"Entre amigos", por Amós Oz

domingo, julho 14, 2019 Sidney Puterman

Sempre ouvi falar bem de Amós. Um escritor com a reputação de pacifista. Um judeu nascido em Israel que pregava o entendimento entre árabes e israelenses. Partiu há pouco do planeta, pranteado por todos aqueles que preferem a via do meio, a do entendimento. Amós Oz fará falta, em um mundo em que tolerância e ponderação são artigos raros nas prateleiras do debate político. "Entre amigos" é um dos seus últimos títulos publicados. São oito contos sobre a convivência humana. Todos os personagens são chaverim, moradores do kibutz Ikhat. Guglando, descobri que o termo chaverim significa "companheiros" - uma denominação que remete à ideologia socialista que está na base do sionismo - e que os kibutz foram estabelecidos há mais de 100 anos, na Palestina. Isto aconteceu quatro décadas antes da criação de Erets Israel, como é chamado pelos hebreus o Estado de Israel. Aqui vale a pena um pouquinho de cultura de rádio-relógio (tic-tac, tic-tac, tic-tac... você sabia?). Os kibutz são cidades-fazendas comunitárias, propriedades coletivas norteadas pelo conceito de igualdade social. Sequer os membros escolhidos para liderar cada kibutz têm privilégios: os líderes cumprem as mesmas tarefas que os demais integrantes. Um dos trunfos dos kibutz é seu sistema educacional, voltado para dar às crianças uma formação completa, que vai além do ensino básico e inclui técnicas de agricultura e diversas oficinas de trabalho. Hoje existem em torno de 300 kibutz em Israel. Curioso é que em um kibutz não há circulação de dinheiro, pois não há o que comprar, haja visto que tudo é fornecido pela administração. Não há contas a pagar e o refeitório serve três refeições diárias à população. Por fim, em um kibutz as crianças não "pertencem" aos pais, e sim à comunidade. Bem, feito este preâmbulo (como disse, para o qual tive que pesquisar), nos dediquemos ao livro de Amós. Ele próprio ex-habitante de um kibutz, seus contos nos ambientam com sua experiência. Seus parágrafos gostam de pequenos detalhes e seus personagens são solitários. Parecem engrenagens: funcionam acoplados, mas cada qual no seu quadrado, ininterruptamente isolados. Apesar de co-habitarem em um sistema cooperativo, o texto de Oz nos revela a incompreensão permanente nas tão próximas relações humanas da comunidade. Colegas, casais, pais e filhos, amigos, todos dividindo - e se estranhando - na sufocante micro-célula de um kibutz. O fofoqueiro Roni, pai do vítima de bully Iuval, ambos amedrontados pela personalidade forte da mulher e mãe, Lena. Tzvi, o jardineiro que só falava em tragédias, cortejado (em vão) por Luna, uma professora solteirona (termo velho, ehm, Sidney?). Moshe, o adolescente calado, do pai entrevado que não o reconhece. Ariela e Osnat, as duas mulheres que dividiam a cama do mecânico Boaz. Nahum, pai de Edna e amigo de David, traído pelos dois. A maledicente Henia, mãe do bovino Iotam, que sonhava deixar o kibutz, e que era apaixonado por Nina, que abandonara Avner no meio da noite. O utópico e intransigente Martin, sobrevivente do Holocausto e fundador do kibutz. Ioav, o secretário-geral, o gestor e responsável, jovem e contemporizador, cujo conto o aborda na madrugada em que cumpria seu plantão de guarda-noturno. Todos ilhados no deserto, respirando o ar seco e tentando, em vão, construir a sociedade ideal. Sobressaem as contradições da pretensamente idílica vida em comum, onde todos seriam iguais, dividindo o mesmo espaço e as mesmas tarefas. Resta o ingrediente instável nesta equação, o ser humano - sobre o qual Oz constrói a sua parábola da inadequação. Na idealizada aldeia comunitária dos judeus (um imenso pré-reality show), todos se apoiam, em dependência funcional, mas não se encaixam, não se completam e não se entendem. Se os judeus não se entendem entre si, imagine com os palestinos - seus vizinhos, hospedeiros e inquilinos -, em uma terra onde o contrato social ainda hesita na denominação das partes. Após uma vida de tolerância, Amós Oz partiu deste mundo de conflitos. A nós, que aqui continuamos, cabe achar o caminho. Ainda que tateando em um labirinto de areia e pedras.

Companhia das Letras, 135 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: