"A casa no lago", por Thomas Harding

domingo, junho 16, 2019 Sidney Puterman

O livro conta a estória de uma casa abandonada em Berlim, à beira de um lago. Uma casa simples; mas com um retrospecto movimentado. Imagine: o muro de Berlim passou no seu terreno. Muito antes, uma família judia (que a construiu) a deixou às pressas, em fuga. A base aérea dos ingleses era no seu quintal. Um oficial nazista de primeira hora foi seu dono, antes de ser assassinado. Um músico famoso se apossou dela. Sem calefação, virou moradia proletária na Alemanha comunista. Acabou como um refúgio de drogados. Como se vê, a casa pode ter sido (e era) simples, mas não foi uma qualquer. Quem conta esta estória é o jornalista inglês Thomas Harding, neto de uma ex-moradora, saudosa e exilada. São as estórias que ouviu na infância da avó, Elsie, que ocuparam seu imaginário de guri sobre a tal cabana de madeira na remota Alemanha. O pequeno Thomas sabia que a casa havia sido roubada à família. Sabia que as lembranças da avó Elsie eram recheadas de nostalgia e rancor. Por isso, Thomas, muito tempo depois, já escritor bem-sucedido, resolveu escarafunchar o passado da casa - e, consequentemente, da família. Foram todos unânimemente contra. Haviam sido expulsos da Alemanha. A Inglaterra era seu lar há duas gerações. Eles não tinham nada a mais a ver com aquilo e não viam com bons olhos este revival. Thomas não se deixou convencer. Viajou para a Alemanha uma, duas, cinco vezes. Entrevistou dezenas de vizinhos e ex-moradores. Se enfiou nos arquivos. Suas pesquisas lhe levaram até a primeira ocupação do terreno ao redor do lago, ainda no século XIX, e de lá rastreou proprietários, moradores, inquilinos, ocupantes, invasores. Mais do que o inventário afetivo e genealógico de um chalé de verão, Thomas exibiu um sensível painel da Europa contemporânea. No pano de fundo das trocas de posse da propriedade, ele nos apresenta a heterogeneidade de um povo, em vários dos seus matizes, ao longo de cem anos. Sua história fala somente de um punhado de famílias, mas elas têm o poder de sintetizar a trajetória alemã no último século. Os Wollank, os Alexander, os Schultz, os Meisel, os Hartmann, os Fuhrmann, os Kühne. A casa no lago, à margem (sem trocadilho) dos acontecimentos, sofreu suas consequências como se estivesse no epicentro. Envolvida pelos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, foi duramente atingida pela perseguição aos judeus, foi objeto de cobiça e de astúcia no III Reich, foi moradia popular na Alemanha comunista, foi comunidade jovem após a queda do muro, foi esconderijo de drogados e emigrados, momentâneo covil de neonazistas e, por fim, ninho de raposas selvagens, já em plenos anos 2000. Há que se tirar o chapéu para alguém que se propõe a contar a estória de uma moradia banal e constrói um mosaico deste porte. Se no início da narrativa algo indica que ela será arrastada, logo somos nós que nos deixamos arrastar pelo ritmo do autor, minucioso e delicado. A casa foi objeto de desejo e afeto (de muitos) desde o momento em que foi concebida. Se ninguém desfrutou dela na plenitude tanto como o fizeram seus construtores - os Alexander -, outros foram bem mais longevos, como os Kühne. A forma sensível com que Harding descreve os sonhos e expectativas de cada novo proprietário ao assumir a casa, as reformas e adaptações, os usos e restrições, vão nos deixando cada vez mais associados ao seu destino. Seu livro e seu esforço pessoal transformaram uma residência simples e decrépita - que nunca teve sequer aquecimento - em monumento. Tanto, que a casa tem um site, e que, se você visitá-lo agora - www.AlexanderHaus.org - irá descobrir que hoje, 16 de junho de 2019, a casa está sendo reaberta ao público, após um longo período sendo restaurada para esta ansiada nova fase da sua linha do tempo. O próprio autor, Thomas Harding, fará uma palestra para os presentes. Quem quiser pode até aproveitar para nadar ou remar no lago, hoje dragado e revivido, sem muros nem arame farpado, com botes de aluguel e circundado por uma convidativa ciclovia. E com a casa que virou livro. Hoje é finalmente o dia em que a velha casa do lago será promovida a patrimônio histórico alemão. Talvez seja possível dizermos (ou torcermos) que ela celebra um novo tempo na Alemanha. Reitero que ela projeta no tempo a história do seu fundador, dos demais moradores e do país. Seus ocupantes foram absolutamente distintos, e suas biografias integram um espectro heterogêneo e visceralmente conectado com a História. Um caleidoscópio social, misturando um fazendeiro candidato à nobreza, um celebrado médico judeu (presidente da associação de medicina de Berlim), um beligerante das freikorps, carreirista nas hostes nazistas e depois defenestrado e morto, um produtor musical astuto que se tornou famoso e milionário, outros pertencentes a famílias de classe média baixa, que dividiram a casa no período da Alemanha socialista (e que perderam acesso ao lago, por causa do muro), e também seus filhos, logo depois alguns desempregados e uns outros mais drogados, que se aproveitaram do abandono temporário (mas que pareceu definitivo) da despretensiosa moradia. Mas todos eles imantaram parte das suas vidas à pequena casa - mesmo que por um breve período, pois, cedo ou tarde, todos partiram. Não ficou ninguém e a casa ficou sem serventia. A um dia simpática construção estava prestes a ser demolida, sem memória ou função. Mas um distante descendente de uma dessas famílias que compunham este inusitado milk-shake étnico, um descendente que sequer era alemão, escreveu a história da casa e, assim, pavimentou o acesso do pequeno chalé à posteridade. Thomas, bisneto do orgulhoso médico judeu. Neto da severa Elsie. E - talvez valha a pena lembrar - filho do povo do livro.

Editora Anfiteatro, 398 páginas

P.S.: A foto foi tirada em um fim de semana que passamos na casa do Ricardo e da Angela, amigos queridos que hoje residem com os filhos em Berlim. Moram em uma região agradável e arborizada. Dista poucos quilômetros de Gross Glienicke (local da casa do lago). Lendo o livro na varanda, por um momento tive a impressão de também estar lá, à beira do lago, na porta da casa. Não era. Mas era quase.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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