"Stasiland", por Anna Funder

sexta-feira, junho 07, 2019 Sidney Puterman

Visitei o velho e bem conservado prédio da Stasi, no coração da antiga Berlim Oriental. Queria ver se ainda era perceptível, estando lá, sentir a "atmosfera" do que era um estado de vigilância. Como era um país cuja principal atividade era espionar seus próprios cidadãos? me perguntei muitas vezes. É sabido que o regime comunista na Alemanha Oriental foi mais perturbador que seus pares. Talvez por reunir simultaneamente os dois maiores genocidas do século XX, o comunismo e os alemães. Atente que não era uma má fama meramente derivada de um regime sanguinário. Estes são banais e existem às dezenas. Era o medo diante do invisível: um sistema invasivo, infiltrado, dedicado a vigiar e denunciar seus cidadãos. Uma sociedade enclausurada sob um abominável Estado de Segurança Máxima, cuja especialidade suprema era espionar e prender pessoas. Por tempo indeterminado e sem garantia do "suspeito" sair vivo. Mau negócio. Curioso sobre até onde vai a perfídia humana, não hesitei quando do lançamento no Brasil do livro de Anna Funder. Sua autora é uma jornalista australiana que viveu temporariamente na DDR, após a queda do muro, e foi fisgada pelo tema e pela nação. Bom para os curiosos. Parece que não há muitos textos dedicados a esta estória, pelo menos não que tenham chegado ao mercado editorial brasileiro. Seu vínculo com o lugar é inequívoco, como ela própria afirma: "Penso no sentimento que acabei desenvolvendo por um país que já não existe mais. Só posso descrevê-lo como horromantismo. O romantismo provém do sonho de um mundo melhor que os comunistas alemães queriam construir das cinzas do seu passado nazista. O horror vem do que fizeram em nome desse sonho." Com este sensível grau de envolvimento, Funder nos conduz com seca delicadeza pelos labirintos do Estado de Vigilância da antiga Alemanha Oriental. Seu método teve por foco entrevistar cidadãos e descrever como se aproximou deles. Sua abrangência, porém, foi rarefeita, talvez pouco acadêmica. Ou provável ela tenha sido vítima da reticência com que o povo alemão se sente propenso a falar do assunto - principalmente os ex-agentes do regime. Assim, o material humano que conseguiu não a permitiu ir muito longe, nem muito fundo. Esta deficiência tornou o painel incompleto, para quem esperava o registro de um historiador - mesmo amador - e teve que se contentar com uma estrutura mais porosa e superficial. Porém, ainda que todas estas restrições impactem negativamente o resultado final, é suficiente para nos permitir espiar um pouco do Estado-Espião. Os entrevistados, mesmo de pouca relevância, tiveram seus perfis desenhados. Funder procurou compensar o conteúdo ralo com uma descrição psicológica mais acurada. Não compensou, de fato, mas atenuou. Na amostra de que dispunha, quase todo personagem era estatisticamente válido, porque, afinal de contas, qualquer um que tenha nascido e vivido no país atendia aos pré-requisitos para ser qualificado ou como vítima ou como agressor. Então, a opção da jornalista em nos explicar o funcionamento do regime através de estórias pessoais tem seu valor. Não nego que embarquei na leitura esperando por organogramas e estratégias; mas foi também enriquecedora, e assaz palatável, a suavidade da visão feminina e estrangeira com que ela constrói sua narrativa humanizada. Embora não nos permita discernir os meandros da ditadura alemã, tem contundência suficiente para nos embrulhar o estômago. Alguns dos entrevistados são mais relevantes. Algumas estórias trazem uma simbologia maior. Nenhuma supera a de Heinz Koch. o homem do muro. Mas seu relato vem já na segunda metade do livro. Antes, começamos por Miriam, a adolescente rebelde que resolveu imprimir e distribuir manifestos. Presa, foi solta. Inconformada, tentou fugir do país. Pega, foi presa. Após alguns anos de prisão, casou-se com um professor, que acabou preso e assassinado na prisão pelo regime. Ou Julie, a senhoria do apartamento alugado por Anna. Estudante padrão, seu namoro com um italiano a negócios no país fez com que entrasse na lista negra do governo e tivesse sua família ameaçada. Ou como o ex-espião da Stasi que adorava disfarces, hoje é detetive e que foi preso porque descobriram que ele tinha uma amante não cadastrada (ter amantes não era problema, o que elas não podiam eram ser secretas - o Governo tinha que ser informado sobre quem comia quem). Ou a pungente narrativa da corajosa Frau Paul, que teve seu filho recém-nascido em risco de vida transferido para a Alemanha Ocidental, foi proibida de vê-lo e passou dois anos presa, sob tortura, por ter recebido em sua casa estudantes que posteriormente tentaram fugir para o Ocidente (ela deveria ter avisado ao Governo sobre as reuniões). Anne falou também com funcionários diversos da estrutura de espionagem, alguns ainda saudosos do poder que um dia possuíram. Ou gente como Koch, cidadão exemplar desde a mais tenra infância (ele então não sabia, mas seu pai havia quase sido deportado para a Sibéria por disputar uma eleição municipal contra o candidato do governo). Koch pertenceu à equipe de topógrafos que riscou, do dia para a noite, em 12 de agosto de 1961, a linha do muro. Funcionário-modelo sempre em destaque, chegou a ser homenageado com uma placa dourada (de plástico barato) pelo regime. Como sua esposa (com a qual havia sido aconselhado pelo Governo a não se casar) era impedida de conseguir emprego, Heinz em retaliação pediu exoneração do serviço público. Foi preso, declarado traidor e sua esposa foi coagida a assinar um termo requerendo o divórcio. De posse do documento, seu chefe mostrou o pedido de divórcio a Heinz, exigindo dele repudiar a esposa, o que ele o fez, convicto, diante do papel. Heinz foi reintegrado e a esposa presa, sem que Heinz atinasse que havia sido tudo uma manobra do regime. Neste instante, exige-se uma freada de arrumação. É isto mesmo? o governo criava administrativamente picuinhas falsas para separar marido e mulher? O Governo? Pois é, pasme, funcionava assim. Mas há muitos outros personagens, que sugiro você descubra na leitura, que lhe proporcionará subir a um mirante nos anos 90 e olhar no firmamento as três décadas anteriores. De onde se descortina uma cidade confinada, regulada por um Estado policial, onde todos eram suspeitos e vigiados. Por isto, mais do que sobre a Stasi e a DDR, este é um livro sobre o Muro de Berlim. Sobre como uma cidade foi de uma hora para a outra cortada ao meio, amputação que perdurou por um terço de século. Segundo Funder, que escreveu o livro meia dúzia de anos após a queda do muro, praticamente já nada restava dele. Hoje, menos ainda. Toquei com as minhas mãos uns poucos metros grafitados do que um dia foi um obstáculo insuperável e que se estendia por dezenas de quilômetros. Era uma tarde fria no início da primavera e os turistas zanzavam despreocupados sobre um terreno antes proibido e outrora isolado por barreiras de arame farpado. Sobre o descampado de hoje, houvera um intransponível muro de três metros de altura, com torres de vigia de onde sujeitos encapotados e com uma metralhadora à tiracolo encaravam quem se aproximava. Não mais. Agora esta Berlim só existe nos livros e museus. Assim, eu e meus amigos, já fechando a segunda década do século 21, nos resignamos a ir em busca de chucrute e apfelstrudel. A caminhada abriu o apetite e a Alemanha agora era outra, ainda que a sombra do passado custe a dissipar. No fim, de bônus, um posfácio assinado por William Waack, no tempo em que seu prestígio ainda não havia sido abalado por uma piada cretina e uma demissão abominável. Waack é dos bons e sua assinatura engrandece o livro.

Companhia das Letras (selo "Jornalismo Literário"), 375 páginas

P.S.: Sou implicante mesmo. Mas não tem como deixar passar. O subtítulo "como funcionava a polícia secreta alemã" é uma enganação. O livro não é nem mesmo sobre a Stasi. É sobre a DDR e os seus cidadãos. E como a Stasi era um estorvo em suas vidas. Alguns destes cidadãos, os personagens do livro de Anna, tinham estreita ligação com a Stasi. Ou trabalharam para ela ou foram tolhidos, presos ou sacaneados por ela. Ou tudo isto ao mesmo tempo. Mas este não é - repito - um livro sobre o modus operandi da Stasi. Vou continuar procurando. Quem souber de um, me diga. Não vale em alemão.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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