"A cor da coragem", por Julian Kulski

sexta-feira, junho 28, 2019 Sidney Puterman

A incrível história de um menino que lutou dos onze aos quinze anos como guerrilheiro, nos escombros de Varsóvia, contra uma das mais criminosas e letais forças de ocupação de todos os tempos: a SS nazista. O relato é tão surpreendente que o leitor desavisado o toma por inverossímil. Mas é perda de tempo duvidar: não só o fato histórico é inquestionável, como o livro transborda de fotos, referências e links. Mais: no YouTube há diversos vídeos com depoimentos recentes gravados pelo autor, ainda vivo. E, se a história já é extraordinária pela junção da sua impetuosa ousadia com a sua inacreditável sobrevivência, ela é muito mais impactante pelo seu próprio registro. O Levante de Varsóvia é uma das páginas mais corajosas, cruéis e injustas da história das guerras. Passagem histórica absolutamente desconhecida no Brasil, foi durante muitos anos negligenciada também no Hemisfério Norte. A razão, ainda que dura, é simples: a invasão da Polônia foi o gatilho detonador da Segunda Guerra Mundial, e, a partir daí, setembro de 1939, o que aconteceu lá ficou vedado ao mundo. Dividida então entre nazistas e russos em um acordo criminoso - pois foram sócios no sequestro de uma nação soberana -, a Polônia foi ocupada integralmente pelas forças alemãs a partir do ataque nazista à Rússia, em 1941. Durante todo este tempo as conexões do país com o mundo ocidental estiveram cortadas. Três anos depois, a Alemanha desmoronava. O Reich dos Mil Anos, lutando em duas frentes, perdeu todo o terreno conquistado. A ruína alemã, entretanto, não mudou para melhor a situação polonesa. Ao fim da guerra, o Exército Vermelho de Stalin, com a muda conivência dos Aliados, tomou para si a Polônia, exprobando, prendendo e matando todos os poloneses que haviam formado em 1944 um exército guerrilheiro para lutar contra os alemães (os russos sempre viram a Polônia como uma sub-nação rebelde a ser castigada e absorvida). Aqueles que pegaram em armas e participaram do Levante, ou mesmo as inofensivas mulheres que os ajudaram, como mensageiras e enfermeiras, foram encarados como potencial ameaça à dominação política e ideológica soviética. Em seguida, a Cortina de Ferro (na brilhante definição de Winston Churchill) foi fechada e o planeta atravessou o seguinte meio século ignorando o que se passava por lá - e, não só, se ignorava o depois, desconhecia também o que teria acontecido no cada vez mais longínquo último ano da guerra. A quem diabos importaria o que se passou nos cafundós do Judas, agora que a guerra acabou e tudo serenou? Assim a primeira nação a ser invadida pelos alemães foi a primeira a ser engolida pelos russos. Parece absurdo, não é? Mas foi exatamente assim que se deu. Este "A cor da coragem" fala em pormenores deste último ano da guerra e, por incrível que pareça, é um livro singelo. A despeito de tantas mortes e atrocidades, que é sua principal matéria-prima, ele é um primor de simplicidade, no seu relato do combate contra o invasor alemão, pelos olhos de um menino-soldado. Bem mais soldado que menino, como fica claro pelo seu desempenho e atitude. A Resistência à qual se integrou era formada por grupos guerrilheiros clandestinos, que formaram o Exército da Pátria - o AK, o Armia Krajowa, que liderou o Levante. Ressalto que o abissal aprofundamento desta história se dá em um outro livro, denominado "O Levante de 44" - que, para dizer o mínimo, é magistral. Um dos mais bem pesquisados e abrangentes estudos sobre um conflito paralelo na Segunda Guerra (e que sobremodo nos ajuda a compreender todas as circunstâncias políticas do confronto mundial). E o bacana é que, retornando a este livro de Kulski, temos aqui a visão de quem rastejava sob o ataque da artilharia nazista e de quem atirava das barricadas. Soberbo pela sua vitalidade, o livro é estruturado em forma de diário (imagino que escrito de cabeça após a guerra), com Julian narrando como assistiu a invasão alemã. Filho do vice-prefeito de Varsóvia, cristão e neto de rabino, o autor teve compreensão privilegiada do que se passava, desde o primeiro momento. Apesar da pouca idade, ansiava por combater e aos treze anos foi aceito como soldado da Resistência. Seu ingresso foi facilitado porque seu antigo líder escoteiro era também um comandante de unidade. Julian, sem grandes floreios, nos oferece uma rude descrição do Levante de Varsóvia, fragmentos sombrios de um cenário que costumamos ver pela grande lente angular dos historiadores. Pela narrativa de Julian, não sabemos nada do que se passa na guerra - exceto o que ele consegue perceber do ponto de vista das posições militares que defende. Seus relatos da crueldade inominável praticada por alemães e ucranianos contra a população polonesa incluem recém-nascidos tendo a cabeça estourada contra a parede pelos primeiros e meninas semi-mortas estupradas pelos segundos. Seu cotidiano revela como eram os dias de combate de uma unidade do Exército da Pátria, se esgueirando, sabotando, emboscando, se evadindo. Matando e morrendo. No fim de tudo, após a rendição, Julian vai para um campo de prisioneiros na Alemanha, de onde, após semanas entre a vida e a morte, consegue escapar, já no fim da guerra. Foi sua sorte: por incrível que pareça, os "aliados" russos foram algozes ainda piores do que os alemães. A maioria dos poloneses prisioneiros de guerra "libertados" pelos russos foram assassinados, presos ou mandados para campos de trabalhos forçados na Sibéria. Julian escapou junto com um soldado americano e pouco depois emigrou para os Estados Unidos, onde se formou em arquitetura e se tornou um profissional requisitado, com atuação em 29 países. Não esqueceu jamais o passado. Suas memórias de infância e de guerra são convincentes. Seu relato de superação é único. Suas chances de sobrevivência eram irrisórias. Mas não se escondeu, embora tivesse muitos pretextos para isto. Sua existência me surpreende. Heróis de verdade são raros.

Editora Valentina, 412 páginas

P.S.: A montagem que ilustra o post é uma foto tirada no Uprising Museum, o belíssimo museu em Varsóvia em homenagem ao Levante. Estou justamente na ala que rende tributo aos meninos guerrilheiros. Nas mãos eu tenho a versão em português do livro, com destaque para a foto de Julien Kulski garoto. À esquerda, sobrepus uma foto do mesmo Kulski sendo reverenciado na celebração dos 70 anos do Levante. Repare na braçadeira com a Kotwitca, o símbolo da resistência e do AK.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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