"A república das milícias", por Bruno Paes Manso

quinta-feira, janeiro 14, 2021 Sidney Puterman


A historiografia do crime organizado no Rio de Janeiro. Sóbrio, técnico, o paulista Paes Manso narra não somente a ocupação do Rio pelos milicianos, mas recupera de forma pormenorizada o avanço da criminalidade no Rio, desde os tempos em que a cidade ainda era a capital federal. Em paralelo, o surgimento da polícia mineira, da época de Fleury, Milton e Mariscot, dos Homens de Ouro à Scuderie Le Coq.

Relaciona os bandidos emblemáticos que assombraram, marcaram e depois dividiram o controle da cidade: Mineirinho, Cara de Cavalo, Escadinha, Gordo, Uê, Orlando Jogador, Marcinho VP, Nem, Beira-Mar (até o Marcola entra no bolo). Decupa as comunidades do Alemão, da Rocinha, da Maré, da Cidade de Deus. Retroage no Comando Vermelho, nos Amigos dos Amigos, no Terceiro Comando. 

O bicho, a polícia, a milícia. A história de Rio da Pedras, de Nadinho a Adriano. O Escritório do Crime. A mistura de todos eles com a política. Os milicianos eleitos vereadores, os governadores e suas estratégias de combate ao crime, da bonificação faroeste de Marcelo Alencar ao tiro na cabecinha de Wilson Witzel. Da apologia da milícia na Assembleia Fluminense, com Queiroz e os Bolsonaro diplomando matadores presos. 

A história do assassinato de Marielle Franco e as muitas pistas (falsas) seguidas. Curicica, Ferreirinha, Girão, Brazão - quem, por trás de Ronnie Lessa? Ninguém sabe ainda e o livro também não. O autor enumera processos e induz conclusões, mas não traz respostas para as perguntas de sempre.

Sua descrição minuciosa da contabilidade do tráfico e da milícia, com a inclusão das despesas com armamento e com o arrego (pagamento feito à polícia pelo tráfico), expõe como funcionam os conglomerados empresariais da ilegalidade. Um negócio que envolve construção, locação, corretagem, gás, sinal de tv a cabo, internet e segurança. O balancete se traduz em dezenas de milhões de faturamento. Semanais.

Técnicas relativamente pouco conhecidas empregadas na associação entre policiais e criminosos também são reveladas. Além da mineração assídua - nada mais do que extorquir dinheiro de bandidos, traficantes e bicheiros para não prendê-los -, os tiras "ganhavam para passar informações aos criminosos sobre as operações em curso, o que ajudava os assassinos a destruir as provas e fugir", assinala didaticamente o autor.

Ele acrescenta que "os policiais também faziam vista grossa aos assassinatos cometidos pelo grupo e embuchavam a autoria de homicídios não esclarecidos nos inimigos das quadrilhas que os pagavam".

O cidadão de bem certamente não é íntimo dessa técnica de embuchamento. "Como a polícia científica e a perícia do Rio estão sucateadas, em vez de fundamentadas em testes de DNA e análise de digitais, boa parte das condenações baseiam-se em depoimentos e testemunhas de acusação, escutas telefônicas, registros de antenas de celular, imagens de câmeras", explica Bruno. "Na vida real da investigação brasileira, basta arrumar uma testemunha convincente para embuchar um homicídio em um desafeto."

Que dizer? É uma leitura adequada para os meus contemporâneos. A quem vive no Rio convém ler. Não só: quem vive em qualquer lugar do país também - lhes diz respeito. Gostemos ou não, estes são os intestinos da segunda maior cidade brasileira, que o presidente eleito em 2018 promoveu a entranhas do país. 

Cidade incomum, incongruentemente chamada de "maravilhosa". O que a fez merecer o epíteto, um dia, ela já perdeu há muito tempo. As montanhas que a cercam se tornaram municípios de ocupação irregular (a Rocinha tem cem mil habitantes), a baía que já foi seu nome virou um lixão aquático e parte da sua malha urbana virou terra de ninguém. Ou melhor, de ninguém legalmente autorizado. É um território de administração terceirizada à bala.

Não esqueça que nenhum de nós anda despreocupado por boa (má) parte do Rio. Dependendo da área, a inquietação é constante. A gente disfarça, mas sempre dá uma conferida periférica, faz um pente fino visual. E o sobressalto não acomete somente gente comum. Acontece até com quem vira presidente. Convém lembrar que o Messias, quando ainda era um virulento político local, andava de moto, armado, quando foi rendido por bandidos em um sinal de trânsito. Não reagiu e entregou tudo. 

O presidente atual, a propósito, é personagem recorrente na obra de Manso - chegando mesmo a ter sido incluso no subtítulo: "Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro". Há decerto a possibilidade da inclusão ter obedecido mais a um critério comercial do que de pertinência. Mas é realmente difícil separar, como tantas vezes relaciona o texto, a família Bolsonaro da confraternização política com os milicianos.

Além da presença deles no próprio gabinete da família na Assembleia, como contratados (Fabrício Queiroz, a filha de Queiroz, Adriano Nóbrega, a esposa de Adriano e a mãe de Adriano são relacionados no livro), há as homenagens com moções e outras deferências aristocráticas a integrantes de milícias, com o dinheiro do Estado - ainda que paradoxalmente presos por este mesmo Estado, por crimes de morte cometidos contra a população do Estado.

Bruno, se contido na forma, é incisivo no conteúdo e incontroverso na análise.

"Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da violência redentora. Diante da crise econômica e da descrença na política, os eleitores escolheram um justiceiro para governá-los. Como se o país decidisse abandonar suas instituições democráticas para se tornar uma enorme Rio das Pedras gerida por princípios milicianos."

Tenta evitar a retórica fácil da polarização: "A tristeza e a depressão chegaram porque o Brasil prometido pela Nova República não aconteceu. Bolsonaro foi o sintoma dessa desesperança."

Vitor Sznejder, um amigo jornalista, que conheceu tempos mais duros, se surpreendeu com a coragem do autor: "Em outro momento político, menos democrático, o Manso estaria no mínimo sendo torturado: sua acusação é factual e direta. Assustador."

Ter o presidente da República como protagonista de uma obra toda ela dedicada a tratar da ocupação do Estado pelo crime organizado é sem dúvida um ato de coragem. A sociedade fica devendo mais essa a Bruno Paes Manso, que parece flertar com o risco, ao diligentemente se aprofundar em estruturas ocultas e fora da lei (outra obra do autor sobre um tema correlato é "A ascensão do PCC e o mundo crime no Brasil"; não li, mas já está na prateleira).

E ainda nos cabe agradecer que o seu trabalho não se restringiu ao mapeamento macro. Operações menores, mas também ilegais, como a hoje popular rachadinha - praticada com devoção e impunidade por milhares de detentores de mandato - também são explicadas em minúcias pelo jornalista. Manso inclusive faz uma digressão isentando os Bolsonaro (seus mais famosos adeptos) de terem se envolvido nos grandes esquemas de corrupção.

"Os Bolsonaro não pegavam dinheiro de empreiteiras nem de bancos, não se vendiam a grandes empresários. A família não precisava de muito dinheiro para fazer campanhas políticas, pois já contava com os votos garantidos de militares e policiais (e seus familiares). Bolsonaro, contudo, achava que ganhava pouco como deputado federal. Conforme explicou certa vez, a maior parte de seu salário ia para o pagamento de impostos, fundo de garantia e pensão para a ex-mulher. 'Fico somente com 5% do salário", reporta o autor.

Para ajudar no entendimento, Bruno discrimina a composição dos ganhos de um cidadão eleito para a câmara: "O dinheiro que os deputados recebiam ao assumir o mandato era muito acima do salário de um parlamentar. A verba de gabinete que a Assembleia Legislativa do Rio, por exemplo, destinava para cada deputado contratar até 25 funcionários, com salários entre 548 reais e 15 mil reais, era de 107 mil em 2020."

Para dar números que permitam ao leitor avaliar o volume financeiro movimentado em um esquema do gênero, ele dá um exemplo lastreado nas transferências recebidas pelo assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, nomeado em março de 2007. A contar de abril deste ano a dezembro de 2018, foram transferidos 2,39 milhões de reais para a conta de Fabrício. A suspeita é a da prática sistemática da rachadinha. Para justificar o valor, Queiroz candidamente explicou: "Eu faço rolo".

Evitando deixar no vácuo este período momentoso, vale frisar que Fabrício Queiroz, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro, foi preso enquanto estava escondido na casa do Frederick Wassef, então advogado de Jair Bolsonaro. De Atibaia ele foi levado para Bangu 8 e lá libertado pelo habeas corpus concedido pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que liberou Queiroz para o prudente isolamento domiciliar (na companhia de Marcia Aguiar, sua esposa, que estava foragida).

Os temas são muitos e foram em boa parte dissecados com critério pelo jornalista.

Para registro, apesar do texto enxuto e da análise temporal bem encadeada, há alguns calos na narrativa. Há momentos em que a obra perde fluidez, pela repetição de cenários e personagens abordados em páginas anteriores, diluindo a profundidade com que Bruno já havia dissertado sobre cada um destes assuntos em momentos diversos do livro. Daí a impressão que o texto foi construído em blocos, em momentos diferentes e posteriormente unidos, sem que tivesse sido expurgada uma eventual superposição de conteúdo. Conhecedor da tirania dos prazos, reputo que a urgência no lançamento da obra possa ter impedido o autor de fazer o refinamento e a consolidação final.

Sem dúvida, a Todavia nos traz mais uma edição oportuna, quanto ao tema, e acanhada, quanto ao acabamento. Um passo à frente dos livros de bolso e aquém do que merecem os bons trabalhos que a editora vem selecionando para publicação.

Se este é o preço para distribuir no mercado um conteúdo relevante, que seja.

Editora Todavia, 302 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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