"Belhell", por Edyr Augusto

quinta-feira, janeiro 21, 2021 Sidney Puterman


Uma ode ao mundo cão. Mas uma ode paraguaia. Cheia de buracos. Seus melhores momentos estão dissolvidos na ruindade geral, que nem seus protagonistas. Me pergunto onde diabos fui ler sobre esse livro. Talvez o caderno de literatura do jornal, que hoje está reduzido a duas páginas aos sábados. Estes "cadernos" volta e meia me pregam peças. Já foram melhores. No tempo do JB, era o "Idéias", oito páginas de conteúdo, com resenhas, perfis, entrevistas e as indefectíveis listas dos mais vendidos em cada categoria. Era um baita suplemento, do jeito que já não existe mais. Bem, talvez não devesse mesmo existir há mais tempo ainda. Porque, abrindo uma digressãozinha aqui, há um quarto de século, eu, numa reunião do comercial do jornal - na mui venerável função de gerente de Projetos Especiais do JB (pelo menos era o que dizia o meu cartão de visitas) -, sugeri uma ação com o "Idéias", voltada para o público majoritariamente AB 40+ do jornal. A responsável pela venda de anúncios, Sonia Land, mandou na bucha: "Ahm? Quem é que lê esse caderno?" Pois é. Se alguém quiser escrever a história da derrocada do Jornal do Brasil, não pode deixar de fora este momento apoteótico de confessa ignorância. A sujeita formalmente encarregada de liderar a comercialização do jornal junto ao mercado publicitário debochava do próprio produto. Não era a única. Aquela turma toda lá lia O Globo (hoje eu também, só que hoje não é 1996). Mas, digressões à parte e voltando à vaca fria, ou chegando nela, já que sequer toquei no assunto: o livro Belhell imagino tenha sido uma sugestão do Prosa & Verso, ou uma capa de Caderno B do dito cujo, O Globo. Não sei, mas queria mesmo saber o sacana que me recomendou o romance. O testemunhal da contracapa é todo ele do Fernando Meirelles, baita diretor, o brasileiro que rodou um clássico mundial, "Cidade de Deus" (baseado em um livraço de Paulo Lins, que li muito antes de virar filme). O Meirelles se confessa "fascinado" e que comprou os direitos do livro anterior do autor para adaptá-lo para o cinema. Edyr Augusto tá com tudo e não tá prosa. Meirelles ratifica: "Edyr entrou para a minha lista de escritores favoritos". E prossegue: "Os personagens parecem decidir seus próprios caminhos à revelia do escritor". Clichezão, e ainda por cima sem pé nem cabeça. Os personagens são mal rascunhados ou inverossímeis. Meirelles prossegue empolgado: "Assassinatos em série, cassinos clandestinos, sexo, muito dinheiro, policiais (...), o amor, o poder, mais sexo". Ah, é? Dou de lambuja a descrição de um pseudo-protagonista: um médico quarentão, intensivista de UTI, que é um serial killer, e que dá umas escapulidas do plantão para matar mendigos e moleques de rua. A compulsão do personagem é ejacular nas calças enquanto mata crianças e velhos fedorentos. Como diria o Milton Campos, que beleza. Cá para nós, é muito filme americano que o autor já engoliu - não à toa sua Belém vira Belhell (sacação que não sei se é dele). A situação é incongruente na concepção e desleixada na prática, porque o autor não tem "texto". Vou deixar pro Meirelles explicar essa: "É muita coisa, então Edyr não perde tempo descrevendo cenários ou personagens." É isso aí. Ou melhor, pior: além de não haver "texto", descrição, etc, os diálogos se dão sem aspas, travessão, troca de linha ou indicação de quem fala. O escritor não quis "perder tempo", na análise do cineasta, então ele não indica quem fala o quê, o que, logicamente, leva o leitor a não entender quem disse o quê, ou mesmo se aquilo é uma coisa dita ou apenas a narração do autor, não significando que algum personagem a tenha dito. Acredito que, por tabelinha ou por osmose, autor e e contracapista tenham combinado uma nova vertente literária. Porque Meirelles orienta que "é preciso estar ativo para ler e jogar junto". Ahm? Não sei se isso significa que eu perdi o jogo, mas eu terminei o livro sem entender muito bem o que aconteceu. Recorro novamente à Meirelles, o explicador: "Edyr não julga ninguém, apenas narra. Ação, ação, ação." Bem, alguém que tem a petulância de propor por personagem um médico intensivista assassino de crianças de rua, gozando sobre o cadáver delas, e não oferecer nada que possa contextualizar esta aberração - eu sei, estamos em tempos modernos -, tem problemas cognitivos. E também acho que matar crianças abandonadas e indefesas, atacando-as pelas costas e degolando-as (no livro, o serial killer paraense ficou conhecido como o cara do jacaré, pela bocarra que ele abria no pescoço das vítimas, com o gume da linha de sutura com que as estrangulava), dá pra gente chamar de aberração sem medo de ser censurado. E você quer saber o que o sujeito tem a ver com a trama do livro? quer? Vou lhe contar: nada. O sujeito escritor inventa uma sandice escalafobética dessas, que não dá pra deixar passar batido, e os capítulos que trazem o facínora podem ser extirpados do livreto, que não farão falta na (in)compreensão do roteiro. Com dolorosa contenção, me restringiria a dizer que o livro, além de ruim, é abjeto. Os diálogos são incompreensíveis (quem conseguir descobrir quem fala o que ganha uma criança de rua pra estrangular), as referências de crime, jogo e futebol são ingênuas (faltou um consultor de futebol para explicar a dinâmica do jogo e do relacionamento entre jogadores para o escritor, que nitidamente não entende do que fala e inventou conflitos infantis e descabidos) e no geral a impressão que fica é de alguém que assistiu centenas de horas de enlatados americanos ter resolvido fazer uma gororoba tupiniquim, ambientada numa megalópole brasileira, utilizando os subroteiros que chupou, devidamente regurgitados no livreto. Para o Meirelles, o escritor "deixa para o leitor o prazer de preencher lacunas". Bem, o leitor aqui não teve prazer nem preencheu lacuna nenhuma. Ficaram todas lá, porque não é palavras cruzadas e eu não sou pago para preencher o livro de ninguém. Então acho melhor mesmo incumbir da definição o magnânimo cineasta contracapista: é um livro cheio de lacunas a serem preenchidas. 

Editora Boitempo, 151 páginas

P.S.: OK, Sonia Land não era o nome dela. Mas quem estava na folclórica reunião (mais uma entre muitas, e que não foi páreo para uma outra reunião, esta de diretoria, onde se discutiu o poster em alto relevo de um chimpanzé, como "brinde" para o assinante AB do JB) sabe de quem falo...

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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