"Nada de novo no front", por Erich Maria Remarque

segunda-feira, fevereiro 28, 2022 Sidney Puterman


Uma das principais obsessões de Mein kampf - a bíblia nazi que foi tema dos dois últimos posts - eram as supostas causas da rendição alemã na Primeira Guerra Mundial. O cabo Adolf Hitler, repetindo a ladainha de milhares de outros defensores de uma imaginária superioridade germânica, insistia na tese furada de que a Alemanha teria vencido a guerra. Não venceu porque havia sido traída por seus próprios líderes: políticos não-patriotas que assinaram um cessar-fogo humilhante.

O Tratado de Versailles foi isso mesmo. Impositivo e humilhante. Mas a lenda de que a Alemanha não havia sido derrotada no campo de batalha não era nada além disso mesmo: uma lenda.

(Não foi de agora que inventaram a tal da "narrativa", no sentido de uma versão construída com o propósito de disseminar um ponto-de-vista conveniente para os objetivos pessoais do narrador. Vide versões menores em nosso próprio país, como a que prega que a Petrobras não foi roubada, ou a que camufla a atual coalizão corrupta entre Executivo e Legislativo.)

Por isso, quando o livro escrito por um soldado alemão, que passou a totalidade da guerra no front, se tornou um best-seller, obra e autor imediatamente se tornaram alvo da ira nazista. Porque o que o livro contava era muito diferente da versão gloriosa da guerra propagandeada pelos partidários de Hitler. Erich descrevia alemães desnutridos morrendo como moscas. Uniformes que eram trapos. Médicos-zumbis que amputavam pernas, com indiferença, em meio à imundície.

E, pior, tratava-se de um texto que afirmava não somente o horror nauseabundo da guerra, como a inferioridade material alemã. De como os alemães exultavam quando tomavam uma trincheira francesa, porque se apoderavam da comida. De como seu cotidiano era o de ratos cegos, enfiados em buracos, com nada mais a fazer senão esperar a morte.

O relato era o oposto de tudo que o nazismo propalava. Assim, quando Hitler chegou ao poder, em 1933, a obra de Remarque, que havia se tornado um sucesso mundial no final dos anos 20, caiu em desgraça. A versão cinematográfica do livro, um sucesso de bilheteria, potencializou seu poder maléfico - danoso para a idealização do guerreiro alemão, imagem cara aos nazistas.

Parênteses: o recente livro que decupa as gravações feitas com prisioneiros alemães na Segunda Guerra Mundial, Soldados, de Sönke Neitzel e Harald Welzer, dá uma dimensão do espaço ocupado pelo autor na simbologia de guerra no século XX, ao destacar a prevalência do soldado comum e seu pequeno universo: "O grande tema do registro literário e cinematográfico da guerra, de Erich Maria Remarque, passando por Ernst Jünger, até Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, é a irrelevância do elemento ideológico e dos 'grandes' objetivos da guerra".

Fato é que, quatro meses depois de Hitler assumir a chancelaria, os livros de Remarque foram queimados. Nos anos que se seguiram, o celebrado autor foi banido e sua cidadania foi cassada. Sua irmã, Eufrige, que teria dito que daria um tiro na cabeça de Hitler se o encontrasse, perdeu a própria: a SS a prendeu e decapitou.

Por todo o relatado, a biografia romanceada de Remarque ocupa lugar cativo na história do país - e ele se tornou o segundo autor alemão mais lido de todos os tempos, superado apenas por Goethe.

O livro, em si, é personalista. Narrado em primeira pessoa pelo soldado Paul, os dez capítulos contam sua entrada no Exército; a preparação e a formação do grupo de sete jovens camaradas (Tjaden, Müller, Katczinsky, Kemmerich, Kantorek e Kropp que, um a um, ao longo da guerra, à exceção do sétimo, o narrador, vão morrendo); a vida comum nas trincheiras, a constante procura de comida; o teatro de guerra, as ofensivas, a linha de frente, a retaguarda, a esperada licença.

Um confronto que virou clichê em dezenas de filmes de guerra foi o ódio ao cabo/sargento que, via de regra, espezinhava os recrutas enquanto se preparavam para serem enviados ao front. O mais famoso deles é Full Metal Jacket ("Nascido para matar"), de 1987, do genial Stanley Kubrick.

No livro, o cabo Himmelstoss, o terror de Klosterberg, é quem cumpre esse papel. Mais divertido é que, após ter infernizado a vida dos rapazes no período de preparação, ele é enviado para a linha de frente, para as trincheiras. Vingança garantida e cabo ridicularizado.

"Numa parte da trincheira, vejo-me repentinamente diante de Himmelstoss. Escondemo-nos no mesmo abrigo", diz Paul, o soldado narrador. "Quando saio do abrigo, não vejo mais Himmelstoss. Olho de volta e encontro-o deitado a um canto, com um pequeno arranhão, fingindo estar gravemente ferido. Tem um acesso de medo", relata Paul/Erich, dizendo em seguida que devolveu o brioso cabo alemão ao combate, com um pontapé na bunda.

Atente que, embora o alter ego Paul fosse o pretenso nome de batismo de Remarque, há enorme controvérsia, em todas as fontes que pesquisei, a respeito de qual seria seu verdadeiro nome. Umas afirmam que o escritor se chamava Erich Paul Remarque e trocou o nome para Erich Maria Remarque em homenagem à mãe. Outras, que gostei mais, diziam que seu nome "Remarque" era a inversão do nome judeu "Kramer". Há até a citação no periódico argentino El Clarin que seu nome seria Erick Kramer Remark - que juntaria uma versão com a outra e não faria o menor sentido.

A propósito, o artigo é bom e versa sobre como o título da obra se tornou uma citação comum em todo o mundo, quando queremos dizer que tudo permanece inalterado no lugar de onde esperávamos, ansiosos, novidades positivas. Mas não procede, pena: mundo afora permanecemos tocaiados e sob fogo. Não há boas notícias - não há nada de novo no front.

Talvez a expressão pudesse se aplicar ao próprio século XX, que teve início tardiamente, com esta mesma Primeira Guerra Mundial. Vimos isto semana passada, no post sobre o ótimo livro de Stefan Zweig, O mundo de ontem, que dedica boa parte das suas páginas àquele velho mundo que já não existe mais. Todos os prognósticos de elevação humana que caracterizaram o século XIX se dissiparam nas trincheiras. O confronto deu partida no século das grandes guerras - duas - e também o da guerra fria. 

Muito do mundo no qual vivemos hoje foi formado a partir daí. Quando Gavrilo Princip tirou a vida do arquiduque Franz Ferdinand numa viela croata (para quem se interessa pelo tema, sugiro a leitura de "Os sonâmbulos", de Christopher Clark, e de "A primeira guerra mundial", de Martin Gilbert, ambos resenhados aqui no blog), uma epopeia de destruição e morte rompeu no horizonte, para nunca mais se por.

Esta minuciosa historiografia da guerra é uma obsessão minha sobre fatos antigos que pertencem ao passado? Há menos de uma semana a Rússia invadiu a Ucrânia e está torpedeando os civis. Mais uma atrocidade que recai sobre as tais terras de sangue, título do livro de Timothy Snyder sobre esta mesma região desgraçada. Não por acaso, é a pátria escolhida pelo príncipe Habsburgo Vasyl Vyshyvanyi, como biografado pelo mesmo excepcional autor e que postei no mês passado, em O príncipe vermelho.

Arre. O século que começou em 1914 parece que ainda não terminou em 2022. Ou será que esta guerra infeliz é o fim/início de um novo ciclo? O bombardeio russo é um arroto ou o prenúncio de uma hecatombe? Os políticos movem suas peças no seu tabuleiro particular enquanto a população segue vendada, como num jogo de cabra-cega.

Ou seja, nada de novo no front.

Remarque foi banido, seus livros foram incinerados, seu nome foi anatemizado, sua irmã perdeu a cabeça. Mas ele sobreviveu à sua segunda guerra. Hitler e a cúpula nazista não sobreviveram um dia sequer a ela: se suicidaram.

Editora  L&PM, 203 páginas | 2018 | Tradução Helen Rumjanek | Copyright 1929

Título original: "Im Westen nichts Neues"

P.S.: Um novo romance do autor foi lançado nos anos 50, desta vez sobre a Segunda Guerra. Falo dele em mais algumas semanas.


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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