"1565", por Pedro Doria

domingo, janeiro 04, 2015 Sidney Puterman

Ler é uma das maiores pechinchas da praça. A tal relação custo-benefício que neguim tanto gosta de trazer à liça não poderia ser mais recompensadora do que no relacionamento entre o leitor e o autor de um livro. A gente, que lê, paga uma ninharia - que não compra meio quilo de estrogonofe nesses restaurantes meia-boca do centro - e se apropria de um conhecimento que ao autor custou fortunas (em tempo, dinheiro e talento) para pesquisar e escrever. Uau. É trocar uma ferrari num alicate de unha. Falo isso porque fiquei feliz com o livro de Pedro Doria, sujeito jornalista que enfiou o nariz nos sebos e bibliotecas para aprender a história do Rio de Janeiro e depois nos contar. Um altruísta. Como ele mesmo diz, um dia quis saber a história da cidade e não descobriu onde. Foi fuçar e trouxe a trajetória dos Sá, e, mais que todos, de Salvador de Sá e Benevides, um herói macunaíma, de pouco caráter e muito bestunto, governador carioca que chefiou os tupis numa guerra em que derrotou os holandeses e uma rainha angolana nos confins da África (o passado, às vezes, cheira à folclore). Curioso é que por isso ganhou pouco, e, pelo que no governo usurpou, ganhou muito. Complexidades da vida. Voltando aos primórdios do Rio e ao início do livro, o autor se vale da sua boa e calejada narrativa para destrinchar a fundação da cidade, numa terra tomada de volta aos franceses - que nem grande uso andavam fazendo dela. Relata o heróico ataque à Ilha de Villegaignon (na ausência do próprio) e a morte do jovem Estácio de Sá, "sobrinho" de Mem de Sá (os dois Sás que deram origem a uma centenária dinastia), no confronto que marca o dia inaugural da história carioca. A partir daí, Pedro Doria traz sempre o Rio paripassu com as ricas cidades do Nordeste - Salvador e Recife - e, como contraponto, com a interiorana e maltrapilha São Paulo, tratada aqui como co-irmã fundadora. O autor enaltece os vínculos oficiais do Rio com Lisboa e explica que, com a transferência da tecnologia de cultivo da cana para as Antilhas Holandesas (funesto sintoma colateral da expulsão dos holandeses do Brasil) e o consequente empobrecimento de Bahia e Pernambuco, a representatividade da capital carioca mudou de patamar. E aí, além das benesses do Reino e da força bandeirante de São Paulo, o Rio, naqueles tempos difíceis, respirou viabilizado pela firme presença dos jesuítas. Dessa maneira, a cidade se viu protegida e, ainda que pobre, sobreviveu. Pondo de lado a história graúda, fruto de abundante traça e muita síntese, as curiosidades salpicadas no livro divertem. O primeiro carnaval carioca foi organizado para puxar o saco do rei português. O Rio foi por um século uma cidade indígena, com portugueses casados com índias, com filhos mamelucos e escravos também índios (enquanto a cidade de Salvador tinha 3.000 famílias brancas e a de Recife 2.000, o Rio de Janeiro tinha 150). E por aí vai. O livro é bom e, para os que, como eu, são apaixonados pela história do Rio, essa descrição dos pormenores é irresistível. Quem queira fazer um tour imaginário pela cidade em seu nascedouro que vá à página 146, suba os morros e contorne os pântanos. Ou, como aconselha Doria, por cautela, pegue uma canoa e vá pelo mar. Decida-se. Mas, pena, nem só de paisagens luxuriantes e gordas virtudes vive esse aprazível compêndio: tem entre suas fraquezas uma capa botúlica, com o título semi-estourado na caixa superposta sobre a ilustração sangrada. Não é solução gráfica das melhores, por cansada, nem eficaz, por descuido. A bela imagem de fundo, um mapa de época, está oculto pela caixa, a qual, suavemente transparente, busca amenizar a própria presença permitindo a tênue visão do que por opção esconde. Outra bola fora são os "olhos" (destaques que reproduzem o texto), distribuídos aleatoriamente por uma dúzia de páginas, sem com isso trazer a mais ínfima contribuição à obra - nem funcionalidade, nem estilo. Má ideia. No mais, um livro saboroso sobre a história da nossa terra, escarafunchada com propriedade por um colunista de tecnologia (o que é inusitado e cosmopolita, características que tão bem se encaixam nessa cidade mal-resolvida, erguida nesse lugar exuberante). Por pura provocação, Doria fecha o livro pondo lugar e data: "Gávea, agosto de 2012". Isso é o Rio. O próprio endereço tem um quê de desbunde. Desbunde?? Periga de, em você não sendo um carioca das antigas, não entender...

Nova Fronteira, 277 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

Um comentário:

  1. Comprei o livro por impulso e tive o mesmo pensamento que vc. O cara ralou para colocar essa história e eu aqui lendo assim... "facinho" ! Muito bom. Espero que muitos brasileiros possam ler este livro !

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