"D. Leopoldina: a história não contada", por Paulo Rezzutti

sábado, janeiro 09, 2021 Sidney Puterman


Morri de paixão. Uma biografia para conduzir Leopoldina, a Imperatriz, ao lugar que ela merece na História do Brasil: a de uma das personagens mais determinantes para a independência da nação. Nada menos que isso. Outros vultos históricos foram influentes. Mas nenhum deles concentrou em si próprio níveis tão altos de poder, entendimento e obstinação.

Esta é a convicção que o generoso livro de Paulo Rezzutti deixa ao leitor. Porque o que vemos é uma mulher madura, com uma noção clara do cenário geopolítico que a rodeia. Leopoldina era mais do que ciente da sua circunstância como uma Habsburg - e assim, como uma arquiduquesa da Áustria, e esposa de um Bragança herdeiro de um trono português em risco, ela soube influenciar o marido a decidir pela separação do país e a proclamar a Independência.

Que isso, ehm? Chamou a responsabilidade.

Não só ela, né. Além de Pedro I, que a proclamou, José Bonifácio teve também uma participação crucial - e, à distância, D. João VI, que já havia deixado claro ao seu filho que, se o Brasil houvesse um dia de se separar de Portugal, que permanecesse contabilizado no patrimônio da família. Não se deixe enganar pelas imagens e pelo folclore: D. João tinha jeitão de bobo, mas era bem esperto. Coisa que eu já havia comentado semana passada, no primeiro post do ano, no livro sobre Pedro. 

Mas, voltando à nossa biografada, será que o papel da Imperatriz é suficientemente reconhecido? Apesar de históricas manifestações de carinho, não creio. É inegável que Leopoldina tem enorme presença na memória brasileira; mas talvez não à altura do seu verdadeiro significado para o país.

Uma cidade em Minas, uma estrada de ferro abandonada e uma escola de samba são incontestes demonstrações de apreço. Mas a austríaca que nasceu sonhando com a América, que foi dada em casamento a um príncipe português e que veio jovem para o Brasil, aos 20 anos, para nunca mais rever seu país, merecia mais. A meu ver, muito mais. Somos pouco gratos.

Porque esta menina, nascida neste mês de janeiro (no dia 22, do ano de 1797, em Viena, como Leopoldina Carolina Josefa), desde a infância cismou com a América - sem nem de longe desconfiar que o seu fim, dolorosamente prematuro, seria lá, ou seja, aqui. No Brasil, escolheu ficar e escolheu ser brasileira, em uma época em que o gentílico "brasileira" era próximo do pejorativo, era pertencer a país nenhum. Ela quis ser brasileira.

Porém, muito mais do que isso, Leopoldina, das varandas do Palácio da Quinta da Boa Vista (aquele que incendiamos tem pouco tempo, porque a universidade que geria o palácio fez um gato numa sala para instalar um frigobar), inventou o Brasil como nação independente.

Veja que não há exagero no que falo (sobre a invenção do país, não sobre o incêndio negligente e criminoso). Dou crédito ao que Paulo nos conta, lastreado em documentação parcialmente inédita, e também calçado em outras biografias minuciosas, como a de Carlos Oberacker Jr.

Leopoldina via orbitar ao redor de si uma galáxia imperial, integrada por protagonistas da História do seu tempo. D. João VI, sogro, rei de Portugal; Francisco, pai, Imperador da Áustria; Maria Luísa, irmã, esposa de ninguém menos do que Napoleão (a quem Maria Luísa animadamente enfeitava a testa); Pedro I, marido, príncipe-regente do Brasil. Sem falar na sogra, a sempre perigosa Carlota Joaquina, com poder de berço (filha do Rei de Espanha), de fato (rainha de Portugal) e de fogo, pelos sucessivos golpes traiçoeiros que articulou para depor o marido.

Com cada um deles, teceu uma relação diplomática e subordinada, mas sempre mexendo os pauzinhos com habilidade para que tudo saísse como achava melhor para a família, em primeiro lugar, e para o país, que ela via como extensão da própria casa.

É o que nos relata o autor, que, além de nos oferecer uma visão generosa e delicada de Leopoldina, nos leva para um passeio pela história europeia e pela Viena dos tempos áureos. Delineia a formação e as expectativas da princesa, bem como a estruturação dos Habsburgo como uma dinastia vocacionada a moldar esposas para os reis europeus. Nossa Leopoldina não fugiu à tradição.

Rezzutti detalha as peripécias que antecederam o contrato de casamento e os gastos milhardários do Marquês de Marialva (representante português para negociar o casório real), gastando o que restava do ouro das Minas Gerais em carruagens, desfiles, bailes e recepções. Não à toa, todos imaginavam o fausto e a pompa com que Leopoldina viveria no Brasil. Inclusive ela, claro. Tolinha.

Tola é forte. Embora preparada desde o nascimento para ser rainha, à época do casamento ela era somente uma adolescente ingênua e que sonhava com seu príncipe encantado. Em uma geração pré-fotografia, ela foi presenteada com um retrato à óleo de Pedro I - e se apaixonou pelo latino garboso. A partir daí, a ânsia de cruzar o oceano ao encontro do noivo só fez crescer.

Rezzutti nos traz inclusive o "diário de bordo" da viagem, muito antes dela estar "a bordo". Pelas páginas do diário verdadeiro de uma das damas de companhia da princesa, a condessa de Kühnburg, o biógrafo se intromete nos preparativos e na travessia e acompanha os bons e maus momentos da expedição que foi de Viena à Livorno e que de lá, após uma demora lusitana, zarpou para o Rio de Janeiro. A narrativa é deliciosa, original e reveladora. Um dos muitos trechos do livro com gosto de quero mais.

Mas eu acima já estava bem adiantado no tempo. Antecipo que o casamento, em si, se deu às mil maravilhas - o problema mesmo foram os meses seguintes, como sói acontecer com os casamentos em geral. Leopoldina era uma mulher ilustrada da corte austríaca, acostumada aos salões e ao convívio com os poderosos de toda a Europa. Personalidades históricas como Talleyrand e Metternich estavam no seu entorno, visitavam seu palácio e faziam parte do seu dia-a-dia - Klemens von Metternich, a propósito, muito mais do que ela gostaria.

É que era tudo business. Mais do que uma noiva, ela era um trunfo, um valioso produto diplomático, com grande potencial comercial. A parceria com o reino ultramar de Portugal, então sede do governo, parecia promissora para a ampliação do mercado austríaco. Tanto, que os ingleses não gostaram nem um pouco do matrimônio. Metternich, futuro chanceler, fez o que pôde para evitar que os britânicos gorassem o acordo e, mesmo às turras com a caprichosa Leopoldina, zelou pelo seu embarque seguro.

E assim foi. A viagem correu bem, com os desconfortos característicos da época. Porém, se no Velho Continente ela tinha queixas, mal sabia o que a esperava no Brasil, após o período das comemorações. Aqui ela se tornou prisioneira de luxo de um casarão em São Cristóvão. Descobriu logo que esposas de maridos portugueses podiam bem pouco - e o Rio do início do século XIX era o lugar onde o Judas perdeu as botas. Auf wiedersehen vida galante e cultural.

Por outro lado, aprendeu português, excursionou pelas matas (diariamente) e proporcionou a Pedro uma prole: sete filhos, sendo o segundo, o terceiro e o último varões. O sétimo, D. Pedro II, foi quem herdou o trono, pois o primeiro dos três homens, Miguel,  foi natimorto, e o segundo, João Carlos, morreu antes de completar um ano - mas teve enorme importância na proclamação da Independência. Chego lá.

A jovem Leopoldina, que viria a terminar a vida conjugal em sofrimento e humilhação, teve, ao lado do marido, um par de anos de conquistas inigualáveis para qualquer casal que um dia pisou estas plagas. Após um período relegada à condição de procriadora, Pedro e Leopoldina se tornaram cúmplices no trono (uma relação oposta à que unia João e Carlota) e foram, os dois, os responsáveis pela separação do Brasil de Portugal.

Tal se deu porque a corte portuguesa pôs, metaforicamente, a espada no peito da família imperial. Não só decidiram impor uma constituição que capava parte dos poderes da realeza, como exigia o retorno imediato de toda a corte. D. João, bastante adaptado ao Rio de Janeiro e temeroso da recepção que iria encontrar, tentou mandar o filho, sozinho, para assumir o reino português.

Leopoldina não aceitou e chegou a tramar embarcar em uma chalupa para seguir o navio do marido. Para sorte de todos os envolvidos - e, principalmente, para sorte do Brasil -, tal medida extrema não foi necessária. E, vale dizer, muito por conta da sua resistência à partida de Pedro. Chorou, implorou e ameaçou. Pelo conjunto da obra - e pela sandice da ideia, onde já se viu -, a decisão do rei foi abortada. 

Foi justamente D. João VI quem embarcou com toda a tralha e parentela para reassumir seu posto na capital portuguesa (à exceção de Pedro, Leopoldina e os netos Maria da Glória e João Carlos). Lá chegando, o rei não foi autorizado a pisar em solo pátrio antes de concordar com uma série de medidas arbitrárias, que reduziram seu poder e o deixaram à mercê das cortes - que não ficaram nada satisfeitas com a permanência do príncipe-herdeiro no Brasil. Ordenaram a Pedro que ele deixasse o país e fosse para a Europa, aprimorar seus conhecimentos.

Para não dar margem à uma protelação, Portugal decidiu extinguir a figura jurídica internacional do Reino do Brasil e não a substituiu pela de vice-reino, drástica e unilateralmente reconduzindo o país ao status colonial. A partir daí as províncias deixariam de responder a um governo central no Rio de Janeiro e, na condição de territórios ultramarinos, se reportariam diretamente à Lisboa.

A título de hipótese, a decisão portuguesa fatalmente provocaria com que, no futuro, com o avanço da História, as províncias brasileiras se tornassem pequenos países autônomos, fazendo do território nacional uma colcha de retalhos. Se o golpe português tivesse prosperado, este Brasil continental que conhecemos hoje não passaria de uma mera menção nos livros escolares, algo tão distante de nós como o Tratado de Tordesilhas.

Como Rezzutti minuciosamente nos conta, tal não se deu porque Leopoldina tinha ideias diferentes para o seu novo país. Bem, ela sim, mas o marido não. Pedro já tinha aceitado o cabresto imposto pelos seus conterrâneos, marcado a data da viagem da família para Lisboa e confessado em cartas ao pai que se poria em armas contra os brasileiros, caso eles tentassem romper os vínculos com Portugal. Tivesse procedido assim e nossa História não seria nada do que é; seria uma outra da qual não temos como fazer ideia. Mas no caminho dessa hipótese, nunca ocorrida, estava esta determinada mulher austríaca, ainda jovem, às vésperas de completar 25 anos.

Percebendo o tamanho do problema - as Cortes exigiam o retorno para um país onde talvez não mais lhes fosse permitido reinar, enquanto que o Brasil ansiava por uma posição afirmativa do príncipe -, Leopoldina articulou com o frei franciscano Francisco Sampaio, com seu assessor pessoal Georg Schäffer (a quem incumbiu, com sucesso, de contratar mercenários alemães na Europa, para vir dar combate aos portugueses aqui) e com o grupo "Patriotas Brasileiros" uma trama para influenciar D. Pedro e demovê-lo de sua decisão de retornar à Portugal. 

Além do trabalho da esposa, havia a favor da emancipação a vontade das províncias de São Paulo, com José Bonifácio de Andrada e Silva à frente, e também as da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Puxando o cabo de guerra na outra direção estava o Exército português no Brasil. A bem-sucedida imposição da nova constituição, que havia feito Pedro I se dobrar contra sua própria dinastia e jurar fidelidade às cortes portuguesas, dava confiança aos militares. O gajo, apesar dos seus foros de impetuoso, lhes parecia que estava no bolso.

Há quem diga que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Se non é vero, é ben trovato. Aqui foi justo o caso. Leopoldina estava por trás de Pedro e a decisão de recusar a intimação de Lisboa e ficar no Brasil pode ser debitada na conta dela. Aquele príncipe que em menos de nove meses se tornaria Imperador aquiesceu e proclamou que permaneceria no Brasil. Foi no dia de hoje, há exatos 199 anos, um 9 de janeiro que passou para a posteridade como o "Dia do Fico".

Bacana. Mas, pelo texto de Rezzutti, sabemos que a célebre frase "digam ao povo que fico" nunca existiu. Houve uma bem mais tímida (e quase dúbia): "Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as Cortes e o meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito."

Meio xôxa, né? É o que temos. Mas não importa a frase que foi enfim sacramentada no documento. O que importa é que o príncipe e sua família ficaram no Brasil. Ainda não estava ganha a guerra, era sabido; mas uma batalha essencial fora vencida. Sem ela, necas de pitibiribas.

E, como eu dizia, o Exército Português aquartelado no Rio não engoliu o "fico". Na noite de 11 de janeiro, 48 horas depois, batalhões foram às ruas, quebraram vidraças, fizeram arruaça, derrubaram postes e espancaram civis, aos gritos insolentes de "essa cabrada se leva a pau". Pedro e Leopoldina assistiam à ópera quando tomaram ciência do levante. Largaram o teatro às pressas em direção à São Cristóvão, sob escolta. 

Preocupado com a segurança da esposa e dos filhos, Pedro partiu com a família às pressas da Quinta da Boa Vista, em plena madrugada, e correram todos para a Fazenda de Santa Cruz, a dezenas de quilômetros da cidade. Acreditava que assim protegeria a família de qualquer ação impensada e violenta por parte dos militares portugueses. Não teria sido necessário, pois tudo se resolveu nas horas seguintes: dois mil portugueses se impuseram sobre os dez mil brasileiros reunidos para o combate - que, ao fim, não aconteceu.

O imbroglio, entretanto, deixou uma vítima que viria a alterar o rumo da História: o primogênito do príncipe regente, João Carlos, de onze meses, já adoentado, teve complicações com a viagem súbita e desgastante. O retorno ao palácio não foi suficiente para recuperar a saúde do herdeiro do trono, que faleceu três semanas depois.

Pedro e Leopoldina, os pais do neném falecido, jamais se esqueceriam disso.

O rancor do príncipe contra os militares se revelou sanguíneo. Mortificado pela perda do filho, ele foi explícito na carta escrita ao pai, em Lisboa: "Uma violenta constipação cortou o fio de seus dias. Este infortúnio é o fruto da insubordinação e dos crimes da divisão portuguesa." Pedro descreveu a D. João como o pequeno filho doente teve que suportar o desconforto e o calor. Não mediu as palavras: "A divisão auxiliadora foi a que assassinou meu filho e neto de Vossa Majestade. Em consequência, é contra ela que levanto minha voz."

O governante submisso foi substituído por um líder cuja inconformidade iria pesar nas suas atitudes nos meses seguintes. O país se tornara um barril de pólvora. Forças e grupos de apoio para ambas as correntes pululavam nas províncias e na capital. Havia hora que não se sabia quem, na verdade, apoiava quem. Espiões, espiões duplos, cartas falsas, ameaças veladas e violência plena. Na Bahia se deu uma guerra civil, com vitória dos pés-de-chumbo, os portugueses; em Vila Rica, Pedro I logrou apascentar os ânimos. Difícil, à época, saber em qual cavalo apostar.

Leopoldina, para desgosto de Metternich, que queria ver a princesa fora do confronto político, havia se tornado uma conspiradora. Sabia ela que, procedendo assim, cortava os vínculos com as cortes europeias da qual ela própria era originária. Mas estava convicta que era a decisão certa a tomar, tanto que escreveu: "Tomei a grande decisão de ficar no Brasil, desistindo assim para sempre da esperança de algum dia rever meus queridos amigos e pátria."

É fato que a princesa temia as cartas constitucionais e, como uma Habsburgo, abominava as propensões revolucionárias. Porém, ao longo do ano de 1822, ela foi gradativamente se tornando adepta de uma causa revolucionária, como fica evidente nas cartas trocadas com o pai. Ela tenta trazer o Imperador austríaco para a sua causa:

"Sua Majestade, o Rei, está sendo mantido pelas Cortes numa prisão elegantemente disfarçada; nossa partida para a Europa é impossível (...) e seria ingratidão e erro político crassíssimo se nosso empenho não fosse manter (...) a força e grandeza deste lindo e próspero reino, que nunca poderá ser subjugado pela Europa (...). Estou convicta, querido pai (...), de que o senhor nos apoiará na medida do possível e com toda a força e poder (...)".

Não rolou. O pai parou de respondê-la. Isto foi um entrave às suas articulações para defender o novo império do poderio militar do reino português, mas ela já havia colocado a máquina de uma eventual guerra pela independência do Brasil para girar: o portador da carta ao pai foi o seu secretário alemão, o já citado Georg Schäffer, que, além de "carteiro", contratou mercenários alemães, disfarçados de colonos, para vir ao Brasil defender a causa brasileira.

Puxando a brasa para a minha sardinha, muitos destes alemães viriam a ser os pioneiros da colonização de Petrópolis. Mas isto é outra estória.

Enquanto isso, o cenário conflagrado não diferia muito das polêmicas atuais, exceto pela velocidade com que as informações caminhavam - na melhor das hipóteses, por navio, lombo de cavalo ou mesmo a pé. Ainda assim, o distante jornal londrino The Courier aventava que toda a questão com Portugal poderia se resumir a um golpe dissimulado da família para, como bem diz Paulo, "garantir seus tronos de ambos os lados do Atlântico". Escreveu o vespertino: "A conduta do Príncipe Real, opondo-se à vontade das Cortes Soberanas e aos aparentes desejos de seu pai, resultaria de uma combinação política entre eles, a fim de garantir o Império Brasileiro para a Casa de Bragança".

Para dar prosseguimento à costura política que já havia realizado em Minas, Pedro I foi para São Paulo e, em 13 de agosto de1822, nomeou Leopoldina para ocupar a regência durante a sua ausência, deixando os ministros e secretários de Estado "debaixo da presidência da princesa real do Reino Unido, minha muito amada e prezada esposa, (...) a qual fica desde já autorizada para (com eles) tomar todas as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do Estado".

Ou seja, é inequívoco que Leopoldina foi a primeira mulher a governar o Brasil, seja como reino (até 7 de setembro de 1822), seja como império soberano (após 7 de setembro). E não foi uma ocupação pró-forma: mais que estar à frente do governo, ela foi decisiva para sua existência como país independente. Inclusive, foi ela quem contratou o mercenário britânico Lorde Cochrane, que já havia se batido pela independência do Chile e chefiaria a esquadra brasileira na Guerra da Independência.

Mas estou colocando o carro à frente dos bois. Em 14 de agosto de 1822, Pedro ainda estava indo para São Paulo.

Duas semanas depois, com ele a caminho (não esqueçam que 400 quilômetros a cavalo toma tempo...), chegou ao Rio o navio Três Corações, que antecipava o que só nos seria comunicado oficialmente em 21 de setembro, pelo navio Quatro de Abril: as Cortes portuguesas desconsideravam tudo que Pedro I havia enunciado e o chamavam de "desgraçado e miserável rapazinho" e também de "mancebo ambicioso e alucinado". Não só xingavam: ameaçavam ainda prendê-lo. 

E mais: tudo indicava que Portugal estava por enviar um exército de sete mil soldados para ocupar o Brasil. Da Bahia vinha a notícia de que já tinham aportado em Salvador dois navios de guerra e seiscentos soldados. Em 2 de setembro, no Palácio de São Cristóvão (aquele tal que acima eu já falara que um gato da "administração" no frigobar transformou em cinzas e ruína poucos anos atrás), Leopoldina convocou o Conselho de Estado e o presidiu. 

Portugal iria invadir o Brasil, Pedro I estava em viagem e a princesa Leopoldina estava no comando do país.

O Conselho, integrado também por José Bonifácio, entendeu que "o Brasil tinha feito tudo quanto humanamente era possível pra conservar-se unido com dignidade a Portugal", que, por sua vez, "insistia nos seus nefastos projetos de o tornar (ao Brasil) à miserável condição de colônia". A ata da reunião registrou que se propunha que se escrevesse à Sua Alteza Real, para que ela "proclamasse a independência sem perda de tempo".

Às onze da manhã, Leopoldina despachou o documento. Coube a Paulo Bregaro levá-lo, com a recomendação de que "se não arrebentar uma dúzia de cavalos no caminho, nunca mais será correio". Cinco dias depois, às quatro da tarde, ele seria lido por Pedro I, vindo de Santos, às voltas com uma diarreia irritante, às margens de um riacho nas proximidades de São Paulo, em um local denomimado Moinhos. Já o riachinho se chamava Ipiranga e ficaria famoso.

O correio aberto pelo príncipe levava a disposição do Conselho, diversos despachos e também cartas de José Bonifácio e do diplomata inglês Henry Chamberlain. E, entre elas, uma missiva especial de Leopoldina para o marido: 

"Pedro, o Brasil está como um vulcão. Até no Paço há revolucionários. Até oficiais das tropas são revolucionários. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos e humilham-vos. (...) O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. (...) Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida. Já disseste aqui o que ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois. Tereis o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer. Leopoldina."

Segundo o padre Belchior Pinheiro, testemunha ocular da cena, o príncipe, ao receber o correio, rapidamente se afastou do grupo de cavaleiros. A uma certa distância, leu a carta de Leopoldina e os demais documentos, e transtornado, em um acesso de fúria, amassou e jogou longe a papelada (o próprio padre depois a catou). Já montado, se reuniu ao restante do grupo e desembainhou a espada, gritando:

"Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil."

O resto é História. 

A partir daí, após este feito colossal, para o qual contribuiu até o mais ínfimo dos detalhes, Leopoldina entraria em um turbilhão de ocaso, impotência e sofrimento. Morreria em pouco mais de quatro anos, constantemente humilhada pelas traições e cafajestices do marido, que paulatinamente transformou a amante Domitila de Castro em primeira-dama do seu reinado.

Ainda que demonstrações populares de afeto pela memória da Imperatriz Leopoldina tenham tomado o Rio de Janeiro em seu enterro, e também depois no traslado dos seus restos mortais, a importância do que ela fez pela nação em que vivemos hoje - com seu poder, sua vontade e seu discernimento - permanece relegada ao desconhecimento coletivo.

A História ainda não a contemplou com um lugar à altura do seu feito. 

Mesmo hoje, em que se valorizam as narrativas de protagonismo feminino, a jovem austríaca que escolheu ser brasileira e fez da sua nova terra um dos maiores (em extensão territorial) países do planeta não é lembrada. Na miríade de livros, sites e programas jornalísticos, quando a pauta pede holofotes sobre as grandes mulheres da nossa história, em boa parte das vezes Leopoldina permanece nas sombras - ao contrário de muitas outras, mais carnavalescas e iconográficas. Ou, simplesmente, mais recentes.

Chica da Silva, contudo, que viveu antes dela, virou filme e tem uma imposição feminina que nem de longe é outorgada à Leopoldina. E ao lado desta, muitas outras. Para não parecer cisma minha e tirar a prova dos nove, googlei e entre as primeiras entradas apareceu uma página escolar (https://www.todamateria.com.br/mulheres-que-fizeram-a-historia-do-brasil/), listando as 20 maiores mulheres da história brasileira. Tem Paraguaçu, Ana Pimentel, Chica da Silva, Maria Quitéria, Anita Garibaldi, Maria Tomásia, Princesa Isabel, Chiquinha Gonzaga, Narcisa Amália, Tarsila do Amaral, Bertha Lutz, Carlota Pereira, Carmen Miranda, Ernedina Alves, Zilda Arns, Cristina Ortiz, Maria Esther Bueno, Ana Cristina César, Raimunda Putani e Daiane dos Santos. Meu respeito e reverência a todas elas. Mas adivinha só onde está Leopoldina?

Acertou. Não está.

É uma desfaçatez que merece reparo e um nome que merece resgate. Não é todo dia que uma mulher consolida um país - a propósito, o nosso. Porque como nos deixa perceber, com volume e delicadeza, a belíssima obra de pesquisa do historiador Paulo Rezzutti, Leopoldina da Áustria é simplesmente a maior brasileira de todos os tempos.

E nem vou levar em consideração se você disser que eu sou suspeito, porque minha filha se chama Leopoldina e minha avó também. Ué, que nome você queria que elas tivessem?

Editora Leya, 427 páginas

P.S.: Na foto, minha filha Leopoldina me dá de presente o livro "Leopoldina". Que orgulho delas.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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