"Maldita guerra", por Francisco Doratioto


Em mais de meio milênio de história, o Brasil só teve uma única "grande" guerra. Contra o Paraguai. Mesmo assim, não sabemos quase nada sobre porque essa guerra começou, como poderia ter sido evitada e quem de fato fez o quê.

Depois de ter marcado duas ou três gerações, ela literalmente caiu no esquecimento.

O assunto voltou à tona após um longo período de desinteresse. No final dos anos 70 foi lançado "Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", por Julio José Chiavenatto. Vivíamos os estertores da ditadura e um sudamericanismo romantizado estava em voga. Eu, universitário adolescente, achei o livro o máximo. Combinava com a minha camiseta do Che Guevara.

O autor se baseava na obra "Guerra del Paraguay: un gran negocio!", do argentino Leon Pomer (professor da USP e da Universidade de Campinas). O texto de Pomer fôra publicado dez anos antes na Argentina. Tanto ele como Chiavenatto pintavam como estadistas uma notória linhagem de ditadores paraguaios, de Francia a Solano Lopez (cá pra nós, uma clara inversão histórica).

Embora sua narrativa fosse desprovida de fontes e soasse inverossímil, "Genocídio americano" se tornou um best-seller, com dezenas de edições. Minha 1a edição eu emprestei para alguém, que jamais se animou a devolver. Tempos depois, comprei um novo exemplar - já na 23a edição (!).

O ponto fulcral de Chiavenatto é que Solano erigiu o Éden na pátria guarani. Havia justiça social e educação para todos. Pelas suas contas, o Paraguai rumava para se tornar uma potência tecnológica. Isso teria assustado a Inglaterra, segundo o jornalista. E aí o Império Britânico, receoso do Paraguai, teria financiado o Brasil, a Argentina e o Uruguai para destruírem o vizinho.

Este discurso nonsense foi posteriormente adotado pela ditadura paraguaia do general Alfredo Stroessner (o mais longevo governo ditatorial da América do Sul no século XX, indo de 1954 a 1989). A ditadura curtiu instalar o déspota facínora Solano Lopez no pedestal de herói nacional.

A depreciação do exército convinha à esmulambada esquerda brasileira da época. Embora pareça contraditório que o livro de Chiavenatto fosse ao mesmo tempo contra a ditadura no Brasil - ao demonizar Caxias e, por extensão, o general-presidente Geisel - e a favor da ditadura no Paraguai - ao exaltar Solano e, assim, o general-presidente Stroessner -, não difere muito do que temos agora.

(Atualmente o Brasil tem um governo - democrático - que apoia ditaduras mundo afora.)

De toda maneira, hoje geral sabe que qualquer narrativa tem poder para colar. A do Chiavenatto colou. Se prestou a combustível de um vetor ideológico e durante alguns anos não precisou enfrentar o contraditório. Chico Doratioto foi um dos que vieram para resgatar a verdade histórica.

Não fazia sentido que um evento tão traumático na história do Brasil ficasse restrito a um registro panfletário. Vou me arvorar aqui a resumir como o historiador interpretou os acontecimentos. Pesquisei uma ou outra coisa fora do livro, para ajudar a mim mesmo a entender essa bagaça.

A província paraguaia era fechada ao mundo, tanto comercial, quanto diplomaticamente. Francia, seu ditador por 29 anos, temia a gula expansionista das províncias fronteiriças. Além disso, era mais viável exercer um controle férreo dos rincões paraguaios mantendo os vizinhos fora do seu quintal.

Ou seja: o Paraguai era uma "ilha" cercada de mato e cheia de índios, que pouco comerciava.

Como revela Doratioto, "durante a ditadura francista, o diminuto comércio do Paraguai com o exterior, sob controle estatal, deu-se com a província argentina de Corrientes, por meio do porto de Villa del Pilar, e com o Brasil, pela Villa de Itapúa". O mínimo do mínimo. Entrava pouco dinheiro.

Só com a morte de Francia, em 1840, o país se articulou politicamente e se abriu para o continente.

Criou-se o lastro externo para o Paraguai proclamar sua independência, em 1842. O primeiro país a reconhecê-la foi o Brasil, em 1844. Seu primeiro presidente foi Carlos Antonio Lopez, sucessor de Francia e pai de Solano Lopez. O encarregado de negócios brasileiros em Assunção, José Antônio Pimenta Bueno, firmou excelentes relações com o presidente paraguaio e se tornou seu conselheiro.

O diplomata brasileiro, a convite de Lopez, contribuiu inclusive na redação de leis e decretos. Foi ele quem sugeriu a criação do primeiro jornal do país, o Paraguayo Independiente. Com isso, dá pra notar que Brasil e Paraguai eram - na medida do possível - bem amiguinhos. Uma exceção por ali.

O sul do continente sul-americano era um balaio de gatos. O que é hoje a Argentina era uma barafunda mal costurada. Conflagrada entre a província de Buenos Aires e a Confederação Argentina (que reunia outras treze províncias), era governada com mão de ferro por Juan Manuel de Rosas. Enquanto penava para ter o controle da própria região, ainda queria anexar o Paraguai e o Uruguai.

A República Oriental do Uruguai também não ficava nada atrás. Era um apêndice recém extirpado do território brasileiro (que por alguns anos foi chamado pelo Brasil de Província Cisplatina). Aquele último naco de Brasil - descendo em linha reta até a margem oriental do rio Uruguai - era uma boneca de pano, puxada para lá e para cá por portugueses e espanhóis, há um longo tempo.

O último a fazer uma graça tinha sido D. João VI, que mandou o exército português ocupar o Uruguai (que ainda não o era). A Bacia do Prata era estratégica e a marinha portuguesa era bem armada o suficiente para garantir a posse dos portos de Colônia de Sacramento e Montevidéu.

A região foi temporariamente incorporada ao Brasil, o que satisfez a alguns dos estancieiros e criadores de gado e insatisfez a um número muito maior. Em poucos anos uma revolta foi tramada, se aproveitando do esfacelamento político brasileiro: D. João partira, D. Pedro I proclamara a independência e o exército português se picou de volta para a Europa.

Este Império fraco foi a senha para que os argentinos resolvessem sequestrar a província Cisplatina como a décima-quarta das suas províncias. Diante da afronta, a guerra foi declarada por D. Pedro I. Deu ruim. Apesar de controlarmos os portos, levamos pau em Passo do Rosário e em Bagé.

Eu sei que é difícil de acompanhar. Pra gente agora, no século 21, toda essa ladainha é remota e confusa. E parece irrelevante. Só que não, se é que você quer entender a América do Sul. Sigamos.

O exército argentino, de Lavalleja, se estabeleceu no interior do Rio Grande do Sul, mas com uma logística precária. Por outro lado, a Bacia do Prata permanecia dominada pela esquadra brasileira. O impasse bélico congelava o tráfego comercial - inclusive de ingleses com argentinos.

Foi o suficiente para a diplomacia inglesa intervir e amarrar uma saída política, criando a acima referida República Oriental do Uruguai, independente a partir de 1825, com Lavalleja como seu presidente. O que não evitou o conflito interno, entre o Partido Blanco, governista, e o Partido Colorado, oposicionista, sob o comando de Rivera, outrora aliado de Lavalleja.

Ou seja, o Uruguai foi a solução do problema, mas era um problema em si. Lavalleja era apoiado pelo estancieiro gaúcho Bento Gonçalves, que era a favor de separar o Rio Grande do Sul do Império brasileiro. Rosas também apoiava os blancos e Lavalleja - mas sempre visando anexar o Uruguai. 

(Como se vê, aquilo ali nunca foi fácil. Mas sem tentar explicar esse imbroglio peçonhento, fica difícil mensurar por que diabos afinal o Paraguai se meteu a fazer o que fez. Bola pra frente.)

Brasileiros proprietários de terras no Uruguai se viram prejudicados e se queixaram do novo governo uruguaio. O governo brasileiro prometeu suporte e se alinhou com os colorados. Se aliou também à Urquiza, governador de Entre Rios, província argentina hostil a Rosas.

Neste intrincado quebra-cabeças geopolítico, o Império brasileiro era um importante parceiro do Paraguai. Para o Brasil, a preservação da soberania paraguaia e da integridade do seu território impediriam - ao menos em tese - que a (futura) Argentina anabolizasse sua musculatura. Quanto maior a fronteira com os argentinos, pior para o Império.

E todos disputavam o mesmo tesouro: a Bacia do Prata. Para os argentinos e uruguaios, era seu principal porto. Para o Brasil, era o acesso para o Mato Grosso (somente alcançável via marítima-fluvial, pois, por terra, era impraticável). Para a Confederação Argentina, era o escoamento da sua produção. E, para o Paraguai, era a comunicação com o mar.

Anote bem aí. Porque, em última instância, a Guerra do Paraguai nada tinha a ver com o Paraguai. A guerra foi travada visando garantir e perenizar o acesso paraguaio à Bacia do Prata.

Este acesso fora assegurado após o Acordo de San Nicolás, em 1852, entre as treze províncias argentinas (a Confederação Argentina) e o Estado de Buenos Aires. As duas unidades políticas reconheceram a independência do Paraguai e franquearam a navegação do Prata e do rio Paraná.

Ao contrário do afirmado nas obras controversas de León Pomer e Julio Jose Chiavenatto, que foram tema de post recente aqui no blog, a Inglaterra mantinha uma estreita parceria estratégica e comercial com o Paraguai. O país sul-americano, longe de representar uma ameaça, era seu freguês.

No período compreendido entre 1850 e 1870, há o registro de ao menos duzentos ingleses trabalhando no Paraguai, engajados no desenvolvimento da infra-estrutura paraguaia (Doratioto cita quatro fontes acadêmicas para fundamentar sua afirmação, enquanto Chiavenatto não oferece fonte nenhuma em seu texto, fala o que lhe dá na cabeça e fica por isso mesmo).

Segundo o Chico, os britânicos estavam em Assunção não só como subordinados, mas também como líderes. William K. Whytehead era o engenheiro-chefe do Estado paraguaio, George Thompson era o engenheiro-chefe do exército paraguaio e William Stewart era o cirurgião-chefe do exército.

Em números, 75% das importações paraguaias eram britânicas, e chegavam ao Paraguai pelo porto de Buenos Aires, onde os comerciantes britânicos concediam aos importadores paraguaios um generoso crédito de oito meses para pagamento das mercadorias.

Enquanto o Paraguai mantinha um relacionamento estreito com os ingleses, era o Brasil que se opunha aos interesses da Inglaterra. Ao Império britânico, por razões comerciais, convinha privilegiar a unificação argentina sob o controle do Estado de Buenos Aires. Já ao Brasil convinha a continuidade de uma Argentina dividida, e por isso o Império mantinha um acordo secreto com a Confederação.

Repare que este cenário, complexo, é o exato oposto da versão ideo-simplista de Chiavenatto. 

Mais oposta ainda é a realidade da sociedade paraguaia. A suposta igualdade social e educação avançada que Chiavenatto jurava existir no Paraguai é uma baita duma quimera, para surpresa de... ninguém. Segundo Doratioto, havia "uma promíscua relação entre os interesses do Estado e os da família López, a qual soube tornar-se proprietária 'privada' do país enquanto esteve no poder".

A população paraguaia era explorada pelo Estado. A produção do item de maior peso nas exportações paraguaias deixa isso claro: "Em 1860, uma libra-peso de erva-mate era vendida em Buenos Aires a um vigésimo da libra esterlina", informa Doratioto, que traz números fundamentados.

"O Estado paraguaio pagava 25 libras esterlinas por arroba aos que tinham permissão para explorar os ervatais", diz. Os vínculos do Estado eram com a protegida burguesia rural, que, por sua vez, "pagava um centésimo de libra esterlina aos trabalhadores empregados na obtenção do mate".

A aliança entre o poder constituído e a alta burguesia é uma fórmula trivial. No Paraguai, ela era ainda mais acintosa, pelo férreo controle policial que a ditadura exercia sobre a sociedade local.

Em 1854, Solano, filho de Carlos Lopéz, foi designado ministro plenipotenciário - e enviado à Europa para comprar armamentos e estabelecer contatos comerciais. O Paraguai visava seu fortalecimento militar, lhe permitindo ser mais truculento nas discussões territoriais e robustecer seu domínio fluvial. 

O enviado do Paraguai se estabeleceu na cidade-luz. Um capiau milionário em Paris.

Logo Solano caiu na rede (ops, uma cama com dossel) de Eliza Lynch, uma irlandesa de atribulada vida afetiva. Aos 19 anos, já era separada do primeiro marido, um veterinário francês, abandonado por ela pelo amante, um oficial russo, a quem trocaria, definitivamente, por um ditador paraguaio.

Os historiadores europeus são unânimes em afirmar que a moça era profissional.

Essa é também a abordagem da autora Anne Enright, irlandesa como sua protagonista, em "The pleasure of Eliza Lynch". Ela é apresentada como uma esperta prostituta, que engravida de Solano no primeiro encontro entre os dois. Um artigo sobre o livro diz que "took only one night for her to bewitch him into asking her to play Josephine to his Napoleon".

A referência procede. Solano era um admirador de Napoleão e presenteara regiamente seu sobrinho e sucessor, Napoleão III. De volta à Assunção, levando a tiracolo sua cortesã estrangeira (com quem casou) e um farto investimento bélico, o casal era nitroglicerina pura.

O cenário no Chaco paraguaio estava sob medida para os anseios napoleônicos (leia-se megalomaníacos) de Solano. Após se livrarem de Rosas, o bom relacionamento entre o Império do Brasil e o Paraguai já não era o mesmo. Tinham agora agendas distintas e ambas versavam sobre o controle da navegação no Rio Paraguai, que dividia os dois países.

Recapitulando: o Cone Sul tinha arrumado as placas tectônicas, com os dois grandões satisfeitos com o arranjo. O Uruguai era um mascote nervoso. O Paraguai era ou um coadjuvante ou um estorvo. 

Em 1856, para impor suas regras quanto aos rios, o Brasil ameaçara o Paraguai com a guerra, para a qual o governo paraguaio não estava (ainda) preparado. É como quem tem um revólver e diz que vai dar um tiro. A ameaça funcionou, ao menos no papel: um tratado foi assinado, acatando o pleito brasileiro. Na prática, porém, esse acesso continuou dificultado.

Temiam-se mutuamente. O Brasil precisava de livre acesso aos rios para poder proteger as suas fronteiras. O Paraguai temia que a concessão do livre acesso permitisse ao Brasil incorporar parte do território paraguaio ao Império. Por enquanto, a bola estava com o Brasil.

O prosseguimento do conflito interno argentino entre Buenos Aires e a Confederação, com suas idas e vindas, repercutia fortemente no Uruguai. Na Batalha de Pavon, Mitre derrotou Urquiza. Os orientais, por meio de colorados e blancos, espelhavam o confronto.

Pondo definitivamente lenha na fogueira, Solano Lopez, com a morte do pai, é "eleito" presidente para um mandato de dez anos. Sua contraparte uruguaia, Bernardo Berro, endurece contra o Império brasileiro. Venâncio Flores, colorado, invade o Uruguai, com apoio de Buenos Aires. Uruguaios costuram então aliança com as províncias argentinas, blancas, e com Solano, que exulta.

Vai vendo. No início de 1864, Uruguai e Argentina (que negava financiar os colorados) rompem relações diplomáticas. De la Cruz Aguirre assume o governo uruguaio e recrudescem as hostilidades contra os brasileiros proprietários de terras no Uruguai. O Brasil reclama e Aguirre ignora. Em julho, Aguirre instiga Solano a atacar na Bacia do Prata.

Já cheio de si e vendo adiante, Solano, à frente do governo paraguaio, rompe com o Império e ameaça atacar o Brasil. No Rio de Janeiro, a corte faz troça da ameaça paraguaia. Não deviam...

Em outubro, Brasil e Argentina celebram o Acordo de Santa Lúcia, em que combinam de se apoiarem mutuamente em caso de agressão uruguaia - mas não declaram guerra ao Uruguai. Enquanto isso, Solano baba para que estoure o confronto, para que ele possa entrar na "brincadeira" como um aliado solidário e fature com o pega-pra-capar.

Osorio invade o Uruguai, mas ao contrário do que ansiava Solano Lopez, armado até os dentes e com seu exército em ponto de bala, os colorados conquistam o poder no Uruguai e aderem aos já amiguinhos Brasil e Argentina. Foi um golpe duro nas expectativas belicosas do Paraguai.

(Aí, mermão, quando tu já investiu toda a tua grana em rifle, granada e canhão, passou anos gastando pra fazer de civil soldado, você parte pro tudo ou nada. Ou vai ou racha...)

Doratioto traz os números (da época) dos quatro países que no futuro se uniriam no "Mercosul".

O Brasil tinha 9 milhões de habitantes, com um comércio exterior montando a 24 milhões de libras esterlinas (o dólar de então). Arrecadava quase 20% disso em impostos, quatro milhões e meio de libras esterlinas. O efetivo do exército brasileiro era de 18 mil soldados. Ou seja, 0,2% da população.

A Argentina ficava bem abaixo. Tinha 1,7 milhão de habitantes e faturava 9 milhões de libras com comércio exterior. Os impostos davam também quase 20%, 1,7 milhão de libras esterlinas. O efetivo do exército argentino era um terço do brasileiro: 6 mil soldados. 0,35 % da população.

O Uruguai, coitado, era um Amapá demográfico. Tinha 250 mil habitantes. Mas, proporcionalmente, faturava bem mais que todos os outros: 3,6 milhões de libras esterlinas com comércio exterior e arrecadava 870 mil libras esterlinas com impostos, superando os 20%. O efetivo do exército era metade do argentino: 3 mil soldados, o que dava 1,2% da população.

Os números do Paraguai dão uma boa contextualizada na parada. Olha isso.

O Paraguai tinha 400 mil habitantes. Seu comércio exterior era irrisório: 560 mil libras esterlinas. Mas arrecadava 314 mil libras com impostos, passando dos 55% obtidos com o comércio. Agora, pasme para o efetivo do exército: 77 mil soldados, o que dava praticamente 20 % da população.

Em termos percentuais - relativos -, o Paraguai tinha 1.000 vezes mais soldados do que o Brasil.

O grande problema dos paraguaios é que a guerra começava regida pelos números relativos, mas terminava condicionada pelos números absolutos...

Ainda assim, o efetivo do Paraguai era espantoso. Partindo da premissa, plausível, que metade dos 400 mil habitantes eram mulheres, sobravam 200 mil homens. Projetando uma proporção igualitariamente distribuída para as idades de zero a sessenta, 90% de toda a população masculina entre 15 e 40 anos estava alistada no exército paraguaio e integrava seu efetivo.

O que torna escancarada e inegável a sua determinação em fazer guerra na ofensiva. 

Após vermos os números, respondo à pergunta retórica de alguns parágrafos atrás: Tudo ou nada? Vai ou racha? Solano foi para dentro das suas vítimas, óbvio. E era uma baita ameaça para os três países, com um alto potencial inicial de causar estragos. Mas, com a inevitável extensão do confronto, como um país com aquela economia iria sustentar os custos da guerra? 

Solano precisava vencer rapidamente, numa época em que o mundo era movido a manivela. Aí o simples desenrolar dos fatos nos convida a uma reflexão. Aquela era uma guerra insustentável.

Só mesmo a compulsão de Solano Lopez em virar Napoleão de hospício pode justificar as atitudes paraguaias a partir daí. Sua paranoia esquizofrênica iria destruir e condenar o seu país a um futuro indigente, ao custo de centenas de milhares de vidas interrompidas pelo confronto.

Em dezembro de 1864, Solano ordena a invasão do Mato Grosso, com 7.700 soldados. Atacam o Forte Coimbra, invadem Corumbá e Miranda. Seguem até Coxim. O exército brasileiro bate solenemente em retirada. A população civil é uma debandada só. Fugiram os civis e os soldados.

Avisado, o governo promulga um decreto convocando 15.000 integrantes da Guarda Nacional para irem defender o território brasileiro. Você foi? Eles também não. Receber soldo e ostentar patente é bom, já ir para a guerra... E os poucos que se apresentaram desertaram em seguida. Problema.

A "solução" foi um novo decreto, criando os "voluntários da Pátria". Você conhece. Aquela rua em Botafogo, que liga a praia de Botafogo ao Humaitá. Pois é. Quem se voluntariasse ganhava uma grana e também umas terras (que era o que não faltava no Brasil daquela época).

A odisseia fracassada - que foi o caso dessa expedição dos "voluntários da Pátria" - é contada em vívidos pormenores por Alfredo D'Escragnolle Taunay em "A retirada da Laguna", que postei semanas atrás. Foi um tormento e um fiasco. Um fracasso de estratégia, de logística e de finalidade.

Em março de 1865, o Paraguai declarou guerra à Argentina, só porque esta não permitiu que o exército guarani cruzasse seu território para invadir o Brasil (se você olhar nos mapas, verá que há uma larga "língua" de território argentino entre os dois países). A supremacia do contingente paraguaio era esmagadora.

Solano manda uma flotilha se apoderar do porto de Corrientes. Se apropria dos navios fundeados e faz centenas de prisioneiros. "A força invasora, chamada de Divisão do Sul, alcançou 22 mil homens", detalha Doratioto. 

A situação tinha suas complexidades. Os correntinos eram argentinos, mas falavam guarani, como os paraguaios. Donde Solano imaginava possível que eles se bandeassem para a causa paraguaia. A ideia era boa, mas não deu muito certo porque o exército paraguaio roubou tudo o que encontrou.

"Muitos artigos roubados foram entregues, como presente, a Solano López, sendo Elisa Lynch obsequiada com um piano retirado da casa de um habitante de Corrientes", explana o historiador. Porteira arrombada, o ditador relaxou e liberou a roubalheira. Os locais, óbvio, queriam matá-los. Mas foram eles que acabaram sendo mortos, o que fez dos paraguaios bem pouco populares.

O grave dessa história toda é que a aceitação local ao Paraguai era essencial para o plano de Solano dar certo, mas "a falta de adesão de correntinos e entrerrianos a Solano Lopéz foi o primeiro e importante fator para inviabilizar seu plano de campanha no Prata", afirma Doratioto. 

Ou seja, o primeiro movimento do invasor já deu errado. E foi só o primeiro erro de muitos.

Com o Brasil e a Argentina sob invasão paraguaia, e com o novo governo uruguaio (também sob ameaça de se ver invadido) politicamente ligado aos dois maiores países, o Paraguai já tinha voluntariamente definido quem lutaria contra quem.

Repitamos: aos olhos de hoje, soa hilário que as atuais potências do Brasil e da Argentina, ainda por cima com a adesão do Uruguai, se unissem contra o tacanho e miserável Paraguai. Tipo Rio, Caxias e São Paulo contra Nilópolis. Mas o contencioso da época era totalmente favorável aos paraguaios.

Se, naquele cenário de curto prazo, o poderoso era o agressor (o Paraguai), o problema é que a guerra não se resolveria no curto prazo - ainda mais no século 19, ainda mais nos confins da América do Sul. Faltou tutano ao Solano. Assim, com base na ação mercurial e inconsequente dos paraguaios, os vizinhos Brasil, Argentina e Uruguai assinaram a Tríplice Aliança, o acordo que iria f... o Paraguai.

Até que o Paraguai capitulasse, porém, muitas cabeças iriam rolar. Centenas de milhares.

A guerra daquela época - principalmente entre os países pobres, não europeus - era um rol de dias miseráveis entremeados por batalhas curtas e sanguinárias. Os exércitos marchavam e acampavam, meses a fio, tentando se manter saudáveis, até que chegasse o dia de trocarem chumbo. 

O Paraguai acreditou que poderia atacar sem ser atacado. Apostava que poderia deter qualquer avanço fluvial, com suas fortalezas em pontos estratégicos dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Portanto, para vencer Solano Lopéz, seria necessário avançar rio acima e superar suas defesas.

Assim, há cento e sessenta anos, no glorioso dia 11 de junho de 1865, houve a célebre batalha do Riachuelo, nome que batizou bairro, rua e até loja de eletrodomésticos no Brasil.

Solano monitorou a subida da portentosa esquadra brasileira, inegavelmente a maior da América do Sul (fora construída para operar no mar aberto, mas não tem tu, vai tu mesmo). A frota composta por 9 navios de guerra avançou. A fragata Amazonas, as 3 corvetas e as 5 canhoneiras foram pro pau. 

O audacioso plano paraguaio não era destruir a frota brasileira, e sim tomá-la. Seria certamente um golpe demolidor na capacidade imperial de levar a guerra ao Paraguai. Para tanto, com uma frota de oito navios e sete chatas (plataformas flutuantes), a ideia era cercar os navios brasileiros durante a madrugada, subir ao convés, dominar a tripulação e assumir o controle da armada. 

Lopéz era bom de plano, mas falho na execução. Para dar certo, a abordagem teria que se dar ao nascer do sol, com a frota paraguaia já pronta para atacar. Mas os guaranis se enrolaram durante a noite, a zorra toda atrasou e, quando atacaram, às 9h da manhã, o sol já ia alto.

Com o atraso (dizem que causado pelo próprio Lopéz), o prudente seria terem abortado o ataque. À luz do dia, o fator surpresa iria para as cucuias. E não só: para a abordagem dos navios brasileiros, feitos para o mar, bem mais altos que a frota paraguaia, eram necessárias escadas e ganchos.

Você levou as escadas? Os ganchos, ao menos? Pois é. Meza e Robles (os comandantes paraguaios) também não. Então, o plano concebido para sacramentar a supremacia paraguaia na Bacia Platina foi um fiasco. A ponto da principal arma da nossa esquadra imperial foi se valer do tamanho da fragata Amazonas, que saiu abalroando os bem menores navios paraguaios, todos de madeira.

O Brasil, comandado pelo Almirante Barroso, ganhou a batalha. Há muitos que até hoje dizem que esta foi a batalha decisiva da guerra. Outros, entre os quais me incluo, acham que não. Se a guerra começou em dezembro de 1864, a Batalha do Riachuelo foi em junho de 1865 e a guerra só foi acabar em março de 1870, cinco anos depois... O tempo já fala por si só, né não?

O contencioso fluvial era apenas um dos teatros de guerra. O Paraguai estava levando a guerra a outros palcos - como São Borja e Uruguaiana, no Rio Grande. O numeroso exército paraguaio, com o coronel Estigarribia à frente, não teve dificuldade em ocupar os dois municípios gaúchos.

Com a mesma precariedade defensiva do Mato Grosso, o Império não tinha contigente para defender São Borja. A Guarda Nacional presente fugiu. A população idem. Os paraguaios queimaram, saquearam e estupraram. Solano tinha dito para não fazê-lo. Estigarribia fez ouvidos moucos.

Dali partiram para invadir Paso de los Libres, no lado argentino, defronte à Uruguaiana. A proteção da fronteira brasileira coube ao General Canabarro, que garantiu aos moradores de Uruguaiana que não se preocupassem, que a cidade seria defendida e que a população não carecia de fugir. 

Ordenou fazer trincheiras. Canabarro estava à frente de uma divisão de 7 mil homens, mas mandou o General Caldwell defender a cidade com 200 homens da Guarda Nacional. Não deu certo. Canabarro não veio em socorro, todos fugiram e os paraguaios invadiram e saquearam Uruguaiana.

Vale aqui mostrar que o passado e o presente estão mais próximos do que imaginamos. Diz Doratioto que um espião paraguaio sediado em Paso de los Libres registrou que "a corrupção no Rio Grande do Sul era tão grande, que esse era o motivo de, em dezembro de 1864, não terem sido comprados cavalos para as poucas forças brasileiras existentes na província".

A situação estava tão preta para o Império que Dom Pedro II resolveu intervir pessoalmente.

"O clima de inércia, insubordinação e anarquia em que se encontrava o Sul levou Dom Pedro II a decidir-se por ir à província meridional", revela o historiador. "Às objeções apresentadas pelo Conselho de Estado a essa viagem, o monarca respondeu 'se me podem impedir que siga como Imperador, não me impedirão que abdique, e siga como voluntário da pátria".

Não foi uma bravata - até porque se impunha uma mudança radical de postura. "Se dependesse exclusivamente dos chefes militares do Rio Grande do Sul, os paraguaios permaneceriam na província o tempo que desejassem", acredita o autor. Pedro II partiu no dia 10 de julho, no navio Santa Maria.

A chegada do Imperador contribuiu decisivamente para o esforço de guerra. O olho do dono é que engorda o gado. Partindo de Concórdia, uma força aliada denominada "Exército de Vanguarda" - reunindo 4.500 soldados argentinos, 2.500 soldados uruguaios e 1.500 soldados brasileiros - subiu o rio Uruguai, pelo lado argentino, até Paso de los Libres, e pegou os paraguaios desprevenidos.

"Desprevenidos", sim, principalmente porque raramente se preveniam... Os batedores paraguaios monitoraram o avanço e avisaram Estigarribia, que nada preparou para recepcionar os aliados. O resultado foi catastrófico para os guaranis. Morreram 83 aliados e foram feridos 257 soldados. Mas as perdas do outro lado foram acachapantes: 1.700 mortos, 300 feridos e 1.200 prisioneiros.

Solano não gostou nem um pouco do resultado. "Sinto a mais viva pena em saber que muitos paraguaios foram feitos prisioneiros, porque é necessário que o soldado paraguaio morra e não se renda, vendendo caro sua vida aos inimigos, antes de servir de escárnio e ser objeto de crueldades e infâmias", escreveu.

A lógica do ditador lembrava aquela que Hitler exigiria da juventude alemã, 80 anos depois. "A mais importante arma que temos na guerra deve ser a de vencer ou morrer, jamais render-se", afirmou. "Assim nos imporemos ao inimigo que não sabe morrer". O fim foi semelhante.

Uruguaiana estava cercada, com os paraguaios dentro e os exércitos da Tríplice Aliança do lado de fora. Flores tinha comandado as tropas na Batalha de Jataí (a primeira vitória aliada), mas agora os generais brasileiros queriam a honra do comando, como disposto no tratado. Os hermanos deram piti. Não fosse a chegada do Imperador, a aliança poderia ter melado. O comando foi então entregue ao general Porto Alegre.

Os invasores paraguaios não tinham se provisionado para estarem sob cerco. Comeram, estupraram e depredaram. Porém, cercados, descobriram que não havia mais comida.

"Eles haviam consumido com prodigalidade e, mesmo, inutilizado a grande quantidade de víveres que aí encontraram. Como consequência, para se sustentarem, recorreram à carne de cavalo, de gatos, de cachorros, de ratos e mesmo de insetos, que encontravam no interior dos muros", conta.

A força aliada, que contava com 17.400 soldados, sendo 12.400 brasileiros, também passava fome, mas nem tanto. Não é fácil a logística de alimentar esse pessoal. Porém, com esse contingente, mais 42 canhões, e com Tamandaré comandando uma força fluvial de 5 vapores, 2 chatas e 12 canhões, o resultado da batalha contra os famélicos 5.200 paraguaios sitiados não poderia ser outro.

O ataque estava marcado para o meio-dia do dia 18 de setembro de 1865. Estigarribia, ainda que sempre bêbado, sabia contar, e achou mais prudente se render. Os generais brasileiros acharam também a ideia ótima, e aceitaram todas as condições de rendição propostas pelo comandante paraguaio (bastante esquisitas aos olhos de hoje - os oficiais paraguaios foram morar no Rio de Janeiro, às expensas do Império, e os soldados, também bêbados, montaram na garupa dos soldados brasileiros).

A primeira fase da Guerra do Paraguai tinha acabado. A invasão do Rio Grande fora rechaçada; a do Mato Grosso não, mas não ia dar em nada. Militarmente, era estéril. O Império, a partir daí, iria postular a rendição de Solano Lopéz, que não capitularia. As posições se inverteriam.

Em poucos meses, a guerra dos paraguaios já era defensiva e o invasor seria invadido. 

(Em tempo: minha intenção ao me debruçar sobre a Guerra do Paraguai e este minucioso trabalho de Francisco Doratioto não é a de contar o passo-a-passo da guerra - e sim descomplicá-la).

Com as derrotas no Riachuelo e Uruguaiana, os paraguaios enfiaram a viola no saco e recuaram os arfes, para lamber as feridas e organizarem a defensiva. A esquadra brasileira chega a Corrientes, com 18 navios e quatro encouraçados. Mas não ataca - no que é alvo de críticas de brasileiros e aliados. O fato é que o almirante Tamandaré não era muito chegado num ataque.

Em abril de 1866, enfim o Brasil estava a postos para invadir o Paraguai. Dos 65 mil soldados aliados na região, 42 mil (29 mil brasileiros, onze mil argentinos e dois mil uruguaios) compunham a força de ataque. Solano dispunha de 30 mil homens no acampamento fortificado de Passo da Pátria, à espera.

Mas as forças brasileiras, se numerosas, eram fracas. Inexperientes e indispostas. Seus comandantes hesitavam. Os argentinos troçavam da "cautela" brasuca. Apesar da ostensiva superioridade numérica, a cadeia de comando imperial sempre esperava por um melhor momento. Até que chegou alguém para fazer diferença. Seu nome era Manoel Osorio. Ele lideraria a invasão e exigiu ser o primeiro a pisar no Paraguai.

"Durante a guerra, tornou-se lendária a coragem de Osorio, ao liderar cargas de cavalaria, ao colocar-se, seguidamente, ao alcance das balas inimigas e ao participar de combates de corpo a corpo", frisa o historiador. "Ele foi, sem dúvida, o oficial brasileiro mais admirado pela tropa aliada".

Lendário ou não, o desassombro de Osorio foi criticado. Diziam que ele se arriscava em demasia, "ao ter-se antecipado à ação ofensiva do 1o Corpo de Exército brasileiro que desembarcava no Passo da Pátria. Afinal, não era missão de um comandante-em-chefe ir à frente de suas forças e, menos ainda, de apenas um piquete de doze cavalarianos que se tornavam alvo fácil".

Bem, logo atrás dos doze vieram 2 mil homens, que avançaram em meio ao terreno alagado até o forte Itapiru, debaixo de granizo. À tarde chegaram mais 10 mil homens e, à noite, mais 5 mil. Os 4 mil paraguaios ainda tentaram atacar as tropas de Osorio, mas recuaram e aceitaram a derrota.

A partir daí, uma série de batalhas se sucederiam. A maioria resultaria em vitórias aliadas. Umas poucas seriam sucessos paraguaios. O grande inimigo brasileiro era o terreno inóspito - alagado e desconhecido. O Paraguai, que passara os últimos 50 anos fechado ao mundo, jamais fora mapeado.

Sem contar que o soldado paraguaio era um adversário feroz, ainda que debilitado. "Impressionaram a magreza e a nudez dos soldados paraguaios; os feridos, muitas vezes com gravidade, comiam vorazmente farinha e carne que lhes eram oferecidas", registrou o coronel Vilagran Cabrita.

A campanha em momento nenhum seria fácil. Além da quantidade de soldados dispostos (que jeito, né) a morrer, Solano se fiava que a fortaleza de Humaitá seria inexpugnável.

"A fortaleza estava a uns dez metros acima do nível do rio Paraguai e sua artilharia controlava vários quilômetros dessa via fluvial", assinala Doratioto. "Possuía uma trincheira de treze quilômetros. À sua volta havia um enorme terreno, com profunda lagunas e carriçais, compostos de mata de cana-brava, difícil de ser penetrada, intermediada por bosques impenetráveis e espessas moitas".

Os esteiros Bellaco e Rojas faziam parte do "quadrilátero" defensivo de Lopéz. "Os esteiros eram regiões alagadas, com alguns caminhos em meio à vegetação, chamados de passos, e, ao contrário do pântano, tinham água clara, potável, e fundo de lodo. Neles cresciam juncos de até três metros de altura, cerrados de tal forma que era quase impossível atravessá-los e mesmo arrancá-los, pois suas raízes penetravam mais de um metro no lodo, que tragava, facilmente, um homem a cavalo".

Só era possível atravessá-los em segurança por meio de caminhos só conhecidos pelos paraguaios. 

Então aqui se configura a segunda fase da Guerra do Paraguai. A primeira fase foi rechaçar o invasor em São Borja, Uruguaiana (Corumbá que se dane) e Corrientes; e também enfrentá-lo na Batalha do Riachuelo, mais épica nos quadros do que no Riachuelo em si. 

Esta segunda etapa, de invasão ao invasor, seria a parte mais difícil e sofrida. Como descrito acima, o terreno era a principal proteção de Solano, além dos seus zumbis. Os soldados paraguaios tinham que conquistar dos brasileiros a comida e o uniforme, porque seu ditador não lhes não dava nada - exceto uma passagem sem volta, cujo bônus era combater até a morte.

A leitura do livro de Francisco Doratioto é extremamente recomendada, para que se possa acompanhar o desenrolar de cada uma das batalhas. E não só: o historiador nos traz ainda as filigranas do intrincado contexto político em que precisavam manobrar as forças aliadas envolvidas. Para quem gosta do tema, o livro é uma valiosa fonte de informação.

A despeito do avanço imperial, os paraguaios continuavam determinados. Atacaram os aliados no Passo da Pátria. Perderam 2.400 homens, contra 1.550 aliados.

Em maio, vemos a Batalha do Tuiuti, desencadeada por mais um ataque paraguaio. A luta tomou 5 horas e ao fim dela jaziam nos alagados 6 mil soldados paraguaios e 2 mil soldados aliados.

Se fiando no seu conhecimento do terreno, os paraguaios voltaram a atacar, naquela que ficou conhecida como a Batalha do Esteiro Rojas, em Iataití-Corá, em 11 de julho de 1866.

Na Batalha do Boqueirão, dia 16, a iniciativa foi aliada. Foi um ataque às trincheiras paraguaias, muito mal-sucedido. Morreram 1.746 brasileiros e 71 argentinos. Os paraguaios, entrincheirados, dizimaram os atacantes e permaneceram incólumes.

Dois dias depois se deu o ataque aliado à trincheira maior dos paraguaios, chamado a Batalha de Sauce. Foram 5 mil baixas aliadas contra 2.500 baixas inimigas.

No primeiro dia de setembro teve início a Batalha de Curupaiti, que, na verdade, parou em Curuzú. Os aliados puseram os paraguaios para correr. Setecentos tombaram mortos e 1.700 foram feridos. Os brasileiros tiveram duas mil baixas. A perseguição aos paraguaios em fuga, já desordenada, foi suspensa, e Porto Alegre e Tamandaré se deram por satisfeitos. Mitre criticou a decisão.

O argentino acreditava que, se a operação tivesse continuado, os aliados teriam ocupado Curupaiti.

Já Lopéz ficou transtornado com a debandada paraguaia. O batalhão que deu no pé foi perfilado, e a cada dez soldados contados, um era retirado. Os separados foram todos fuzilados. Os oficiais sortearam palhas. Quem pegava as longas era rebaixado. Quem pegava as curtas era fuzilado. 

Solano solicitou então um encontro com Mitre, que aconteceu em Iataití-Corá, em 12 de setembro. O general Polidoro recusou o convite e o general Flores foi, mas saiu logo no início, pois Solano o culpou pela guerra, ao ter permitido a entrada das forças brasileiras no Uruguai.

Na resenha, Lopéz disse a Mitre que foi à guerra porque imaginou que o Brasil dominaria o Uruguai e se tornaria uma ameaça a "todos" - e disse também nada ter contra os argentinos. E acrescentou:

"Nos deixem sós com os brasileiros, mesmo que estes dupliquem seu Exército". Doratioto relata que Lopéz, todo adornado, acrescentou, rindo: "Os brasileiros serão facilmente vencidos".

O encontro deu em nada. Solano não aceitava a paz nos termos propostos pela Tríplice Aliança e Mitre, por mais que fosse adulado pelo paraguaio, não aceitou fazer a paz em separado.

A efetiva Batalha de Curupaiti aconteceu em 22 de setembro de 1866, depois de sucessivos adiamentos. Esse protelamento se revelou fatal: os paraguaios construíram novas e melhores trincheiras e as chuvas inundaram um terreno já naturalmente alagado. O resultado final foi um desastre para os aliados, onde teriam morrido entre cinco a dez mil combatentes, sendo metade brasileira e metade argentina.

Os paraguaios perderam reles 54 homens. Caminhando entre os milhares de cadáveres brasileiros, roubaram-lhes os uniformes e os relógios. Finalmente os guaranis estavam vestidos, ainda que com roupas alheias e ensanguentadas. Os sobreviventes aliados foram executados ali mesmo.

O impacto do fracasso levou os políticos brasileiros (sempre eles) a quererem a paz com Solano Lopéz. Mas D. Pedro II avisou que "abdicaria do trono se os deputados não atendessem a seu desejo de continuar a guerra". Mais uma na conta do meu vizinho (moro ao lado do palácio do cara).

De toda maneira, o desastre de Curupaiti provocou uma longa imobilidade. O Marquês de Caxias foi nomeado para o cargo de comandante-em-chefe do Exército brasileiro no Paraguai. Primeira coisa que fez foi se aproximar de Osorio e se livrar do Tamandaré e do Polidoro.

Já o povo a primeira coisa que queria fazer era se livrar da convocação para lutar no Paraguai. Ninguém queria encarar aquela roubada. O governo chegou a sortear oito mil sujeitos para compor a Guarda Nacional. Acabou por decidir dar liberdade aos escravos que aceitassem lutar. Os paraguaios iriam chamá-los de "macacos". 

Continuam chamando assim os brasileños, como ainda vemos nos jogos de futebol em Assunção.

Enquanto nada acontecia no teatro de guerra, Caxias enfrentava um problema atrás do outro. Em dois meses, quatro mil soldados brasileiros morreram de cólera, entre eles 130 oficiais. As forças aliadas somavam agora 50 mil homens no interior do Paraguai, a maioria totalmente inexperiente.

Mais de um ano (!) após a última refrega, aquela de Curupaiti, os aliados avançam e cercam Humaitá. Em 29 de outubro de 1867, a principal fortaleza paraguaia se viu sitiada. Os guaranis tentaram um ataque pela retaguarda, mas se frustraram. Morreram 3 mil paraguaios e 300 aliados.

No fim do ano, estima-se que o contingente aliado era o dobro do paraguaio: 48 mil aliados - 41 mil brasileiros, 6 mil argentinos e uns 600 uruguaios - contra esfomeados 24 mil guaranis.

Em 19 de fevereiro de 1868 (lembrando que, em Botafogo, a Rua 19 de fevereiro cruza a Rua Voluntários da Pátria, corta a Rua Mena Barreto - general - e "morre" na Rua General Polidoro), as forças imperiais fazem, enfim, a passagem (ops, a Rua da Passagem começa justo na Rua General Polidoro) de Humaitá - o pequeno bairro limítrofe com o bairro de Botafogo.

No Rio de Janeiro, a notícia da passagem da esquadra por Humaitá levou o povo ao delírio. As comemorações "envolveram toda a população de 1o a 3 de março", conta o autor. "Foram três dias de festas, com bandas a percorrer as ruas, seguidas de milhares de pessoas dando vivas ao Imperador".

Carioquices.

Para tomar a fortaleza de Humaitá, porém, houve algumas patuscadas. A primeira foi a avaliação de Caxias de que os paraguaios batiam em retirada. Ordenou o ataque frontal, com Osorio à frente de mil e setecentos soldados. Os 46 canhões abriram fogo contra os brasileiros, e armadilhas bocas-de-lobo engoliram os cavalos. Diante da reação, quem se retirou foram as forças imperiais. O saldo do ataque frustrado foram 1.019 baixas brasileiras e 194 baixas paraguaias.

A segunda patuscada foi justamente o oposto. Esfomeados pelo sítio, os paraguaios evacuaram a fortaleza durante a noite, sem que os aliados percebessem. Osorio entrou em uma Humaitá deserta.

E o mais vergonhoso foi que, após mais de um ano de inércia brasileira, por conta da pretensa inexpugnabilidade de Humaitá, verificou-se o quão frágil era a fortaleza. "Seu melhor elemento de defesa era, na verdade, a posição topográfica, em extensa curva do rio em forma de ferradura".

O comandante do navio de guerra português Zarco passou pela fortaleza dois meses depois. "Custa a conceber como meras barreiras guarnecidas de artilharia em grande parte imprópria e de calibre insuficiente para bater navios encouraçados pôde deter por tão largo espaço de tempo a Esquadra Brasileira", escreveu. "Alguns brasileiros com que tenho conversado se mostram reservados, até mesmo como que envergonhados do seu triunfo". Esta foi a terceira patuscada.

Mas, ultrapassada Humaitá, o que significa literalmente arrombar as defesas paraguaias (a fortaleza de Humaitá funcionou como um ferrolho fluvial - enquanto ela estivesse de pé, os aliados não tinham como superar o sistema defensivo de Lopéz), a tomada de Assunção parecia favas contadas.

Não foi. Porque, para isso, era preciso que o plano concebido tivesse sido posto em prática corretamente. Embora Solano tivesse ordenado a evacuação de Assunção, e os navios brasileiros Barroso e Rio Grande estivessem disparando seus canhões contra a capital, era necessário que as embarcações mantivessem suas posições e também o bombardeio.

A capital paraguaia estava vazia e tomá-la era uma questão de mero desembarque. Mas o comandante Delfim de Carvalho bateu em retirada e a população de Assunção voltou às suas casas.

De toda maneira, a partir daí, a atuação brasileira se limitou a um jogo de gato e rato. Com Humaitá tomada e Assunção fragilizada, o que restava a Solano - que recusava a rendição e D. Pedro II não aceitava nada que não fosse a rendição do ditador - era montar focos de resistência e fugir.

Na perseguição a Solano, muitas batalhas foram travadas, sempre com as forças imperiais em vantagem numérica e enfrentando um exército paraguaio em farrapos. Os brasileiros atravessaram o chaco, após 48 horas de marcha. Na Batalha de Itororó morrem 1.800 brasileiros e 1.200 paraguaios.

Na batalha seguinte, a do Avaí, o saldo favoreceu os brasileiros: morreram 2.000 brasileiros e 4.000 paraguaios. Na Batalha de Ita-Ivaté, às vésperas do Natal de 1868, os brasileiros tinham a vantagem de dois para um: vinte mil contra dez mil (sendo que entre os paraguaios havia anciões, inválidos e crianças). Morreram oito mil paraguaios. Era uma carnificina.

Ainda assim, Caxias se queixava da covardia das tropas brasileiras, em carta ao Ministro da Guerra: "Tenho que relatar vergonhas e misérias. Não foi possível prosseguir o ataque devido à tibieza e covardia com que vi, indignado, muitos Corpos de infantaria nossa procurando antes retroceder do que avançar".

Caxias estava também ressentido com o Imperador, que comutava as penas de morte que ele impunha aos soldados desertores, que "reduziram a eficácia de um instrumento com que Caxias esperava contar para impor a disciplina à tropa em situações de combate".

(Ressaltando, porém, que Caxias dava seu jeito, condenando os apenados a receberem centenas de pranchadas - golpes dados com as espadas sem fio -, que geralmente resultavam na morte do punido.)

No final do ano, Caxias comandou um ataque frontal ao quartel-general de Solano Lopéz, que logrou escapar. Um erro cometido no cerco proporcionou a fuga ao ditador paraguaio. Até o final da vida de Caxias ele foi suspeito de ter feito um acordo com o facínora e permitido sua fuga. Vá saber.

O primeiro dia de 1869 foi "celebrado" com a invasão e o saque de Assunção. O sentimento geral era de que a guerra havia, enfim, terminado. Caxias se pica, se demite e vai pra casa na Tijuca.

Mas a guerra continuava lá. D.Pedro II nomeou seu genro, o francês Conde D'Eu, para assumir o comando das forças brasileiras. O conde fez das tripas coração para não ir, mas não teve jeito. 

As tropas brasileiras continuam perseguindo Solano Lopéz Paraguai adentro. Enquanto isso, vão destruindo, saqueando e estuprando. Com 1869 já pela metade, a desproporção de forças era escandalosa. Mensura o historiador que estavam em 18 para 1 na Batalha de Peribebuí.

Na Batalha de Caacupé, Osorio se retira. Na Batalha de Acosta-Nu, vinte mil brasileiros enfrentam seis mil paraguaios, muitos deles crianças. Foram mortos dois mil paraguaios, contra 26 brasileiros.

O Império brasileiro assina um protocolo estabelecendo um governo provisório no Paraguai. Rivarola assume. Solano é declarado "fora-da-lei". Tomado de fúria, Solano mata seus próprios irmãos e aliados, acusando-os de traidores e, após as vitórias brasileiras em Curuguati e Hucurati, foge para o leste, na direção de Ponta Porã, Dourados e Cerro Corá.

"A guerra, de fato, não mais existia", esclarece o historiador. "Afinal, Solano Lopéz dispunha de poucos homens, exaustos, que se alimentavam havia meses do que achavam durante a fuga, como laranjas silvestres, ervas e certas raízes, e quase sem carne, e obrigava que um boi magro fosse dividido entre quinhentos homens por dia".

"Não havia mais combates e sim escaramuças entre patrulhas brasileiras e os poucos soldados do ditador", explica. A situação do ditador fugitivo era tão precária que seu chefe do Estado-Maior era seu filho de 15 anos, o coronel Juan Francisco, mais conhecido como Panchito.

Em 1o de março de 1870, a cavalaria e a infantaria brasileira entraram em Cerro Corá.

"Houve feroz luta contra duas ou três centenas de soldados paraguaios", diz Doratioto. "Solano Lopéz tentou fugir a galope, mas era facilmente identificável - era o único homem gordo em um exército de esqueletos".

Na fuga, ele foi alcançado e ferido mortalmente pelo cabo Francisco Lacerda, conhecido como Chico Diabo. Solano cai do cavalo, às margens do arroio Aquidabán, e o cabo o lanceia. Um outro soldado, mais distante da cena, dispara o tiro que mata Solano. Mas a fama ficou para o cabo.

"O Diabo Chico Diabo ao Diabo Chico deu cabo", acabou sendo cantando em verso.

Panchito não aceitou a rendição, mesmo diante dos apelos da mãe irlandesa - "Rendete Panchito", teria gritado Elisa. Atrevido, o moleque tentou matar o coronel Francisco Martins, que o intimara a render-se. Panchito fracassou em suas três tentativas e o coronel o matou. 

Enquanto isso, um soldado do 9o Batalhão da Infantaria Imperial, Genésio Gonçalvez Fraga, cortou a orelha esquerda de Solano e a levou pra casa. Outro espatifou os dentes do ditador morto com a coronha da carabina, enquanto um outro cortava um dedo e um outro ainda arrancava o couro cabeludo.

Acho que isso simboliza bem o que foi a Guerra do Paraguai. Eu até iria dizer "resume" bem, mas me estendi além do que gostaria. Afinal de contas, cinco anos de guerra são cinco anos.

Com a morte do sujeito, a política reocupou o espaço do perde-e-ganha sem matar ninguém. O Paraguai primeiro se manteve próximo da área de influência do Império e depois, como seria natural, tendeu mais para a órbita argentina. Buenos Aires é logo ali e todos eles falam espanhol.

Eu passei algumas semanas revisitando bons (e maus) livros sobre esta guerra. Alguns são deploráveis, outros bons, mas nenhum deles tem o peso e a consistência deste do Doratioto.

Ele oferece, ao final da obra, números e estatísticas interessantes. Os mapas são poucos. Para ver os locais onde as batalhas aconteceram, googlei muita coisa e, para minha relativa surpresa, vi que os paraguaios de hoje reverenciam Solano Lopéz.

É curioso. Solano foi um bastardo de espanhóis e portugueses que, na sua alucinação, quis fazer de um rincão pobre, inculto e remoto uma grande máquina de guerra. No seu delírio, arrastou o Paraguai para a ruína absoluta. A tal ponto, que, um século e meio depois, o país não se recuperou. É a terra da muamba e da ausência da lei. Destino predileto de bandidos fugitivos. O PCC o adora.

Questiono sua nomenclatura. Esta que foi a maior guerra da América do Sul é chamada no Paraguai de "Guerra Grande" ou "Guerra da Tríplice Aliança". Aqui a chamamos de "Guerra do Paraguai". Para mim, ela tem CEP e CPF. Eu a chamaria de "Alucinação megalômana de Solano Lopéz". 

Não havia contexto político plausível. Havia apenas um chimpanzé com uma metralhadora.

Ao fim, na falta de ícones históricos, um carniceiro delirante passou a ser cultuado, na posteridade, como o maior paraguaio de todos os tempos.

E o mais engraçado é que os paraguaios é que nos chamavam de macacos.

Companhia das Letras, 637 páginas  |  2a edição, revista  |  Copyright 2002

Obs.: Estabelecer parâmetros é sempre útil. Os paraguaios celebraram Solano Lopéz e morreram por ele. Os alemães celebraram Adolf Hitler e morreram por ele. Milhões de jovens conectados à internet celebram hoje o Hamas. Nesse caso, a morte é terceirizada. Quem morre mesmo são os palestinos.


"Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", por Julio José Chiavenatto


Sete de setembro. Data cívica. Paradas militares, bandas marciais e o escambau. Bem à feição para uns pitacos sobre o feito-mor das nossas Forças Armadas, a Guerra do Paraguai. Feito-mor? Sei não. Na verdade, foi mais uma patacoada. Uma "exibição" pífia, uma performance medonha.

(Daqui da janela vejo os guris passarem empolgados. Vão marchar na avenida. Os pais filmarão.)

Mas eu dizia. Por décadas, a literatura oficial tupiniquim celebrava o fato de termos estraçalhado o vizinho. Celebravam Humaitá, Itararé, Avaí e o diabo a quatro. Batalhas "memoráveis". Quadros de Pedro Américo com o Duque de Caxias guiando a soldadesca para a vitória.

Pois aí surgiu um néscio que, ao contrário do até então disseminado, fez a nossa caveira. Contava poucas e boas do Imperador, do governo e do exército. E exaltava os paraguaios.

(Um moleque fardado passa soprando um trombone. O outro deixa cair a baqueta.)

As divergências deixam o leitor diante de uma sinuca. Quem conta a verdade? Estavam certos os velhos adoradores de Caxias ou a nova versão da mula que endeusava o ditador do Paraguai?

Vamos falar dessa última, que (re) li recentemente. Sobre a guerra, em si, deixo pra outro dia.

O livro "Genocídio americano" foi publicado no final dos anos 70. Trazia revelações escabrosas. De sacudir os alicerces da historiografia. Isto é, se as tais revelações procedessem.

Mas não se engane. O texto do jornalista Julio José Chiavenatto é uma prodigiosa coleção de estultices. Poucas vezes se escreveu tanta besteira e com tamanha cara-de-pau. E o duro é que, à guisa de grave denúncia, o panfleto bombou entre os universitários e a esquerda festiva.

(Confesso, constrangido, que eu estava entre eles. Quem nunca foi enganado que levante a mão.)

À época, o Brasil encarava o declínio da sua mal-sucedida ditadura. A crise econômica corroía a popularidade do governo. A inflação atingia patamares nunca vistos. E ainda ia piorar muito.

Neste clube (do fracasso econômico) não nos faltava companhia. O Cone Sul era uma imensa ditadura endividada. Em 1979, quando o título chegou às livrarias, os brasileiros eram governados pelo famoso general "Me Esqueçam". Os argentinos pelo general Jorge Videla, os uruguaios por Juan Bordaberry, os chilenos pelo general Pinochet e os paraguaios pelo decano de todos, o general Alfredo Stroessner, que deu seu golpe em 1954 e só foi destronado, octagenário, em 1989.

Por um outro golpe militar, a propósito.

Naqueles tempos, além de tolhido pela censura, o mercado para a produção editorial histórica era pobre. Não perca de vista que, há meio século atrás, as ferramentas de pesquisa e de interação eram bem mais limitadas. Por aqui, no nosso caso específico em questão, a historiografia sobre a Guerra do Paraguai se restringia praticamente à versão oficial do governo.

Enquanto a ditadura - que perdera sua magra sustentação popular - se esfarelava, o livreto, que fazia do Brasil uma marionete de interesses imperialistas e do pequeno Paraguai um bólido tecnológico, furou a bolha, provocando furor e espasmos entre os eruditos e os universitários.

Como já disse, eu estava entre estes últimos aí e encampei, ingenuamente, as afirmações do jornalista. Sequer sabia que não eram inéditas - e sim mera cópia de uma antiga edição estrangeira.

O panfleto reproduzia as afirmações e crendices do argentino Leon Pomer, em seu "La Guerra del Paraguay: gran negocio!", publicado em Buenos Aires em 1968. Jamais editado em português, uma edição clandestina do texto chegou às mãos de Chiavenatto, que se apropriou do conteúdo. 

Descobri um exemplar original do livro de Pomer no sebo "Prazer em Compartilhar", de Conceição do Rio Verde, Minas. Apesar do "corte com amarelecimento e farta oxidação", o vendedor destaca que o "miolo íntegro oferece ótima legibilidade". Sai por R$ 88,88, mais o frete de R$ 20,39.

Sem chance. Mas fica o mapa das pedras, para quem se interessar. Pero no lo creo...

Na bibliografia da versão de Chiavenatto, à página 206, há a relação dos livros supostamente consultados pelo autor. A esmagadora maioria são obras contemporâneas e escritas em espanhol, por autores paraguaios ou argentinos. Ou seja, fontes carnavalescamente parciais.

(A Stroessner, o ditador paraguaio, convinha transformar um congênere seu, morto um século antes em uma guerra desproporcional, em herói. Ícones militares emprestam ares patrióticos às ditaduras.)

O jornalista brasileiro de Pitangueiras faz o serviço sujo para o meganha do Paraguai.

Vamos à leitura. O livro de Chiavenatto aborda a Guerra do Paraguai de forma acintosamente distorcida. Localiza no charco paraguaio dos oitocentos uma sociedade avançada, 100% alfabetizada, altamente industrializada e que desfrutava de justiça social plena.

Não há nada, porém, que fundamente suas "convicções" (a não ser vozes ocultas vindas da própria cabeça). Ele não apresenta nenhuma fonte de suas afirmações. Zero.

Mas, se não era esse jardim cor-de-rosa, que mundo era aquele? vamos por partes. A América do Sul era para o planeta o que o Acre é hoje para o Brasil. De boa, quem quer turistar ou investir no Acre? É um lugar perdido nos cafundós do judas. Sem boas fontes de receita. Sem acesso ao mar. Terra boa pra grilagem e bandidagem. Ocupada por brancos espertalhões e indígenas ignorantes.

Pois é. Se você, que é brasileiro, não se interessa pelo Acre, imagine a Inglaterra pelo Paraguai.

Chiavenatto relata que havia no Paraguai um Ditador Perpétuo, José Gaspar Rodriguez de Francia y Velazco (governou por um quarto de século, de 1814 a 1840). O autor credita ao ditador a criação do paraíso na terra.  El Supremo expulsara (ou exterminara) todos os ricos. Um pai severo para os indígenas, mantivera os pobres muito pobres e era amado por estes por ser pobre também.

"Francia criou as 'Estâncias da Pátria', onde os trabalhadores do campo produziam com o auxílio do Estado", exulta Chiavenatto, complementando que "podiam dispor da sua parte da produção como homens livres". A visão paradisíaca do autor, é bom que se diga, se encaixa no modelo do feudalismo medieval europeu.

(Segundo o Google e sua ferramenta de IA, no feudalismo da Idade Média a nobreza "detinha terras [feudos] e exercia controle sobre os servos que nela trabalhavam; a economia era predominantemente agrária e as relações sociais eram marcadas pela suserania e vassalagem".)

O pitangueirense achou o feudalismo paraguaio um sistema justo e inovador.

Diz o autor que "Francia precisa de dinheiro" e que "para conseguir riqueza e dinheiro Francia é implacável - elimina os representantes do poder econômico paraguaio". O ditador "cria um estado policial, numa ditadura perpétua peculiaríssima, para sustentar um governo popular".

"Popular"? Brincou. Mais uma vez temos o paradoxo, recorrente, dos que se dizem contrários a uma ditadura fazerem a apologia de uma outra ditadura. Como dizia o Millôr, "democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim"... 

(Passam garotos atrasados, suando em bicas em seus uniformes. Eu, daqui, já ouço os metais.)

A distorcida apologia de Francia não resiste a um exame superficial. Filho de um comerciante português que se casou com a filha de um oligarca local, Francia era o típico representante da elite que vociferava contra os privilégios da elite. Um Fernando Collor paraguaio, só que mais boçal.

Relendo o texto hoje, é inacreditável que tenha sido aceito seriamente pela comunidade acadêmica. Mas é fato que os acadêmicos também tinham sua agenda. Na maioria, eram vítimas da ditadura brasileira. Então, como o livro atacava Caxias ("patrono" do Exército brasileiro), indiretamente feria o status quo dos milicos locais. Foi o suficiente pra ser encampado pela intelligentsia.

Mas, afinal, em essência, o que afirma o livreto que eu estou debochadamente desancando?

O "Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", prega que o Paraguai era, em meados do século XIX, um oásis de produtividade, justiça social, educação e urbanidade - sob o comando de um déspota carniceiro que prendeu, torturou, despojou e matou a todos que não se subordinaram ao seu poder.

Na invencionice de Chiavenatto, a Inglaterra (o "Império onde o sol nunca se põe"), "assustada" com a ameaça que o ínfimo país representaria para seus interesses econômicos, financiou uma aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai, para deter o meteórico crescimento paraguaio.

Que dizer? O cartapácio desse escritor interiorano é uma baboseira sem qualquer fundamentação histórica, documental ou factual. O autor é um oportunista que não foi devidamente desmascarado a seu tempo. E quem era esse autor?

Na sua "biografia" - que se resume a quatro parágrafos na última página da publicação - está escrito que "ele percorreu praticamente todos os países da América do Sul por terra, numa velha motocicleta, acreditando que é impossível escrever corretamente a história destes povos oprimidos sem um contato direto com a sua realidade".

O relato era a mimetização da narrativa de Che Guevara, ícone maior da juventude da época, que teria cruzado a América Latina numa motocicleta. Será mesmo? Tenho minhas dúvidas. Só consigo imaginar Chiavenatto na garupa de um ubermoto, indo na farmácia comprar o Biotônico Fontoura.

(O trânsito, desviado e represado pela parada militar, cria um insólito engarrafamento dominical.)

O que o autor nascido no interior paulista, em Pitangueiras, e criado em Ribeirão Preto, comete é uma fábula comunista de sinal invertido. Se em seu "A Revolução dos Bichos", de 1948, George Orwell demonstra a contradição entre prática e discurso do regime comunista, Chiavenatto, em 1979, com o comunismo já nos estertores, conta a sua estória da carochinha. Um conto de fadas.

Seu Robin Hood comandava a população autóctone na resistência ao invasor europeu. Uma monarquia decrépita, em conluio com a maior potência bélica, industrial, naval e comercial do planeta, se aliou aos países fronteiriços para estrangular, na nascente, o Reino da Justiça.

Só que não, né.

Julio José Chiavenatto sequer tenta contar a história da Guerra do Paraguai. Se limita a invectivar contra o Brasil, a idolatrar o antigo ditador paraguaio, Francia, e a demonizar os ingleses. O paraguaio é Chapeuzinho Vermelho e o Rei da Inglaterra é o lobo mau.

Por conta disso, ainda esse mês vou tentar resenhar aqui o "Maldita Guerra", de Francisco Diadorato, que fez uma viagem profunda aos arquivos dos países envolvidos e joga um holofote potente sobre o que foi, na verdade, a Guerra do Paraguai.

Este livreco do jornalista de Pitangueiras é um "Protocolo dos Sábios de Sião" - uma invencionice sem pé na cabeça (feita sabe-se lá a soldo de quem, não duvido de mais nada).

Aqui, por escrúpulo, desmontei a farsa. O Paraguai era um zero à esquerda, irrelevante. Não há nos registros da política inglesa do período uma citação ao paiseco. Fosse ele alvo de uma estratégia inglesa de sufocamento, haveria rastros na literatura. Nada em termos de atos do governo inglês poderia ser levado à frente sem passar pelo Parlamento inglês, a Câmara dos Comuns e a dos lordes.

Não sou politicamente correto. Então não tenho pudor em dizer que o Paraguai era tão importante para os ingleses como o Acre é para você...

E até mesmo aqui. Os paraguaios eram, no máximo, um furúnculo diplomático. Para o governo brasileiro, sua relevância era o curso navegável que levava do Sudeste a Cuiabá. Para sair da capital e chegar a Mato Grosso, o rio passava por um trecho de terras paraguaias. Fora isso, não havia porque desembarcar naquele matagal. Ninguém montaria uma frota para roubar umas vacas.

Já Solano Lopez, filho (?) de Carlos Antônio Lopes, sucessor de Francia, ansiava por acesso ao mar. A única alternativa viável era o cobiçado porto de Montevidéu. Uma guerra por um porto.

Na rocambolesca narrativa de Julio José Chiavenatto, Carlos e Solano são uma extensão dos ideais superiores do El Supremo. Como na caricatural (para nós, né) dinastia norte-coreana (os Kim: Il-sung, Jong-il e o atual, Jong-un), os Lopez são seres distintos ungidos por um poder celestial. Solano (o Jong-un paraguaio), que iniciou a guerra, é pintado como um santo e um herói.

O jornalista cita, mas desqualifica como tendenciosas, as afirmações de que Solano era um tirano carniceiro, que vivia como um nababo em um país miserável, que tinha Napoleão por ídolo e que, enquanto era um estudante ricaço na Europa, acabara enrabichado por uma prostituta irlandesa (com a qual se casou e trouxe para o Paraguai, e se tornou a mãe de seus filhos).

Vendo a si mesmo como um Napoleão de hospício reencarnado no charco, Solano imaginou reinar sobre a América do Sul, se aproveitando da divisão política entre os argentinos e da frouxidão brasileira, para selar uma aliança com a então liderança uruguaia e conquistar acesso ao mar.

(Estrondam os bumbos do "Trovão Imperial", no seu sedoso fardamento negro e dourado. É pacífico que nossa maior vocação militar sempre foram as bandas.)

Já os planos do tiranete belicoso deram com os burros n'água. Não faltaram ambição e ousadia, mas lhe faltou bestunto. Foram tantas as trapalhadas e decisões equivocadas, que, ao dar um passo maior que as pernas, o stubby-legged (como muitos livros estrangeiros o descrevem, pelas suas perninhas curtas) levou sua jovem nação a uma ruína catastrófica, com repercussões que se espraiam no século 21.

A estória trazida por "Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", entretanto, reescreve de forma fantasiosa (e com aspirações ideológicas) o que na realidade se passou.

Procurei me informar sobre o que havia de melhor e mais consolidado na literatura sobre a Guerra do Paraguai, para corrigir a minha ignorância da adolescência e me inteirar um pouco mais, enfim, sobre o maior enfrentamento bélico da história do Brasil.

(Dez e meia da manhã. Passa um recruta, todo fardado, com um copo de cerveja na mão, papeando.)

Apesar do papel bisonho, nossa riqueza foi suficiente para vencer a guerra. Como? Já disse que aprendi uma coisa ou outra lendo "Maldita Guerra", do Doratioto. Lógico que vou falar dele aqui.

Há muito o livro de Chiavenatto caiu na obscuridade. Antes assim.

Editora Brasiliense, 207 páginas  |  23a edição  |  Copyright 1979

Obs.: Como você pode ver na capa, que reproduzi acima (é o meu exemplar mesmo), há uma tarja com os dizeres "O livro que mudou a história oficial do Brasil". Mudou nada. Mas, por alguns anos, confundiu.


"Paixão", por Plácido Berci



Já é uma "tradição" pessoal: sempre que viajo, seleciono para levar comigo livros que façam algum sentido com o roteiro ou com o destino. Nem sempre a escolha é fácil. Há as opções óbvias e há também os destinos que são figurinha fácil na literatura.

Desta vez cocei mais a cabeça. O pano de fundo era uma ida ao Equador para assistir um jogo de futebol (acabei vendo dois). Procurei os autores equatorianos mais badalados. Livros sobre vulcões, a história de Quito ou o cálculo do hemisfério. Em vão. O que encontrei não me seduziu.

Deixei de lado o país e foquei na atividade-fim. Bola. Futebol. Emoção. Aí facilitou minha vida. Foi então que decidi levar comigo o carinhoso livro de Plácido Berci - sobre o futebol no país que inventou o futebol. Tudo a ver. Qual o problema de ir para uma montanha e ler sobre uma ilha? O que importava eram as quatro linhas do gramado. As arquibancadas pulsando.

O título, "Paixão", é sob medida para o sentimento; seja da hinchada, do autor ou do leitor. Assim, apaixonado pelo esporte, o livro me caiu como uma luva, ops, como uma chuteira. Leitura fácil. O jornalista faz uma viagem afetiva às raízes do jogo. E é principalmente disso que o livro trata: afeto.

Berci visitou as origens. Os clubes que estiveram na gênese do esporte, no longínquo século XIX, e que permanecem vivos no século XXI. O escritor itinerante deu e recebeu afeto de torcedores que são dirigentes, de ex-atletas que são roupeiros e de jornalistas e turistas igualmente apaixonados.

O pesquisador desfia revelações de enciclopédia. Por exemplo, a antológica reunião no pub londrino "Freemason's Tavern". Plácido conta que, em 26 de outubro de 1863, representantes de doze colégios se reuniram para uniformizar as regras de um novo esporte - que cada colégio praticava a seu jeito, com muitos participantes e uma única bola.

Os colégios eram de diferentes cidades. Da mesma forma que hoje se discute aqui a interferência do VAR, o fulcro do debate foi sobre quantos jogadores de cada time poderiam por a mão na bola. Houve uma dissensão. Os que defenderam que apenas um jogador poderia segurar a bola com as mãos formaram a Football (pé-bola) Association, a atual Federação Inglesa de Futebol.

A outra metade, liderada pelos representantes do colégio de uma cidade situada 134 quilômetros a noroeste de Londres, achou melhor que todos os jogadores pudessem por a mão na bola. O nome dessa cidade? Rugby, no condado de Warwickshire. 

Os dois esportes, nascidos siameses, se separaram e tomaram a partir daí cada um seu rumo. Foram ambos bem-sucedidos. Sendo que um foi muito mais bem-sucedido do que o outro...

A invenção do futebol, porém, antecede em seis anos a sua regulamentação. O Sheffield Footbal Club foi fundado em 24 de outubro de 1857, e o jogo se orientava por uma norma batizada como Código de Sheffield. Essa norma balizou as regras do jogo, na tal reunião de 1863 em Londres.

Berci esteve no condado de South Yorkshire, para visitar o clube (hoje disputando o que seria equivalente à nona divisão do país). Reconhecido pela FIFA como o primeiro clube de futebol da história, volta e meia é agraciado pela instituição com uma verba de caráter extraordinário. Justo.

São quatro os clubes do condado. Além do Sheffield propriamente dito, há o Hallam, de 1860, e também o Sheffield Wednesday, de 1867, e o Sheffield United, de 1889. O Wednesday tem recebido muitas manchetes no Brasil nos últimos dias. John Textor, o polêmico e midiático dono do Botafogo, parece que fez uma proposta para adquiri-lo. A ver.

O autor também abre um espaço generoso para falar do Corinthian inglês, fundado em 1882, e que, excursionando pelo Brasil em 1910, teve o nome surrupiado pelo Corinthians Paulista.

À época, o Corinthian era o bicho-papão em pessoa. Seu uniforme totalmente branco inspirou o da seleção inglesa - o English Team - e o do Real Madrid. Por duas vezes o clube cedeu os onze titulares da seleção. Meteu também a maior piaba já tomada pelo Manchester United: 11 a 3, em 1904. No Brasil, atropelou por 10x1 o Fluminense (que não era o campeão carioca, e sim o Botafogo).

Áureos tempos em que o futebol inglês deitava cátedra.

A Primeira Guerra Mundial, em 1914, cobrou um preço sanguinário da juventude europeia. Todos os 22 jogadores do clube serviram no exército inglês e morreram em combate. O Corinthian jamais se reergueu. Para sobreviver, fundiu-se com o Casuals, cuja camisa é rosa e marrom. Ôxi.

Plácido conta essas e outras estórias saborosas, como a dos dois Manchester. O United, o rico, e o City, o (ex) pobre. O segundo, que vestia azul, sempre viveu à sombra do primeiro, que vestia vermelho. Um campeoníssimo e o outro irrelevantíssimo. Nos últimos anos, entretanto, o sucesso esportivo trocou de lado. Os torcedores do Manchester City se gabam, em (compreensível) êxtase:

"Nós passamos muito tempo na merda, agora merecemos isso", celebra o torcedor James Phillips.

O jornalista nos traz também outra rivalidade centenária entre vermelhos - do Liverpool - e azuis - do Everton. O clássico entre os dois é chamado de Merseyside Derby. Deve ser daí que um clássico entre dois times paulistanos (não me pergunte qual) é chamado de dérbi.

Entre muitas informações pontuais e curiosas, gostei de saber que o jornalista australiano Dominic Bossi, repórter do Sydney Morning Herald e torcedor do Sydney Football Club em seu país, esteve no Brasil na Copa do Mundo de 2014 e se tornou torcedor do Botafogo.

Sydney (ou Sidney) e Botafogo, tudo a ver - pensei eu, orgulhoso, cá com meus botões.

As razões que o levaram Dominic a torcer pelo Glorioso, porém, já não se sustentam. Me privarei, entretanto, de revelá-las. Quem as quiser saber, que leia o livro...

Outro ângulo que Plácido Berci explora é a paixão do público inglês pelas apostas. Destaca que toda rua da ilha tinha sua própria casa de apostas. Ele mesmo fez sua fezinha uma vez ou outra - e em uma delas ganhou uma grana preta. Mas o autor, que escreveu o texto em 2014, muitos anos antes da invasão cibernética das casas de apostas no Brasil, não faz apologia do jogo e alerta:

"Jogar é como fumar", compara. "O sujeito pensa a princípio que o vício é uma lenda e arrisca umas tragadas. Num belo dia, percebe que fumou um maço inteiro inteiro. No jogo, o pulmão é o bolso que um dia, em vez de preto, amanhece vazio", filosofa.

En passant, aborda a questão que transformou as violentas torcidas inglesas (os famosos hooligans) nos comportados espectadores da atualidade. O turning point veio com o Relatório Taylor, que propôs alterações para evitar que tragédias como as de Bruxelas (onde morreram 39 torcedores da Juventus, em confronto com os fãs do Liverpool) e de Hillsborough (quando morreram 96 torcedores) acontecessem novamente.

Diferentemente daqui, lá as necessárias adaptações foram (e permanecem sendo) feitas. Pouparam-se muitas vidas. E, de lambuja, criaram o maior e mais rico campeonato de futebol do planeta, a Premier League. Sabem tudo de bola.

Pois é, ela, a bola. Razão da magia que move os enfeitiçados. Seja pelo Sheffield, pelo Corinthian, pelos Manchester e pelo clube alvinegro que me levou até o Equador. Meu time, o Botafogo, comunga com eles um passado histórico (e até, data vênia, sr. Relator, maior, muito maior). E que atravessa, de novo, enfim, um momento de glórias e conquistas épicas.

Em Quito, Equador, para onde levei comigo o livro de Plácido Berci, não foi o que aconteceu, porém. Exatamente como os ingleses, acompanhei o time, cantei para o time, e saí do estádio derrotado. E também, exatamente como eles, me mantive vidrado, hipnotizado no jogo seguinte (batemos, na extremidade diagonal do continente, seis mil quilômetros a sudeste, o gaúcho Juventude, por 3x1).

Sei de torcedor botafoguense que foi direto das arquibancadas de Quito para as de Caxias do Sul. 

Certas coisas não têm explicação. Como a paixão pelo futebol. Só os apaixonados pra saber.

Via Escrita Editora, 154 páginas  |  1a edição, Copyright 2015

Obs.: Troquei mensagens com o autor, via instagram. Ele me revelou que esta primeira edição é rara, mas inferior à 2a edição, que traz 60 páginas a mais. Folgo em saber. Espero vir a a lê-la.


"A retirada da Laguna", por Alfredo D Escragnolle Taunay


Em dezembro de 1864 o exército paraguaio invadiu o que é hoje o estado brasileiro de Mato Grosso, dando início ao evento denominado de "A Guerra do Paraguai". O objetivo tático do invasor era o ganho territorial - e o estratégico, o controle da navegação do rio Paraguai.

Era um ataque diversionista. O verdadeiro teatro de guerra eleito por Solano López, presidente paraguaio, era mais ao sul. Dois meses depois, o Paraguai invadiria a província argentina de Corrientes. Em junho, toma a cidade brasileira de São Borja. Em agosto, ocupa Uruguaiana.

Assim tem início a Guerra do Paraguai. O confronto, um divisor de águas na história do Império, demorou mais de um século para receber um estudo à altura da sua importância. Afora a literatura produzida pelo próprio exército brasileiro, entretanto, pouco se pesquisou e escreveu.

Somente quando uma psicodélica análise pró-Paraguai foi lançada aqui, no fim dos anos 70, o assunto voltou à baila. A obra, sem fundamentação histórica, exaltava o Paraguai e descia a lenha no Brasil, na Argentina e na Inglaterra. Como estávamos sob uma ditadura militar já amolecida, com os generais há quinze anos no poder, o texto - que atacava o exército brasileiro - vinha bem a calhar.

Fez sua espuma e depois caiu no esquecimento. O Paraguai era a terra da muamba e ninguém estava realmente interessado no que ele havia sido (ou não) um dia. Ficou no vácuo.

Demoraria ainda duas décadas para que uma contextualização histórica embasada viesse preencher essa lacuna no estudo da História do Brasil. "Maldita Guerra", de Francisco Doratioto, aborda a intrincada política no Prata do período, faz uma minuciosa cronologia da guerra sob a ótica das nações envolvidas e decupa também os seus desdobramentos.

Apoiado em sólida e extensa documentação, Doratioto refutou as afirmações de "La Guerra del Paraguay: gran negocio!", do argentino Leon Pomer. Estas mesmas ideias tinham sido replicadas em "Genocídio americano" de Julio Chiavenatto, editado no Brasil dez anos depois.

Doratioto se valeu das pesquisas nos recém-abertos arquivos diplomáticos dos países envolvidos e também das memórias escritas no durante e no pós-guerra, entre os quais desponta este "A retirada da Laguna", de Alfredo D'Escragnolle Taunay, publicado em 1868 (ainda com a guerra em curso).

Com os três livros em mãos, aproveitei o frio mês de julho em Petrópolis para me aventurar um pouco no assunto. Li o sóbrio trabalho de Doratioto, a alegoria ideológica de Chiavenatto e o doloroso diário de guerra de Taunay - tio-bisavô do Dionísio, meu antigo parça de peladas na Lagoa.

Taunay, diferentemente dos outros autores que citei, não escreve sobre as implicações da guerra e o contencioso político do Império na bacia do Prata. Biografa um episódio - a sua frente. A brava retirada da coluna militar brasileira que marchou de São Paulo ao Paraguai.

Acho melhor eu dar uma situada. Estávamos no início da segunda metade do século 19. Mato Grosso era uma província remota e de difícil contato com a capital do Império, o Rio de Janeiro. Quando o Paraguai nos invadiu, até que a notícia da incursão paraguaia chegasse ao governo, e que um protótipo de exército fosse organizado para defender o país, levaram-se três longos meses.

Não era uma tarefa fácil. O Brasil não possuía um exército regular extenso e bem treinado. O que havia era uma guarda nacional, incapaz de dar conta do serviço. Nosso maior poder disuasório era a Marinha - mas construída para o mar aberto. Não era preparada para uma guerra fluvial.

Urgia uma resposta, porém. Diante da invasão, alguma atitude o governo brasileiro tinha que tomar.

Aos trancos e barrancos, somente em abril de 1865 saímos do lugar. Um batalhão com 568 soldados partiu de São Paulo. Chegam a Campinas e ficam lá por dois meses. Em julho se estabelecem em Uberaba, onde se unem aos 1.212 homens da Brigada de Ouro Preto. Permanecem na cidade por um mês e meio. A coluna era um desafio operacional. Difícil manter a coesão, praticar a ordem e alimentar o povo. O número de desertores chega a uma centena.

Apenas em setembro de 1865 a força brasileira parte rumo à Cuiabá, somando 1.575 homens e 200 mulheres (que acompanhavam os soldados). Em dezembro, um ano depois da invasão do Mato Grosso pelos paraguaios, chegam a Coxim, a 560 quilômetros de Corumbá.

O grupo foi encorpado por destacamentos goianos e somava agora mais de dois mil homens. Ficam em Coxim por seis meses, até junho de 1866. Marcham por três meses e, em setembro, atingem a vila de Miranda. Um terço dos homens morrera. Somente em janeiro de 1867 retomarão o avanço.

"Dois anos quase haviam decorrido desde a nossa partida do Rio de Janeiro", escreve Taunay. "Lentamente descrevêramos imenso circuito de dois mil cento e doze quilômetros. E já um terço da nossa gente perecera".

As doenças tropicais e suas febres dizimaram a coluna: a varíola e o béri-béri.

No dia 11 de janeiro partem para Nioaque, marchando 210 quilômetros. Lá chegam com 1.300 homens. A coluna prossegue e, na primeira semana de março, alcançam a antiga colônia militar de Miranda. É quando a narrativa de Taunay encorpa e se torna mais substanciosa.

Certamente por escrever sobre o assunto mais repercutido da sua geração, o autor não se deu ao trabalho de contextualizar os acontecimentos prévios. Eram de domínio público e ele não gastou mais do que algumas linhas com isso. A guerra contra o Paraguai já completava dois anos.

E o confronto real, à vera, se desenrolava longe dali, em outro cenário, do qual chegavam apenas notícias esparsas e remotas. Enquanto isso, as forças brasileiras das quais Taunay fazia parte jogavam a série B do confronto nos pântanos do Mato Grosso.

Ali o exército paraguaio havia arrasado as principais cidades e vilarejos brasileiros. Roubaram, estupraram, sequestraram e queimaram. Só restaram ruínas. À chegada da coluna brasileira, os invasores recuaram e ficaram à espreita. Esta seria a tônica do enfrentamento.

O exército brasileiro foi atrás das forças de Solano Lopez, que se retiraram com estudada lentidão.

A perseguição brasileira aos paraguaios foi, desde o princípio, assim: um jogo de gato e rato. Nossas forças eram maiores em número e com uma artilharia poderosa; os invasores eram em menor número e maltrapilhos, mas eram nativos da região e tinham a cavalaria que não tínhamos.

(Nos faltavam cavalos, porque os que no princípio tivéramos morreram ou foram comidos.)

Com base na desproporção de forças e na missão de dar combate ao invasor, um Exército brasileiro despreparado, hesitante e com uma liderança frágil resolveu ir atrás dos fugitivos até o Paraguai. Má idéia. Os brasileiros não tinham linha de suprimento, estratégia, conhecimento ou disposição.

Alfredo D'Escragnolle Taunay, que nos conta esta aventura, era oficial do Exército brasileiro e integrava o Corpo de Engenheiros da expedição. Embora ele em momento algum se posicione como agente dos acontecimentos ou relate suas experiências pessoais (o que fez ou deixou de fazer, se teve frio ou fome etc), ele foi testemunha viva de tudo o que aconteceu na retirada da Laguna.

Sempre disposto a enaltecer a coragem e a dignidade dos nossos oficiais, dos nossos soldados e do nosso povo (a abordagem ufanista era uma praxe, à época, ainda mais em um período de guerra), o autor evita críticas claras e diretas aos comandantes. Mas é possível lê-las nas entrelinhas.

Porque, para quem sabe ler, pingo é letra. Muitas vezes, até de forma mais ostensiva, ele criticou o comando por não tomar as decisões na hora certa ou em hora nenhuma - fosse pelo excesso de cautela, por tibieza ou por ignorância. Reclamou também pelo chefe se deixar liderar por gente local.

Em miúdos, demoramos demais para chegar; quando chegamos, não estávamos à altura da tarefa; mesmo assim, avançamos na tática arame liso (cerca, mas não machuca); e, ao entrar no país alheio, caiu a ficha de que não tínhamos o que fazer lá.

Em seu relato histórico, Taunay esmiuça como um grupo despreparado, exaurido e faminto de homens, chegado a terra inóspita e estrangeira, não vê outra alternativa senão voltar. A partir daí, enfrenta a via-crucis do retorno - nas piores condições possíveis e sob constante fogo inimigo.

Esta é a "retirada da Laguna". Os brasileiros chegaram, enfim, ao território paraguaio, após dois anos de marcha, e perceberam que não eram capazes de nada, sequer de sobreviver no terreno hostil. Nada restava senão dar a ordem para o clássico meia-volta, volver. Mas voltar não seria simples.

A descrição que Taunay faz da retirada é minuciosa. Para que tenhamos uma ideia, vou reproduzir alguns trechos do seu diário destes trinta e cinco dias infernais. Com a tropa sem ter o que comer. Com os paraguaios emboscando os brasileiros em um terreno do qual era íntimos. Astutos, colocavam fogo no mato, no intuito de cercar e queimar vivo o Exército Imperial.

"Imensas línguas de fogo nos lambiam, ora alçando-se aos céus, ora deprimidas pelas correntes de ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando furiosamente por cima de nossas cabeças", descreve. "Vários homens sofreram queimaduras profundas e um até caiu morto, asfixiado".

Os alagadiços e os rios, obstáculos naturais, eram súbito engordados pelas chuvas. O avanço se tornava inviável e não havia como se proteger do aguaceiro. As noites eram úmidas e geladas. 

"Quase diariamente sucedia que o sol, fraco de manhã, após as noites glaciais, tornava-se depois escaldante", relata Taunay. "Neste mesmo dia, proveio cedo novo dilúvio, que transformou em furiosa torrente um ribeirão já por si volumoso, e nos forçara a uma terceira parada, tão cruel quanto as precedentes. Morríamos de frio e estávamos a jejuar". 

Os homens não tinham com o que se alimentarem, exceto com as migalhas de uma cota de ração insuficiente e com o abate do gado esquálido e esfalfado que os acompanhava. 

"Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara-se um círculo em torno do animal; cada qual mais ansioso esperando o jacto do sangue; uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo", testemunhou o escritor.

"Chegado o momento, atiraram-se todos a ele", continua. "Mal tinha o magarefe tempo de cortar a rês; era quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido".

O inimigo não eram somente os paraguaios, o fogo, o frio e a fome. A tropa lutava contra os homens e contra a peste: um surto de cólera matou mais de uma centena e fez com que dezenas tivessem que ser carregados. Pior: o desespero chegou a tal ponto que os doentes foram abandonados.

"Por mais silenciosos e tristes houvessem sido os preparativos, não foi sem gritos e ruídos estranhos ao ouvido e cuja causa assombrava o espírito, que chegou o momento do abandono", narra o oficial. "A todos nós foi intolerável. Deixávamos entregues ao inimigo mais de cento e trinta coléricos".

A coluna brasileira era então uma enorme tropa de zumbis, apáticos, tentando voltar pelo meio do mato, atravessando rios, desaparecendo afogados e tendo que puxar canhões na sua retirada. Não era por masoquismo: a artilharia era a única proteção contra o inimigo. Deixá-la para trás era, também, doar seu poder de fogo para os perseguidores.

Que, aliás, estavam sempre nos calcanhares da coluna. As escaramuças eram constantes. Os paraguaios atacavam a retaguarda ou qualquer grupo que desgarrasse do corpo principal. Capturados, os brasileiros eram torturados, sangrados e degolados. Tentando evitar as emboscadas fatais, a tropa se perdeu e demorou a retomar a direção da volta.

Ao conseguirem enfim retornar à Nioaque, encontraram uma cidade-fantasma, com mortos insepultos pelas ruas. A antiga cidade era um amontoado de destroços, à exceção da igreja. 

"Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasileiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras", reconhece o oficial. Eram soldados que haviam se separado da tropa por conta própria. "Desertando por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e morrendo de fome pelas matas".

Os paraguaios, não conseguindo cortar a retirada brasileira, se anteciparam para chegar antes à Nioaque, para arrasar o que restava da cidade. Mataram todos os que, desavisados, pensavam estar seguros no vilarejo abandonado - desertores, idosos e inválidos.

"Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrado como um porco", conta. "Jazia outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios decepados, nadava no próprio sangue". A cidade brasileira de Nioaque era toda ela um cemitério.

Após a carnificina, os inimigos partiram. Mas cuidaram de deixar uma surpresinha de despedida.

"Tudo haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo contrário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal". O escritor detalha a armadilha paraguaia: esconderam um barril de pólvora com rastilhos, sabendo que os brasileiros utilizariam a igreja - único imóvel ainda de pé - como abrigo. O estratagema diabólico funcionou. 

"Para melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente seca com o minucioso cuidado e os cálculos ardilosos do selvagem que prepara os seus malefícios", diz. "Deu-se a explosão. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares. Da igreja saíam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo". 

A descrição deste epílogo da retirada abala o mais frio dos leitores.

"Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia", prossegue o autor. "Um sargento, cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia, que o acabassem com uma bala ou um pontaço".

Assim terminou a retirada da Laguna. Sem conquista ou glória que não fosse o próprio fato da sobrevivência. A historiografia oficial representou-a como um episódio heroico. A leitura do livro, entretanto, nos revela um desempenho melancólico e um sacríficio desnecessário.

Isto posto, salvo as dificuldades naturais trazidas pela linguagem da época, às vezes demasiado formal e pomposa, a narrativa é potente. Taunay contribui decisivamente para entendermos este conflito isolado. Se a retirada em si se deu na periferia do confronto e não teve influência no contexto da guerra, sua obra permanece um relato fundamental para a compreensão do evento.

Edições Melhoramentos, 256 páginas  |  12a edição, 1942  |  Tradução  Afonso D'Escragnolle Taunay