonês ao meio e dando a cada uma das potências a metade polonesa mais à mão.

O genocídio teve uma segunda etapa com a invasão alemã da União Soviética, ocupando a fatia russa da Polônia, mais toda a Ucrânia, os países bálticos e um grande naco da própria Rússia.

Os números estarrecem. Neste disputado celeiro do Leste Europeu, somadas às baixas militares, morreram quase metade de todas as vítimas da Segunda Guerra, algo perto de trinta milhões de seres humanos. Expulsos, ou escravizados, ou assassinados, ou - coletiva e organizadamente - exterminados, ucranianos, poloneses e judeus formam a maioria dos mortos civis do conflito mundial. Eram a população que habitava o que Snyder apropriadamente denominou "terras de sangue", as bloodlands.

Uma leitura essencial, mas que requer estômago. Prepare o seu.

Record, 615 páginas (1a edição) 2012 | Tradução Mauro Pinheiro | Copyright 2010

Título original: "Bloodlands"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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