tag:blogger.com,1999:blog-59444012023465601862024-03-27T20:24:21.135-03:00Eu li e achei issoSidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.comBlogger449125tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-65288354640701367722024-02-28T08:29:00.001-03:002024-03-20T15:52:19.746-03:00"Filho do Hamas", por Mosab Hassan Yousef<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBXZ6Zp5nS1z_vsWIXYjynDsTowTnoH96ylDx-wOoGFdCU8_uCp6OH5YCXUBxCYxceOm1OVlPnCWNjcuxEjm5v2kM_LbNIAb488gKVwjorlM19KTr5xkuLpIUnmc48CWcmokkRBO2X3C1g1gYPv4SVEY9GdquY7hwqjaNjZ-phuYdgj1mpZaY3brJ03qU/s1278/Filho%20do%20Hamas%20jornal.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="887" data-original-width="1278" height="444" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBXZ6Zp5nS1z_vsWIXYjynDsTowTnoH96ylDx-wOoGFdCU8_uCp6OH5YCXUBxCYxceOm1OVlPnCWNjcuxEjm5v2kM_LbNIAb488gKVwjorlM19KTr5xkuLpIUnmc48CWcmokkRBO2X3C1g1gYPv4SVEY9GdquY7hwqjaNjZ-phuYdgj1mpZaY3brJ03qU/w640-h444/Filho%20do%20Hamas%20jornal.jpg" width="640" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div>Nunca tinha ouvido falar desse cara. Mosab Yousef. Mas o fato é que a guerra entre Israel e o Hamas abriu espaço para nomes desconhecidos que tivessem qualquer coisa a ver com o conflito. Mosab foi apresentado na mídia com o apelativo título de "o filho do fundador do Hamas". As chamadas para uma entrevista no horário nobre, na emissora de maior audiência, me chamaram a atenção.<p></p><p>Sou cético por natureza. Vejo desconfiando do que vejo. Leio desconfiando do que leio. Para me sentir à vontade com o tema, preciso destrinchá-lo. Descobrir se há algo por trás. Boa parte das vezes o conteúdo já trai a (má) intenção de quem fala ou escreve. Mistificações, interesses pessoais, tentativas de manipulação - tudo isso salta aos olhos, quando lemos nas entrelinhas.</p><p>Às vezes não dá para "ver" e temos que recorrer a uma boa pesquisada, um aprofundamento maior para decifrarmos com segurança se o que estamos vendo/ lendo merece credibilidade. Assim, com tudo isso em mente, fui assistir a entrevista do tal "filho do Hamas". Com os dois pés atrás. </p><p>Ainda mais porque ele era apresentado como um "traidor" do Hamas, que teria trabalhado como agente secreto para Israel. Parto do princípio óbvio que nenhum traidor é confiável - é o primeiro raciocínio de qualquer um, e eu não sou diferente. Mesmo assim, fui ver a tal matéria com o Mosab.</p><p>Com cinco minutos de entrevista, eu estava surpreso. Articulado, direto, despojado, Mosab Yousef não parecia se encaixar em nenhum estereótipo. O que ele dizia era convincente. E humano: era contra a guerra e contra o terrorismo. Se declarou a favor de dois Estados - um palestino e um judeu.</p><p>Yousef fazia sentido.</p><p>Na entrevista, ele comentou sobre um livro que escrevera dez anos atrás. Ansioso por entender melhor quem era aquele sujeito, se era confiável ou não, se era uma farsa, uma peça de propaganda de Israel ou um pacifista legítimo, ele me deu de bandeja como eu iria descobrir.</p><p>Lendo o livro.</p><p>Antes de mais nada, temos que aceitar que a mídia, e principalmente agora as redes sociais, trabalham com estereótipos. São mais fáceis de processar e digerir. É a dicotomia mocinho-bandido. Assim, sob a lente dessa dualidade simplificadora, "entendemos" logo do que se trata. Voltando à ideia anterior, se Mosab é palestino e espiona para os israelenses, ele é <i>traíra</i>. O sujeito mau.</p><p>Pior ainda. O cara traiu o pai. O pensamento agitado já deduz: "É a ovelha negra da família."</p><p>Pois nada mais longe da verdade. O livro é, acima de tudo, uma ode de amor e de reverência ao pai. Parece contraditório, não é? Pois é. As pessoas de carne e osso têm muitas nuances. Assim o leitor vai desvelando as particularidades da personalidade de Mosab à medida em que avança no livro. Mas aqui precisamos estabelecer um ponto.</p><p>O Mosab Yousef, o "Filho do Hamas", apareceu na (nossa) mídia agora, em outubro de 2023, por conta do ataque terrorista do Hamas. Isso dá às suas palavras e ao seu livro um cunho oportunista. A questão, porém, é que o livro foi escrito e lançado em 2010. Há treze anos atrás. </p><p>Sem oportunismo ou sensacionalismo. A gente só nunca tinha ouvido falar no cara, nem no livro.</p><p>O Mosab que essa pequena bio, publicada em 2010, descreve era um garoto palestino de boa índole, racional e reflexivo. Adorava - e ainda adora, como eu disse acima - o pai, Hassan Yousef (a propósito, pelo seu relato, todos adoravam Hassan: generoso, tranquilo e devotado ao Islã).</p><p>"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio".</p><p>Assim Mosab abre o primeiro capítulo. Após algumas digressões históricas, ele nos conta como o pai vivia para a religião e para a família. Mosab queria ser como o pai.</p><p>O pai fundou o Hamas como uma instituição religiosa e filantrópica, em uma Palestina que era um barril de pólvora. Aos poucos, o Hamas ganhou o respeito da população e passou a ter relevância política. Se tornou uma alternativa confiável à OLP e à ANP, ambas tidas por corruptas.</p><p>Quando um braço do Hamas começou a combater Israel com violência, Hassan, pai de Mosab, não participou. Mas nunca condenou ou procurou restringir as ações violentas. Apesar de "pacífico", era bastante visado por Israel. Assim, por ser notoriamente um fundador do Hamas, Hassan passou boa parte da sua vida em prisões israelenses. Nunca reclamou, porém, ou sequer reportou à família o que suportava na prisão.</p><p>Mosab conta que, como filho mais velho de uma família em que o pai passava a maior parte do tempo preso, se tornou uma espécie de pai postiço para os seus irmãos. E também arrimo de família. A despeito da projeção que o pai possuía, e dos muitos tios de Mosab politicamente bem situados, a cada vez que o pai ia preso, ele, a mãe e os irmãos eram acintosamente abandonados.</p><p>Quando o pai retornava para casa, refluíam todos. As mesmas reverências, o mesmo respeito. Assim que os israelenses prendiam novamente seu pai, todos sumiam. Não havia dinheiro. Sentiam fome. Mosab passou a vender nas ruas os doces que a mãe preparava. Os tios o proibiram quando souberam. Era humilhante, disseram. Mas não lhe davam os meios para subsistir na ausência do pai.</p><p>Mosab era guri na época da Primeira Intifada. Garotos palestinos ganharam as manchetes do mundo tacando pedras em tanques israelenses. Davi contra Golias. Mosab era um deles. Odiava os judeus.</p><p>Jogar pedras em judeus, entretanto, era pouco para Mosab. Ele queria sangue. Vingança histórica. Queria matar os judeus. Para isso, precisava de meios. Adolescente, não tinha espaço na organização, mesmo sendo filho do xeique. O próprio pai queria que ele se concentrasse apenas nos estudos. Mas ele queria participar também da guerra contra Israel.</p><p>Conseguiu de um primo um contato com um vendedor de armas de segunda mão. Com o dinheiro que economizara, comprou uma pistola e uma metralhadora. Agora sim ia exterminar os judeus. Nos preparativos para o atentado com o qual sonhava, testou as armas. A metralhadora não funcionava. Antes que pudesse exigir o dinheiro de volta, foi capturado pelo serviço secreto de Israel numa blitz.</p><p>Foi espancado, torturado e mantido por semanas em uma solitária infecta.</p><p>Como era praxe do serviço secreto, após o período de tortura, os presos palestinos, de acordo com sua utilidade potencial, passavam por uma tentativa de cooptação. Os israelenses queriam espiões. Mosab ignorou a oferta.</p><p>Foi cumprir sua pena em uma prisão coletiva. Lá, como aqui, os presos são distribuídos pela sua facção. A de Mosab era o Hamas, a maior e mais poderosa (outras eram o Fatah, a Jihad Islâmica e a FDLP/FPLP). Na prisão foi que conheceu de fato como era a organização. O Hamas. Não aquele em que seu pai era um líder da face religiosa do grupo. O Hamas que detinha poder político e militar.</p><p>Não era o que ele esperava.</p><p>O que Mosab encontrou na prisão foi um sistema despótico, arbitrário e violento. Administrado pelo Hamas, que aterrorizava a todos os detentos. Mas não a ele.</p><p>"Por ser filho do xeique Hassan, eu estava acostumado a ser reconhecido em todos os lugares aonde ia", esclarece. "Se ele era o rei, eu era o príncipe, o herdeiro legítimo, e era tratado como tal".</p><p>O irmão do seu pai, Ibrahim Abu Salem, estava na mesma prisão, sob detenção administrativa. Era um dos maiorais da cadeia e tinha autorização para circular por todo o campo. Mosab e o tio tinham uma relação apenas cerimoniosa; mas, ainda assim, só isso já reforçava a segurança do "príncipe".</p><p>Mesmo estando "imune" à agressão física e psicológica dos <i>maj'd </i>(os xerifes do Hamas na cadeia), Mosab achava o sistema injustificável. Todos os detentos tinham que se comportar rigorosamente dentro dos preceitos do grupo. Quem falhasse em qualquer um dos rituais diários prescritos (despertasse atrasado, ou cochilasse durante uma oração, demorasse um pouco mais no banheiro etc) "ganhava um ponto vermelho". </p><p>Quando um sujeito acumulasse um determinado número de pontos vermelhos, os <i>maj'd</i> mandavam todos os detentos saírem da tenda, traziam o "infrator", aumentavam o som da tv (para abafar os gritos) e davam início ao corretivo. Se havia suspeita de que o punido "falava muito", e tivesse passado alguma informação aos israelenses, a tortura era semanal.</p><p>Um dos presos explicou à Mosab os castigos mais comuns. "Eles costumam por agulhas sob suas unhas e derreter bandejas de plástico sobre sua pele", revelou. "Às vezes, colocam um grande bastão atrás dos seus joelhos e o fazem ficar agachado por horas e não o deixam dormir".</p><p>Para o Hamas, todos os detentos eram suspeitos, e por isso eram todos continuamente vigiados. E, mesmo sendo o "príncipe", o autor confessa que "tinha medo de cometer um erro, de me atrasar, de continuar a dormir depois da ordem de despertar ou de cochilar durante a <i>jalsa</i>".</p><p>Mosab esclarece que "se alguém era 'condenado' pelos <i>maj'd</i> por ser colaborador, sua vida acabava, a vida de sua família era destruída, e seus filhos, sua mulher, todos o abandonavam". Muitas vezes o condenado era inocente, mas só o fato de ter sido acusado era a exclusão absoluta. "Ser tachado de colaborador era a pior reputação que alguém podia ter", diz o palestino. </p><p>Muitas vezes a punição ia além da tortura e da exclusão. De acordo com o autor, de 1993 a 1996 o Hamas assassinou, dentro das prisões israelenses, 16 suspeitos de colaboração.</p><p>A vergonha imposta aos que eram poupados da execução fazia deles párias dentro da sociedade palestina. Eram obrigados a assinar confissões admitindo perversões sexuais. Por conta da boa caligrafia, Mosab as escrevia, para que os detentos as assinassem. </p><p>"Eu passava meus dias copiando dossiês sobre prisioneiros", explica Mosab. "Os relatórios se assemelhavam ao pior tipo de pornografia. Homens que confessaram ter feito sexo com a própria mãe. Um detento que declarou ter feito sexo com uma vaca. Outro, com a filha. Um outro, com a vizinha, tendo filmado tudo e dado as imagens aos israelenses".</p><p>A obsessão pelo sexo revela muito mais sobre os carrascos que ditavam as confissões do que sobre os pobre coitados que as assinavam. Revela, sobretudo, a cultura primitiva da região.</p><p>"Para mim, aquilo parecia loucura", escreveu. "Enquanto continuava a copiar os arquivos, percebi que, sob tortura, os suspeitos eram questionados sobre assuntos que não tinham como conhecer, mas que, mesmo assim, davam as respostas que achavam que os torturadores queriam ouvir".</p><p>Mosab reencontrou na cadeia Akel Sorour, um antigo amigo de infância. Se o passado os unia, no presente, porém, Akel estava em situação oposta à de Mosab - era órfão e sua família se resumia a uma irmã. "Isso o tornava muito vulnerável, porque não havia ninguém para vingar sua tortura", esclarece Mosab. Embora fosse membro de uma célula do Hamas e já tivesse sido preso várias vezes, ele era rejeitado pelos prisioneiros urbanos da organização.</p><p>"Por ser um simples camponês, seu modo de falar e comer parecia engraçado para os outros que se aproveitavam dele", relata. "Akel tentava de todas as maneiras ganhar a confiança e o respeito dos prisioneiros, cozinhando e limpando para eles, mas era tratado como lixo, pois os outros sabiam que ele os servia porque tinha medo".</p><p>Uma vez por mês, as famílias podiam visitar os prisioneiros e levar comida para eles. Akel ganhou duas sacolas da irmã. Ao voltar para a seção, porém, foi levado pelos <i>maj'd</i> para interrogatório. A comida foi extorquida dele e servida para o tio Ibrahim e para outros <i>maj'd</i>. Akel já tinha trabalhado para o tio, pensou Mosab, e até mesmo preparado a comida dele. Não entendia porque Ibrahim não tinha impedido a arbitrariedade.</p><p>"Olhei para meu tio e me perguntei por que ele não os deteve. Estivera na prisão com Akel várias vezes, os dois haviam sofrido juntos", questionou. "Será que permitiria a tortura por ele ser um camponês pobre e calado de um vilarejo e meu tio ser da cidade?"</p><p>Mosab registrou que "Ibrahim Abu Salem ficou sentado com os <i>maj'd</i>, rindo e comendo os alimentos que a irmã de Akel levara". Enquanto isso, "outros integrantes do Hamas enfiavam agulhas sob as unhas do rapaz".</p><p>"Mais tarde, me entregaram seu dossiê para copiar", descreve. "Segundo o relatório, ele confessara ter feito sexo com todas as mulheres da aldeia e também com burros e outros animais. Eu sabia que tudo aquilo era mentira, mas copiei o arquivo e os <i>maj'd</i> o enviaram para o seu vilarejo. A irmã o deserdou e os vizinhos se afastaram".</p><p>Akel, que já ficara irreconhecível após a tortura, definhou. Passou a evitar Mosab.</p><p>O filho de Hassan julgava os <i>mad'j</i> piores que qualquer colaborador. Estava confuso.</p><p>Toda a religiosidade que herdara do seu pai parecia disassociada do Hamas real. A proposta que ouvira do <i>Shin Bet</i> - o serviço secreto de Israel - passou a ser intimamente avaliada. O que os israelenses lhe propuseram foi que contribuísse, sob a alegação de que isso ajudaria a evitar a morte de inocentes palestinos e judeus. </p><p>Ainda que a possibilidade de salvar vidas lhe fosse atraente, Mosab não fazia ideia de como poderia colaborar. Era um garoto, sem acesso a nenhuma informação. Mas a ideia começou a girar na sua cabeça, aumentando a sua confusão.</p><p>Lendo a biografia, me pareceu que o abalo das convicções religiosas de Mosab são o cerne da sua história. Nós, distantes deste conflito singular e das culturas que o envolvem, temos escassas ferramentas para aferir com precisão o que pensam os locais. Nossa realidade carece de pontos de contato com a realidade deles. Nossa relação com a religião é outra. </p><p>Seja como for, fundamental para que possamos bem avaliar a situação é conhecer o relacionamento e o sentimento entre pai e filho - o fundador do Hamas e o alardeado "filho do Hamas". Para tanto, vou transcrever alguns trechos em que ele se refere ao pai.</p><p>"Meu pai nunca me ensinou a odiar, mas eu não sabia como evitar esse sentimento. Embora ele protestasse calorosamente contra a ocupação - e acredito que ele não hesitaria em ordenar um ataque nuclear à nação de Israel se dispusesse das bombas -, nunca disse nada contra o povo judeu, ao contrário de alguns líderes racistas do Hamas", conta Mosab. "Meu pai estava muito mais interessado no Deus do Alcorão do que na política".</p><p>"Meu pai era o Islã para mim. Se eu tivesse de colocá-lo na balança de Alá, ele pesaria mais que qualquer outro muçulmano que conheço". Ressalta que ele "nunca perdeu a hora de uma prece e, mesmo quando chegava tarde e cansado, eu o ouvia orando e fazendo súplicas ao deus do Alcorão no meio da noite. Ele era humilde, amoroso e clemente com a esposa, os filhos e até mesmo com desconhecidos". </p><p>O comentário seguinte é quase uma chave para a interpretação do conceito de religião por parte de Mosab. "Mais do que um defensor apaixonado do islamismo, meu pai vivia como um exemplo do que deveria ser um muçulmano. Ele refletia o lado bonito do Islã, não o lado cruel que exigia que seus seguidores conquistassem e escravizassem o mundo".</p><p>(Hoje, mais de uma década após o lançamento do livro, o Hamas permanece financiado pelo Irã, uma ditadura religiosa islâmica xiita. Seus líderes pregam a conquista do mundo em nome de Alá. Seu objetivo prático é a morte dos infiéis - todos os não muçulmanos, o que inclui você, que lê este post.)</p><p>"Seu amor pelos muçulmanos e sua devoção a Alá nunca esmoreceram", insiste o autor. "Ele ansiava pela paz para seu povo e havia trabalhado a vida toda para atingir aquele objetivo".</p><p>Mosab, que com o passar dos anos se tornara o guarda-costas do pai, e que se considerava "seu aluno e confidente", é aqui definitivo em sua relação com a figura paterna, um dos fundadores do Hamas. "Ele era tudo para mim. O melhor exemplo do que significava ser um homem". </p><p>Após mais um atentado terrorista com muitas vítimas, temia pela vida do pai, pois acreditava que o governo israelense estava determinado a matá-lo. "Embora não tivesse organizado os atentados suicidas, ele, de qualquer maneira, era culpado por ter ligações com os envolvidos no massacre".</p><p>Pondera também que "além disso, ele tinha informações que poderiam ter salvado vidas e não as divulgara". Ele tinha convicção que Hassan poderia ter detido a escalada da violência. "Meu pai tinha influência, mas não sabia usá-la. Poderia ter tentado deter a matança, mas não o fizera".</p><p>O pacote que levou o primogênito de um dos sete fundadores do Hamas a cooperar com o serviço de inteligência de Israel era complexo e envolvia variáveis improváveis. Uma delas foi sua aversão à violência e arbitrariedade dos líderes do grupo contra os próprios integrantes, onde sub-líderes exerciam um comportamento oposto ao do seu pai.</p><p>Outra foi a conversão do devoto e religioso Mosab ao cristianismo. Ao ter acesso na cadeia a uma Bíblia vertida para o árabe, ele se identificou muito mais com a postura humanitária e os ensinamentos de tolerância de Jesus Cristo do que com os preceitos intransigentes do colérico Alá.</p><p>Foi o amor pelo seu povo e pela vida humana que levaram Mosab Yousef a rejeitar a política indiscriminada de terrorismo praticada pela organização criada, com outros propósitos, por seu pai. Segundo ele, contribuir para evitar a morte de inocentes - sejam muçulmanos, judeus ou cristãos - se tornou sua causa maior.</p><p>E, ao lado desta, sem sombra de dúvida, a possibilidade de proteger a vida do pai. Que, a certa altura, passou a ser ameaçada pelo próprio Hamas, quando Hassan deu declarações públicas favoráveis a criação dos dois Estados. </p><p>Mosab diz que a visão do seu pai sobre a questão palestina-israelense evoluíra com o passar dos anos. Ele teve influência nisso, mas não só: o pai ouvia a todos e gostava de absorver o conhecimento alheio. Como frisa o filho, "por esse motivo sua visão era muito mais clara e ampla do que a dos outros líderes do Hamas".</p><p>"Ele via que Israel era uma realidade imutável e reconhecia que muitos dos objetivos do Hamas eram ilógicos e inalcançáveis", conta Mosab. "Queria encontrar um meio-termo que ambos os lados pudessem aceitar sem se humilhar e perder o respeito".</p><p>O autor conta que no primeiro discurso público que Hassan fez após um longo período na prisão (falo dela mais à frente), "ele sugeriu a possibilidade de haver dois Estados, o que traria uma solução para o conflito. Ninguém no Hamas tinha dado uma sugestão desse tipo". </p><p>Com isso, admite, "meu pai estava reconhecendo o direito de existência de Israel!"</p><p>Esse reconhecimento, porém, era inaceitável para o Hamas. O poder político e financeiro do grupo - leia-se os seus líderes - dependia do não-reconhecimento do Estado judeu. Àquela altura, a "causa" do Hamas não era um fim. Era um meio que assegurava status e dinheiro aos chefes da organização.</p><p>E mais ainda com a possibilidade, surgida em 2005 (cinco anos antes da publicação do livro), do Hamas se constituir em um partido político e disputar as eleições para governar os palestinos.</p><p>Hassan Yousef foi questionado e pressionado para retroceder. Para desgosto de Mosab, o pai recuou.</p><p>Depois de ter participado de inúmeras operações que evitaram atentados à bomba e que levaram à prisão de terroristas (vale a pena você ler a biografia para conhecer os detalhes destas ações), a única preocupação de Mosab era com a segurança do próprio pai, paradoxalmente cada vez mais um alvo potencial do Hamas.</p><p>Mosab confessa que seu idealismo foi derrotado pela escalada de violência e pela cupidez ilimitada do grupo. Não via escapatória para si mesmo, nem para suas aspirações, nem para o povo palestino. O círculo vicioso de ódio e ignorância estava de tal forma entrelaçado que ele capitulou.</p><p>Articulou com o serviço secreto israelense sua própria prisão e a prisão do pai - acreditava que Hassan estaria mais seguro em uma cadeia do que na Cisjordânia. E ele mesmo, Mosab, preso, estava a um passo de abandonar aquele mundo. Combinou que seria libertado após um tempo encarcerado e em seguida tirado do país.</p><p>Via Síria, foi para os Estados Unidos, sozinho. Seu projeto era recomeçar a vida, do zero. Um jovem palestino cristão em mundo desconhecido. Mas não é fácil deixar uma vida (ainda mais uma vida como essa) para trás. Fosse uma tentativa catártica de se desconectar do seu passado, uma carta de amor ao pai ou uma aposta em um novo ponto de partida, resolveu escrever a própria história. </p><p><i>"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio". </i></p></div>Editora Sextante, 287 páginas | 1a edição | Copyright 2010 | Tradução Marcello Lino <div><br /></div><div>Título original: "<i>Son of Hamas</i>"</div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-86596531048878414652024-02-17T14:02:00.000-03:002024-02-17T14:02:20.855-03:00"Seis dias de guerra", por Michael B. Oren<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgzk9t6JwjH07VXCjvgPHRK0JIC-mzZbEBUB8qAvE5X3vmriTVEaNTTYn6VJcbK2h5k_lokGHXQsI3tI3HwR-hk3VUmUiFbQL8FTz0T8TcYgWm-hhFf5CbZLTEPaaVATS6kiOKLWgo3SECiKOxKa6Ux6L8-o66pmhr4q7mP-ZjeZ3xmWnpeg974tjZIww/s1157/Seis%20dias%20de%20guerra.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="836" data-original-width="1157" height="462" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgzk9t6JwjH07VXCjvgPHRK0JIC-mzZbEBUB8qAvE5X3vmriTVEaNTTYn6VJcbK2h5k_lokGHXQsI3tI3HwR-hk3VUmUiFbQL8FTz0T8TcYgWm-hhFf5CbZLTEPaaVATS6kiOKLWgo3SECiKOxKa6Ux6L8-o66pmhr4q7mP-ZjeZ3xmWnpeg974tjZIww/w640-h462/Seis%20dias%20de%20guerra.jpg" width="640" /></a></div><br />A guerra estava chegando em Israel. <div><br /></div><div>"Por todo o país, milhares de pessoas ocupavam-se em cavar trincheiras, construir abrigos e encher sacos de areia num ritmo febril. Em Jerusalém, faziam-se exercícios diários de proteção contra ataques aéreos em escolas adaptadas para servirem de abrigo. Promoveu-se uma campanha emergencial de coleta de sangue e encomendaram-se unidades extras de plasma no exterior. Criaram-se comitês para reunir víveres essenciais, para substituir trabalhadores convocados para a frente de guerra e para evacuar crianças. Prepararam-se 14 mil leitos hospitalares e estocaram-se antídotos para vítimas de gás venenoso. Cavaram-se cerca de 10 mil sepulturas".<p></p><p>As ameaças constantes aguçaram o sentido de urgência dos judeus. O Egito vinha há semanas em preparação ostensiva para atacar Israel. Suas tropas estavam mobilizadas nas fronteiras, em zonas pretensamente desmilitarizadas. Vôos egípcios de reconhecimento sobre instalações estratégicas israelenses alarmaram o governo. Os países árabes se organizavam para um ataque conjunto.</p><p>Era junho de 1967. Shukayri, presidente da OLP, exultava. "Destruiremos Israel e seus habitantes!"</p><p>O rei Hussein da Jordânia foi ao Cairo celebrar o acordo militar com o presidente Gamal Abdel Nasser. Ao retornar à Aman, declarou que "todos os exércitos árabes cercam Israel agora". Confiante, exaltou a união de "Síria, Jordânia, Iraque, República Árabe Unida, Iêmen, Líbano, Argélia, Sudão e Kuwait... não existe diferença entre um e outro povo árabe, entre um e outro exército árabe".</p><p>Os números eram mesmo portentosos. Do Iraque viriam quatro brigadas e dezoito caças. A Jordânia entraria com onze brigadas, 56 mil homens, 270 tanques Centurions e Pattons e vinte e quatro caças Hawker Hunter. A Síria já tinha em posição 50 mil soldados e 260 tanques. Todos estes exércitos estavam coordenados com os 130 mil soldados, 900 tanques e 1.100 peças de artilharia egípcia para o que Nasser chamou de "a operação que surpreenderá o mundo".</p><p>As ruas poeirentas do mundo árabe estavam em polvorosa. Era como se estivessem na véspera de uma grande final de Copa do Mundo. A capital do Egito, destaca Oren, "estava enfeitada com cartazes que representavam soldados árabes atirando, esmagando, estrangulando e trucidando judeus barbados e de nariz adunco".</p><p>A Rádio Cairo, estatal egípcia atentamente ouvida em todos os países árabes (era como uma Al-Jazeera da época), inflamava sua enorme audiência. Irradiava como se fosse uma animadora de torcida: "O Golfo de Aqaba é árabe, árabe, árabe". Empolgada, ameaçava não só os israelenses, como "falava" com os Estados Unidos: "Milhões de árabes estão se preparando para explodir todas as instalações americanas, toda a sua existência, América".</p><p>Assim, embora ninguém soubesse exatamente quando, a partida que ainda estava por começar já tinha o seu resultado assegurado (na visão entusiasmada das massas do Egito, da Síria e da Jordânia). Já o populacho não discernia o que era bravata e o que era capacidade militar.</p><p>É esta a história que o diplomata e historiador Michael B. Oren, nascido em Nova Jersey, nos traz. Para nos fazer entender os desdobramentos, ele volta alguns anos no tempo e destrincha meticulosamente, em cada um dos países protagonistas e periféricos, os acontecimentos que levaram à guerra.</p><p>Eu não vou contar essa história. Quero dizer, as movimentações táticas, os ataques, as estratégias. Quem quiser conhecê-las que leia o livro. Que não é só é muito bom, como busca dar a visão de ambos os extremos do confronto - incluindo as superpotências da Guerra Fria, EUA e URSS.</p><p>Quero me ater mais às narrativas. As elaboradas antes, durante e depois do conflito.</p><p>Como todo mundo sabe, aquilo lá sempre foi um barracão prestes a explodir os 365 dias do ano. E - poucos anos antes da guerra que é tema do livro - houve um dia em que os árabes se depararam com um problema novo. Israel vinha desenvolvendo tecnologia para irrigar o deserto de Negev.</p><p>O Negev sempre foi uma área imprestável para a ocupação humana. Se os israelenses fossem bem sucedidos, pensaram, o deserto se tornaria perigosamente habitável. Era de fato uma área enorme no interior da Palestina. Caberiam ali até três milhões de pessoas. Ou seja, três milhões de judeus.</p><p>Estavam em 1964. Consternada, a Síria "clamou por uma 'guerra popular' para destruir a conspiração sionista". A Jordânia e a Arábia Saudita se alinharam com os sírios. O Egito não achava o momento adequado. Acreditava que precisariam se preparar. Cauteloso, o carismático presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, promoveu uma conferência de cúpula dos Estados árabes.</p><p>A primeira ideia dos árabes foi desviar o Rio Jordão e impedir que a água do rio chegasse a Israel, frustrando os planos dos judeus. Julgaram que era também um momento potencialmente adequado para escalar o conflito.</p><p>"A conferência criou um Comando Árabe Unificado (CAU) para preparar uma campanha militar ofensiva", explica Oren, "para prover de material bélico a Jordânia, o Líbano e a Síria". O plano era colocar a "excelente força aérea do Iraque a serviço do CAU e estabeleceram-se as condições para travar a guerra: sigilo, unidade e preparação militar total". </p><p>A guerra do extermínio de Israel, entretanto, ainda não estava pronta para ser deslanchada. Por motivos variados, que o autor esmiuça bem, tiveram que colocar o pé no freio. Nas duas cúpulas subsequentes, em Alexandria, em setembro daquele ano, e em Casablanca, Marrocos, um ano mais tarde, "ampliou-se o orçamento do CAU para quase US$ 600 milhões e traçaram-se planos para a 'eliminação da <i>agressão</i> israelense' em algum momento de 1967".</p><p>Nos primeiros meses de 1967, houve algumas escaramuças. Nada de sério. Afinal de contas, as fronteiras de Israel eram nitroglicerina pura. Os árabes se consideravam bem armados pelos soviéticos. Ainda que as lideranças de cada país tivessem dificuldades em se entender, a hora do ajuste de contas parecia chegar. Mas faltava a fagulha que acenderia o estopim. </p><p>No entendimento do autor, o gatilho foi uma informação equivocada do serviço secreto russo, à feição para os sonhos de grandeza do presidente egípcio. Os soviéticos teriam identificado uma movimentação de tropas israelenses na fronteira com a Síria. Interpretaram como se fossem indícios de uma invasão do território sírio. Os israelenses negaram veementemente. Ainda assim, os russos comunicaram aos egípcios. Fosse ou não verdade, era uma versão conveniente.</p><p>Nasser, agora seguro quanto à preparação e ao armamento dos seus exércitos, julgou que por fogo no paiol, com uma intervenção egípcia em favor dos sírios, contribuiria para o seu protagonismo na política árabe.</p><p>Com isso em mente, autorizou fossem postos em prática os planos militares para a invasão de Israel. Determinou a expulsão das forças da UNEF (uma força internacional estacionada no Sinai, evitando choques de fronteira entre Egito e Israel). Enviou milhares de soldados para a fronteira. Fez vôos de reconhecimento sobre o território de Israel. Fechou os Estreitos de Tiran, impedindo o tráfego dos navios comerciais israelenses.</p><p>Articulou com os governos da Síria, Jordânia e Iraque. Pediu suporte militar ao governo russo. Rechaçou tentativas norte-americanas que buscavam evitar o conflito. Mandou ultimatos a Tel Aviv. Surgiram dúvidas quanto à estratégia de Nasser. Seria jogo de cena? Ele fazia tudo à luz do dia. </p><p>Os judeus estavam na expectativa de uma intervenção dos Estados Unidos que dissuadisse os árabes. Ou que conseguissem persuadir os russos a dissuadirem os árabes. Em vão. Diante da escalada diária das perspectivas de guerra, Israel se mobilizou - como vimos no primeiro parágrafo desse post. </p><p>A guerra estava chegando em Israel.</p><p>As forças armadas de cada país estavam organizadas nas fronteiras, como pistoleiros se encarando, para ver quem sacaria primeiro. Neste caso, a todos convinha a desculpa da auto-defesa. Principalmente porque se sentiam ameaçados pela pressão das duas superpotências, às quais não interessava a guerra no Oriente Médio, e ambas prometiam pesadas sanções a quem se atrevesse. Questões políticas internas pesavam em ambos os lados.</p><p>Nesta encarada tensa, o Estado de Israel, cercado por todos os lados, acuado, decidiu atacar. Os Estados Unidos, que vinham cortando um dobrado para por panos quentes na situação, cansaram. O secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, perguntado se os Estados Unidos continuariam a conter Israel, respondeu: "Não acho que seja tarefa nossa conter ninguém".</p><p>A piaba ia cantar.</p><p>Às 8h15 da manhã do dia 5 de junho de 1967, hora do Egito, os pilotos egípcios já haviam feito suas patrulhas e tinham retornado às bases para o café da manhã. No ar, restaram quatro aviões de treinamento (nenhum deles armado).</p><p>O plano israelense exigia que doze esquadrões de diferentes bases se encontrassem silenciosamente sobre onze alvos situados a distâncias variando entre vinte e quarenta e cinco minutos de vôo. "Era de uma complexidade labiríntica e extremamente arriscado", considera Oren. "Todos os jatos do país, à exceção de doze, foram lançados no ataque - os aficcionados do futebol americano chamariam-no de 'Ave-Maria' - deixando os céus do país virtualmente indefesos".</p><p>A ofensiva de Israel teve início. Seus aviões entraram no espaço aéreo do Egito.</p><p>Após duas horas de sucessivos e coordenados ataques israelenses, o governo egípcio soltou um comunicado: "Com uma incursão aérea sobre o Cairo e por toda a RAU, Israel começou seu ataque às nove horas de hoje. Nossos aviões lutaram e repeliram o ataque".</p><p>Os jornalistas estrangeiros não tiveram permissão de se aproximar da linha de frente e as linhas telefônicas internacionais foram cortadas. "Por toda a capital os cidadãos comemoravam. 'As ruas transbordavam de manifestantes', relembrou Eric Roleau, correspondente do <i>Le Monde</i> no Oriente Médio. 'Canhões antiaéreos atiravam. Centenas de milhares de pessoas entoavam 'Abaixo Israel! Nós venceremos a guerra!"</p><p>O historiador reproduz o noticiário árabe do dia. "Os relatos do contra-ataque eram animadores. Um total de 86 aviões inimigos teria sido derrubado, incluindo um bombardeiro americano. As perdas egípcias registradas eram de dois aparelhos."</p><p>Segundo o embaixador americano no Cairo, "as notícias causaram muito alvoroço e aplausos, com a rádio tocando canções patrióticas, intercaladas com chamados de retorno à Palestina e reencontro em Tel Aviv".</p><p>As boas novas não se restringiam à mídia oficial. O Ministro da Defesa do Egito, Abdel Hakim Amer, telegrafou para seu congênere jordaniano, informando que "a despeito do ataque de surpresa, os israelenses perderam 75% de seu poderio aéreo". Complementou que "o exército egípcio estava contragolpeando e preparando uma ofensiva desde o Sinai".</p><p>A Força Aérea Egípcia informou às 10h da manhã "ter derrubado 161 bombardeiros israelenses". Os números eram tão estupendos que "Nasser ficou desconfiado" dos seus próprios militares. "As multidões celebravam, cantando, dançando e aplaudindo as notícias dadas de hora em hora", rememorou muito tempo depois Anwar Sadat.</p><p>A Rádio Cairo alardeava: "Nossos aviões e nossos mísseis estão neste momento bombardeando todas as cidades e povoados de Israel". A emissora convocava "todos os árabes a vingarem a dignidade perdida em 1948, atravessando a linha do Armistício até o covil da gangue, Tel Aviv".</p><p>Um pouco antes, às 9h30, o presidente do Egito telefonara para o Rei da Jordânia, Hussein, relatando as pesadas perdas israelenses e a destruição das bases aéreas de Israel. Nasser exortou o rei a "tomar posse rapidamente da maior quantidade possível de território para estar à frente do cessar-fogo das Nações Unidas".</p><p>Embora a última coisa que Israel quisesse naquele momento fosse envolver uma segunda frente na guerra (com a proibição expressa do ministro da Defesa de Israel, Moshe Dayan, de não responder a nenhuma provocação jordaniana na fronteira), o rei Hussein se pronunciou na Radio Aman que "a Jordânia fora atacada e que a hora da vingança havia chegado".</p><p>Ao mesmo tempo, o governo do Iraque assegurou à Jordânia que os aviões iraquianos "já estavam em ação contra Israel". Ainda que Israel não houvesse dado um único passo em direção ao território do país, o rei deu o comando para bombardear os judeus. "Eles começaram a batalha", mentiu. "Agora estão recebendo a resposta pelo ar. A sorte está lançada."</p><p>Na Síria também havia euforia. A Rádio Damasco trombeteou que "a força aérea síria começou a bombardear as cidades israelenses e destruir suas posições". O embaixador soviético na Jordânia celebrou. "Nossa expectativa é a de que os árabes vencerão a guerra se lhes for permitido travá-la até o fim".</p><p>Seguindo as ordens expressas de Moshe Dayan, as FDI permaneciam impassíveis. Mas a situação mudou quando morteiros da Legião Árabe estacionada na Jordânia lançaram as primeiras seis mil bombas sobre a Jerusalém judaica. Segundo Oren, o rei Hussein "assistiu ao ataque em seu jardim, onde seus filhos pequenos vibraram com o estrondo das bombas".</p><p>As bombas, entretanto, já eram retaliação israelense. O conselheiro real, Wasfi- al-Tall, que desde o início se opusera à aliança da Jordânia com o Egito, previa que a situação não ia acabar bem para os jordanianos. Mandou a real para o rei. "Perdemos tudo o que Vossa Majestade construiu ao longo do seu governo!" Se virou então para o líder da OLP, defensor dos egípcios, e cobrou: "E onde está a força aérea egípcia? Onde estão seus MiG, seus mísseis?"</p><p>O desespero do conselheiro não era compartilhado pelo primeiro-ministro Jum'a, que fez um pronunciamento pelo rádio: "Hoje estamos vivendo as horas mais sagradas de nossas vidas. Unidos a todos os demais exércitos da nação árabe, lutamos a guerra da honra e do heroísmo contra nosso inimigo comum. Esperamos anos por essa batalha para apagar a mancha do passado".</p><p>Os alto-falantes de Jerusalém eram mais contundentes e exortavam os fiéis a "pegar em armas para recuperar seu país roubado pelos judeus". O correspondente da <i>Lif</i>, registrou os árabes "comemorando a queda do Palácio do Governo aos gritos de 'Amanhã tomaremos Tel Aviv!"</p><p>O presidente da Síria, Nureddin al-Atassi, também fazia coro às exortações. "Decidimos que esta seria a batalha da nossa libertação final do imperialismo e do sionismo", declarou. "Nos encontraremos em Tel Aviv", afirmou. Mais um a marcar encontro na capital israelense. Haja gente.</p><p>O exército jordaniano pediu cobertura aérea à Síria. O general Fawzi assegurou que "os aviões sírios atacariam as forças israelenses na área de Jenin ao raiar do dia seguinte". </p><p>O comandante sírio Hafez al-Assad reportou uma vitória avassaladora. Assegurou que "nossas forças realizaram um pesado bombardeio contra o inimigo em todo o setor norte", completando que "o inimigo perdeu a maior parte do seu poderio aéreo".</p><p>Na verdade, como relata Michael Oren, restava à Síria pouca força aérea. "Dois terços dela - dois bombardeiros Ilyushin-28, 32 MiG-21, 23 MiG-17 e três helicópteros - haviam sido eliminados em oitenta e duas surtidas diurnas realizadas pela FAI contra as bases aéres de Dmair, Damasco, Saiqal, Marj Rial e T4. A base iraquiana de H-3 foi também atingida e dez de seus aviões destruídos".</p><p>Ao contrário da disléxica e mal intencionada narrativa árabe, ao longo do primeiro dia da guerra Israel trucidou a força aérea egípcia, síria e iraquiana. Enquanto suas forças eram derretidas, os líderes e a mídia dos três países e mais a Jordânia permaneciam divulgando o triunfo árabe e o aniquilamento do inimigo judeu. Não só este discurso era levado à população dos seus países, mas eram também os informes trocados entre as lideranças políticas e militares.</p><p>Os maiorais da cúpula árabe asseguravam aos seus colegas árabes que estavam, cada um deles, esmagando os judeus. Mas, no campo de batalha, a história era outra. E nem Nasser e nem Hussein "estavam a par da situação periclitante dos seus exércitos". Os ministros da Defesa de ambos os países simplesmente mentiram para os seus próprios superiores. </p><p>"Os órgãos de segurança egípcios, rádio e imprensa, continuavam a alardear vitórias extraordinárias, e os comunicados jordanianos diziam que as forças israelenses haviam sido repelidas em Jerusalém e Jenin e trinta e um de seus aviões abatidos".</p><p>"Os oficiais de Nasser tinham medo de colocá-lo a par, ao passo que os de Hussein, carentes de comunicação com o campo, nada sabiam. Ninguém acreditaria facilmente que a aviação egípcia, o coração do esforço de guerra árabe, fora aniquilada em questão de horas e nem que os tanques israelenses avançavam em duas frentes enquanto os sírios permaneciam inertes".</p><p>Só quando Nasser foi até o Alto Comando é que ele tomou ciência do que estava acontecendo. "Lá encontrou uma enorme balbúrdia. 'Amer, bêbado ou drogado, ou as duas coisas, estava berrando ao telefone". Primeiro mandou atacar, e em seguida mandou recuar. Na verdade, os egípcios não sabiam o que fazer.</p><p>Ou melhor, sabiam sim. Diante da catástrofe militar, rapidamente a narrativa adotada pelo Egito e demais países árabes foi a de alardear uma suposta participação norte-americana na guerra. "Nasser e 'Amer concordaram em sustentar a ficção do envolvimento anglo-americano direto na guerra, tanto para minimizar a desonra do Egito quanto para incitar os soviéticos a intervirem".</p><p>A emissora do Estado, a Rádio Cairo, às 18h05 endossou o estratagema e irradiou: "Os Estados Unidos são o inimigo. Os Estados Unidos são a força hostil por trás de Israel. Os Estados Unidos, ó árabes, são o inimigo de todos os povos, os assassinos da vida, os que fazem correr sangue, os que os impedem de liquidar Israel".</p><p>Estavam ainda no primeiro dia da guerra. Mal tinham completado dez horas desde o primeiro ataque. Depois de passar o dia divulgando a destruição de Israel pelas forças egípcias e aliadas, a transmissão agora denunciava os americanos como os grandes agressores. O populacho se exaltou.</p><p>"A começar por Beirute, todas as embaixadas e consulados dos Estados Unidos no mundo árabe foram atacados por turbas enfurecidas". </p><p>Na verdade, os Estados Unidos estavam totalmente fora do conflito - militar (por ausência) e diplomaticamente (por incompetência). Mas o povo árabe acreditava piamente que os americanos estavam por trás dos israelenses.</p><p>Os países aliados, entretanto, já começavam a desmontar do cavalo. O chefe da Inteligência militar jordaniana, general Ibrahim Ayyub, convocou seu Estado Maior às 19h. "Acabo de receber a informação de que 90% da força áerea egípcia foi destruída no solo por Israel."</p><p>Embora Jordânia e Síria ainda fossem cumprir um papel (acanhado) no cenário de guerra, o Egito, a maior das forças da região e aquele que insuflou o conflito, chegou ao fim do primeiro dia de combate já totalmente estropiado. E as coisas ainda iriam piorar no campo de batalha. As forças egípcias fizeram uma das mais confusas retiradas da história das guerras.</p><p>Quanto à retirada, 'Amer justificaria mais tarde a sua decisão citando o colapso da força aérea egípcia e a queda da primeira linha de defesa: "A retirada era a única forma que eu tinha de impedir a total destruição e o aprisionamento do exército". No entendimento de Oren, porém, esses foram exatamente "o resultado de sua ordem de mandar um vasto exército reunido em mais de vinte e quatro dias se retirar em menos de vinte e quatro horas".</p><p>"O relacionamento misterioso entre Nasser e 'Amer traduzira-se em anarquia no campo de batalha", enfatiza o historiador. "Talvez acreditassem que seria possível reviver o mito de 1956, salvar as aparências apresentando a retirada como uma manobra tática imposta pela esmagadora superioridade do imperialismo". Ou, então, "talvez esperassem que um recuo tão dramático aos braços soviéticos obrigariam-nos a interceder. Mas a questão de por que a ordem foi dada e por quem, se Nasser ou 'Amer, permanece em discussão. O exército egípcio estava fugindo".</p><p>Porque, recapitulando, foi isto o que aconteceu: durante mais de três semanas os egípcios se acumularam na fronteira para atacar os israelenses. Aterrorizados e sem saber quando os egípcios iriam atacar, os israelenses se lançaram em um ataque súbito; o ataque foi espetacularmente bem-sucedido; e aí o exército egípcio, em vez de se reposicionar para conter a ofensiva israelense, danou de correr de volta para o Egito, largando veículos e armamento, com os judeus em seu encalço.</p><p>Era o caos no deserto.</p><p>No gabinete das lideranças árabes, porém, uma contra-ofensiva estava sendo montada. Não para aplicação no teatro de guerra, mas para o palco das narrativas. Frente à derrocada após míseras dez horas de confronto, Nasser já discursava que não fora Israel quem derrotara o Egito - e sim os Estados Unidos e a Inglaterra, juntos.</p><p>Na ONU o que havia era um barata-voa. Diante das versões conflitantes e contraditórias, os representantes de cada país envolvido entravam e saíam do plenário. Os americanos queriam um cessar-fogo imediato; os israelenses, em vantagem, queriam adiar o cessar-fogo; os egípcios, crentes que os soviéticos viriam em seu socorro, não queriam o cessar-fogo.</p><p>Diante da hesitação do representante do Egito, El Kony, o representante de Israel, Goldberg, ironizou. "Parece que os árabes sempre concordam tarde demais com as resoluções da véspera".</p><p>No outro lado do oceano, bem mais ao sul de Nova York, o povo local começava a tomar pé da situação. "Os egípcios estavam arrasados", comenta o historiador. "Durante todo o dia eles ouviram relatos arrebatadores das vitórias árabes".</p><p>A Rádio Cairo insistia em informar que o exército egípcio "varrera os ataques israelenses a Kuntilla e a Khan Yunis e estava penetrando o território inimigo".</p><p>Manifestações de apoio ao Egito choviam em todo o mundo. "Estamos extremamente indignados com a ação dos reacionários israelenses, agentes do imperialismo americano e britânico", escreveu o líder comuista vietnamita Ho Chi Min. Uma declaração oficial soviético proclamava "total confiança" na "luta justa" dos árabes "contra o imperialismo e o sionismo".</p><p>Os egípcios, além de atribuir aos americanos e ingleses o ataque, acusaram a União Soviética de fornecer "armas defeituosas" ao Egito. A URSS retrucou: "As armas que fornecemos aos vietnamitas têm se revelado seguramente superiores às americanas".</p><p>A Rádio Damasco embarcou na nova narrativa. "Bombardeiros britânicos, decolando em ondas incessantes dede Chipre, estão ajudando e abastecendo Israel, e atacando nossas posições avançadas".</p><p>Nasser bradava que os judeus pilotavam caças ianques com mapas da CIA, segundo "confissões de pilotos abatidos". Soltou um comunicado esbravejando que "convocou as massas árabes a liquidar todos os interesses imperialistas". Rompeu relações com os Estados Unidos, no que foi rapidamente seguido por outros seis Estados árabes (Síria, Sudão, Argélia, Iraque, Mauritânia e Iêmen). Liderou um movimento de expulsão dos embaixadores norte-americanos e ingleses dos países árabes.</p><p>A Rádio Argel proclamou que "a América é agora o inimigo número 1 dos árabes", complementando que "a presença norte-americana deve ser varrida da pátria árabe".</p><p>A Rádio Aman afirmou que três porta-aviões americanos estavam operando no litoral de Israel (na verdade, um navio norte-americano, o <i>Liberty</i>, estava inadvertidamente próximo, e foi atacado pela força aérea israelense, matando mais de cem americanos, em um dos mais graves acidentes diplomáticos da década).</p><p>Ou seja, não só não havia apoio dos EUA, como seu único navio na região foi destroçado por aquele que foi acusado de ser seu mero fantoche, Israel.</p><p>Que situação.</p><p>O presidente egípcio ligou do Cairo para o rei jordaniano, usando uma linha civil não codificada. A conversa foi gravada pela inteligência israelense e amplamente divulgada.</p><p>"Diremos que os Estados Unidos e a Grã Bretanha estão atacando ou somente os Estados Unidos?", perguntou Nasser. Hussein respondeu que ambos. "Por Deus!", Nasser exclamou, animado. "Eu faço um pronunciamento, o senhor faz um pronunciamento e tentamos convencer os sírios a também fazerem um pronunciamento, dizendo que aviões americanos e britânicos estão agindo contra nós a partir de porta-aviões".</p><p>No mesmo diapasão ufanista, Nasser encerrou. "Nossos aviões estão atacando as bases aéreas israelenses desde de manhã."</p><p>Mas se a alegação de conspiração ocidental para ajudar Israel ajudou o rei a aplacar os palestinos, não alterou a sua situação periclitante. Ele já tinha apelado pela ajuda das forças sírias e sauditas estacionadas na fronteira, em vão. Deram como desculpa "falta de ordens". Os iraquianos ao menos mandaram uma brigada cruzar uma ponte - a Damyia -, mas foram dizimados pela FAI.</p><p>Oren conta que "exasperado, o rei saiu do quartel-general, pediu um jipe e desceu correndo para o Vale do Jordão". Ao chegar lá, murmurou: "Jamais vou esquecer essa alucinante visão da derrota". O que ele tinha à frente eram "estradas atulhadas de caminhões, jipes e veículos de todo o tipo amassados, retorcidos".</p><p>Estavam apenas no segundo dia da guerra. Israel procurava estabilizar o front e, doravante, manter os territórios ocupados durante as horas de guerra. Os árabes queriam salvar as aparências. </p><p>Apesar de todo o jogo de cena, de todos os "encontros" marcados em Tel Aviv, ao fim deste dia, em uma mensagem ao rei da Jordânia, Nasser reconhecia o fiasco. " Nesse exato momento nossa frente está se desintegrando", escreveu. "Ontem a força aérea do nosso inimigo nos infligiu um golpe mortal. Desde então nossas forças terrestres têm estado privadas de apoio aéreo e obrigadas a resistir ao poder de forças superiores", admitiu. </p><p>Em seguida, comunicou o recuo, a evacuação e a expectativa por um cessar-fogo.</p><p>Com menos de 48 horas de um combate que duraria ainda mais quatro dias - apenas -, os países que passaram os últimos anos escalando a guerra e prometendo a extinção do Estado de Israel capitulavam. Os dias seguintes ainda teriam intensa atividade militar, política e diplomática; mas as consequências da guerra já estavam todas rascunhadas.</p><p>Ninguém ali era inocente. Se fossem, não teriam chegado às posições que ocupavam. Nasser queria assumir a liderança do mundo árabe. Hussein queria fortalecer sua posição na Jordânia. A Síria queria abocanhar novamente um pedaço da Palestina. Todos queriam se ver livres dos refugiados palestinos.</p><p>Para seus projetos pessoais de poder, Israel era um pretexto conveniente.</p><p>A mesma Israel que, antes amedrontada, ao atacar e estraçalhar seus inimigos quis pegar o máximo das terras que invadira. E não parou por aí. Nos dias seguintes, avançou pelo Sinai, ocupou Jerusalém e diversas outras cidades da Cisjordânia, invadiu as colinas de Golan.</p><p>O mapa geopolítico do Oriente Médio fora redesenhado em algumas dezenas de horas.</p><p>Um novo capítulo do conflito árabe-israelense estava por se desenrolar. A manutenção das terras conquistadas ao Egito, à Jordânia, ao Líbano e à Síria se tornaria o pivô da nova etapa (não que a extinção sumária de Israel tivesse saído de pauta) bélica da região.</p><p>O cenário desaguaria na Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando uma coalizão árabe avançaria contra Israel. A intenção era não só retomar as terras, mas recuperar a honra perdida. Uma retaliação contra os judeus era fundamental para o resgate da narrativa.</p><p>Mas aí já é outra história.</p><p>Bertrand Brasil, 529 páginas | 1a edição, 2004 | Copyright 2002 | Tradução Pedro Jorgensen Jr</p><p>Título original: "<i>Six Days of War</i>"</p></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-12956809424305440202024-01-14T13:10:00.000-03:002024-01-14T13:10:00.018-03:00"Israel x Palestina", por James Gelvin<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4_ZjbFcApUg7N6IS5GdcRWQyukmGqQeJr6NSmXSjlyrsgFSdzo2f0sYmTgIClMyYZELZ-2rYrXX5E_SRHQ3JMHj0f3YGhQIgY9ioRACRY1HEemIbrbdFI4v69ghG-lvNQbEkwLU24d0_NdiuOGvKbfpSgyKzMGX2Vtxs2U8J-3PRklm440pL2KrtXUR4/s1543/Israel%20x%20Palestina.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1135" data-original-width="1543" height="470" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4_ZjbFcApUg7N6IS5GdcRWQyukmGqQeJr6NSmXSjlyrsgFSdzo2f0sYmTgIClMyYZELZ-2rYrXX5E_SRHQ3JMHj0f3YGhQIgY9ioRACRY1HEemIbrbdFI4v69ghG-lvNQbEkwLU24d0_NdiuOGvKbfpSgyKzMGX2Vtxs2U8J-3PRklm440pL2KrtXUR4/w640-h470/Israel%20x%20Palestina.jpg" width="640" /></a></div><br />James Gelvin é um norte-americano estudioso do mundo árabe. É professor de História do Oriente Médio na Universidade da Califórnia e especialista na história do Leste Árabe. Entre os muitos títulos que publicou, este "Israel x Palestina" é o único traduzido para o português. <p></p><p>Sua produção literária sobre a região é vasta. "Divided Loyalties: Nacionalism and Mass Politics in Syria" (1998); "The Modern Middle East: a History" (2004); "The Arab Uprisings" (2012); "Global Muslims in the Age of Steam and Print - 1850-1930" (2013); "The New Middle East" (2017); "The Contemporary Middle East in an Age of Upheaval" (2021).</p><p>Os títulos são bons. Lamento que não haja aqui um universo leitor que viabilize o investimento do mercado editorial nas suas obras. Aos brasileiros coube apenas este filho único, lançado em 2005 e que, diante da instabilidade da região, passou por sucessivas atualizações - em 2007, 2013 e 2021.</p><p>Ou seja: com o pau quebrando na Faixa de Gaza desde 7 de outubro, ele vai ter que esperar pelo desenlace desta nova guerra para mandar para o prelo mais uma (extensa) atualização.</p><p>Vale estabelecer que este título do Gelvin é um livro de espírito didático, mas com um leve viés. Compila informações de diversas fontes e busca estabelecer uma narrativa que, em essência, fundamente os direitos do povo palestino às terras que compõem a Palestina histórica.</p><p>Não digo que está certo, nem que está errado. Ele interpreta o conflito sob uma lente árabe. Um enfoque que, na minha opinião, não contamina o resultado final do texto. É válido. Difícil não pender para um ou outro lado em uma questão tão sanguínea. Dou crédito ao ponto de vista do professor.</p><p>Ainda que neste seu livro eu divirja aqui ou acolá, a fundamentação do historiador é legítima.</p><p>"Narrativas nacionalistas, como aquelas elaboradas pelo sionismo e pelo nacionalismo palestino, nos oferecem uma interpretação incompleta e parcial da história", diz o norte-americano. "As narrativas nacionalistas assumem que as nações sempre existiram no decorrer da história", continua, mas ressalvando que os movimentos nacionalistas, mais do que meramente darem suporte a estas narrativas, "criam essas nações".</p><p>Antes dele mesmo fazer a sua digressão histórica, destaca que "o sionismo e o nacionalismo palestino foram fundados no mesmo molde". Para ele, "as narrativas nacionalistas ocultam ou ignoram as similaridades entre as nações cuja história eles querem valorizar e as demais nações; seu relato confirma o direito daquela nação de ser soberana e ter suas próprias regras em um pré-definido pedaço de terra".</p><p>Quem conhece o trabalho do historiador Timothy Snyder está familiarizado com essa abordagem.</p><p>Gelvin abre o livro da História e explica que o território hoje chamado de Palestina (cujo nome vem de <i>Filistina</i>, ou seja, do antigo povo dos filisteus) foi "uma das primeiras áreas conquistadas pelos árabes muçulmanos depois do surgimento do islamismo no século VII". Com o passar dos anos, o povo que vivia nos vilarejos locais adotou o idioma árabe e a religião muçulmana.</p><p>Ressalta que as povoações se situavam nas fraldas da região montanhosa. A parte litorânea ficava sob domínio dos beduínos - nômades de conduta agressiva e refratários a qualquer espécie de subordinação. Vez por outra a região era alvo de alguma expedição guerreira turca.</p><p>Em 1453 os otomanos capturaram Constantinopla, a capital do Império Bizantino (que, por sua vez, substituíra o Império Romano), e a rebatizaram de Istambul. É o marco histórico do início do Império Otomano. O domínio se estendeu dos Bálcãs ao norte africano, incluindo o Oriente Médio e o Egito. A Palestina estava neste pacote aí.</p><p>Não tinha relevância econômica ou estratégica, mas tinha importância religiosa e, portanto, simbólica. Assim, com a conquista, o Império Otomano, que era islâmico (sunita), passara a ter no seu portfolio as três cidades sagradas: Meca e Medina, na Arábia, e Jerusalém, na Palestina.</p><p>Nos conta o especialista que houve uma breve alternância de poder durante o século XVIII, quando um beduíno - Zahir al-'Umar - tomou o controle militar da Galileia e estabeleceu um principado cuja capital era Acre. Já a região onde hoje fica o Líbano foi tomada por um ex-escravo egípcio, Ahmad Al-Jazzar, conhecido como Al-Saffah (o carniceiro).</p><p>A população local era basicamente rural. Até então sua única possibilidade de inserção econômica era fazendo o abastecimento de víveres das caravanas que vinham em peregrinação religiosa para Jerusalém. Mal comparando, era como vender biscoito em engarrafamento ou, na melhor das hipóteses, camarão na praia. Uma atividade sazonal e de baixa rentabilidade.</p><p>Os moradores da Palestina eram este povo simples, habitantes pacíficos de uma zona de passagem. Sem nacionalidade, governo ou regulação. Viviam em aldeias e sem uma liderança central, montando cada uma a quatro a cinco clãs familiares. Quando necessário, os mais velhos se reuniam em uma espécie de conselho. Não havia entre eles o conceito de propriedade do solo.</p><p>Este esquema acéfalo havia dificultado por séculos que os cobradores de impostos do Império Otomano tivessem a quem taxar. Era então uma terra pobre, quente, seca e improdutiva. Mas o surgimento de um mercado mundial veio mudar a história desta faixa desértica. Seus novos xerifes, o beduíno e o egípcio, encontraram uma vocação para a Palestina. A monocultura.</p><p>Seu longo isolamento econômico se alterou com a adesão à especialização no cultivo agrícola - principalmente do algodão. Comerciantes franceses se estabeleceram nos portos de Acre e Sidon e o algodão da Galileia começou a ser exportado para uma Europa que vivia o <i>boom </i>da Revolução Industrial. Os magnatas Al-'Umar e Al-Jazzar, à revelia dos otomanos, vendiam algodão em troca de armas europeias. Com o lucro do comércio, construíram um novo porto, Haifa.</p><p>Ainda que a narrativa neste ponto fique cronologicamente um pouco confusa, eu tentei me achar. Neste ponto o professor frisa que os otomanos do Império fizeram uma composição com os novos chefes locais, de forma que uma paz lucrativa vigorou por algumas décadas.</p><p>As coisas tornaram a mudar quando Mehmet Ali, filho de um pirata albanês, assumiu o controle do Egito. "Afirmando que os otomanos lhe prometeram o território que hoje é a Palestina, a Síria e o Líbano", em troca do seu apoio para conter uma rebelião na província otomana da Grécia, Mehmet advogou que a "Grande Síria" (composta pelas três regiões acima) era o prêmio que lhe era devido.</p><p>Gelvin conta que quem chefiou a ocupação da área foi seu filho, Ibrahim Pasha. O novo ocupante desarmou os locais e instituiu o recrutamento militar e taxas a serem pagas pelo povo. Investiu na modernização da infraestrutura local, construindo estradas para escoar a produção até os portos.</p><p>Os otomanos retomaram o controle da região em meados do século XIX. A esta altura o volume do comércio decaíra, porque um algodão melhor e mais barato estava sendo produzido em outras partes do planeta. Enfim, esta área erma e pouco rentável, distribuída em torno de mil vilarejos, que iam do mar Mediterrâneo ao rio Jordão, era o que então se chamava Palestina. Ufa.</p><p>Mark Twain, que visitou a Palestina em 1867, descreveu a região da seguinte forma em seu livro "<i>Innocents Abroad</i>": </p><p>"[<i>A Palestina</i>] é uma região desolada, com um solo muito fértil, totalmente entregue as ervas daninhas - uma vastidão silenciosa e lúgubre (...) Nós não vimos sequer um ser humano em todo nosso caminho... raras eram as árvores e os arbustos. Até mesmo as oliveiras e os cactos, bons amigos até dos solos inférteis, já praticamente desistiram dessa terra".</p><p>Gelvin, entretanto, crê que a visão de Twain não representava a realidade.</p><p>Havia nela gente de todo lugar e religião. Inclusive judeus. Que vieram do Egito, do Líbano, da Síria, da Pérsia. Eram comerciantes. Mas nas últimas duas décadas do século XIX eles começaram a chegar em profusão. Compravam terras e vinham da Europa. Queriam se tornar fazendeiros do deserto.</p><p>Diziam: "Uma terra sem um povo para um povo [judeus] sem uma terra".</p><p>As terras não eram compradas diretamente dos palestinos humildes. Estes moravam nas franjas da região, mas não possuíam nada. O solo estava na mão de sírios, egípcios e libaneses (e de palestinos ricos emigrados), que tinham legalizado e se apropriado do terreno quando do código de terras de 1858, que atribuíra direito de propriedade aos habitantes (o tal <i>direito</i> que não havia antes).</p><p>A medida resolveu o problema dos turcos, que poderiam cobrar impostos dos donos do solo - os quais, por sua vez, o venderam para os moradores ricos das áreas urbanas, que pagavam as taxas.</p><p>Quando a indústria do algodão arrefeceu, as terras viraram um fardo para os seus proprietários. Não tiravam nada dela e ainda lhes custava mantê-las. Então aquela revoada de judeus querendo comprá-las foi uma mão na roda. Dane-se se os compradores eram judeus europeus. Pagavam bem.</p><p>Era uma solução que beneficiava também os locais. Os palestinos tinham retornado à semi-indigência, pois sua produção agrícola havia se inviabilizado. A chegada dos judeus latifundiários irrigou a economia e abriu empregos. A questão é que, mesmo sendo solução, a presença crescente dos judeus era um problema institucional. Eles não eram apenas grandes proprietários e empregadores. Eles se diziam donos daquela terra no papel e também por direito divino. </p><p>O que trazia uma ameaça embutida. Esse "direito" queria dizer que eles não pretendiam ir embora.</p><p>O discurso da volta à Terra Prometida e o desembarque constante de mais judeus europeus acabou por se tornar fonte inesgotável de conflitos na virada do século XX. A injeção de recursos e a alta taxa de emprego se chocavam com a recusa árabe em aceitar os judeus como <i>co-proprietários da História da Palestina</i> (antecipo que a expressão é minha, não do autor). </p><p>Para os palestinos, o problema começou aí. E James Gelvin faz uma profunda e rara digressão sobre a história judaica para contextualizar esta irrupção. Ele volta à Idade Média e discorre sobre as antigas comunidades judias da Europa, que concentravam 90% de todos os judeus do mundo.</p><p>Era uma época pré-absolutista. Não havia Estados. Diz o professor que os judeus viviam em guetos e se auto-regulavam - educação, atendimento médico, casamentos e funerais, julgamento de disputas etc. Era um reflexo daqueles tempos. A chegada do Estado absolutista, com sua concentração de poder, alterou este contrato social e desalojou os judeus da sua posição à margem da sociedade. </p><p>"Durante o século XVIII, diversos líderes enérgicos - Luís XIV na França (reinou entre 1643-1715), Frederico, o Grande, na Prússia (reinou entre 1740-1786), Catarina, a Grande, na Rússia (reinou entre 1762-1796) e Maria Teresa (reinou entre 1740-1780) e José II na Áustria (reinou entre 1780-1790) - afirmaram a primazia do governante sobre seus súditos e sobre o território por eles habitado", explica o historiador.</p><p>"Embora os Estados por eles construídos não detivessem a eficácia, a regularidade e a variedade de atividades que os Estados modernos têm", assinala, "o modelo adotado de líderes estadistas fortes acabou desguarnecendo toda e qualquer tentativa de estrutura de mediação entre o governante e os governados".</p><p>Os judeus foram atingidos porque "entre essas estruturas de mediação estavam as corporativas, que davam aos súditos pertencentes a seu grupo, como os judeus, por exemplo, todas as autonomias locais que eles quisessem". Era o desmantelamento da autonomia cívica do gueto.</p><p>Embora Gelvin deixe uma certa lacuna nesta abordagem, ele frisa que "na Europa ocidental e central, a destruição de estruturas corporativas e a distinção legal que separava os judeus de seus compatriotas foram chamadas de 'Emancipação Judaica". Seu apogeu teria acontecido durante a Revolução Francesa.</p><p>Enquanto "a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade veio substituir (pelo menos na teoria) os privilégios aristocráticos e as rígidas hierarquias sociais", a cidadania francesa foi proposta aos judeus na Assembleia Nacional da França:</p><p><i>"Aos judeus como nação tudo deve ser negado, mas como indivíduos, tudo deve ser garantido. Eles devem ser cidadãos. Não pode haver uma nação dentro de outra nação. Não é tolerável que os judeus se tornem uma formação política separada, ou uma outra classe dentro do país."</i></p><p>Como bem ressaltou o autor, isso se deu na Europa ocidental e central - não só na França. A emancipação total dos judeus aconteceu na Grã-Bretanha (1858), Suíça (1866), Áustria (1867), Itália (1870) e Alemanha (1871). Mas no leste europeu a história foi diferente. A Rússia, por exemplo, não emancipou os judeus até 1915.</p><p>E, embora pareça ser apenas uma parte, é uma parte considerável. Cerca de 75% dos judeus do mundo viviam no leste europeu, e sua grande maioria dentro das fronteiras do Império Russo. Não que houvesse sido sempre assim; na verdade, os czares sempre tentaram manter os judeus fora da Rússia. O problema é que a Rússia não parava de crescer, tomando a terra alheia. </p><p>E na <i>terra alheia</i> existente ao redor moravam muitos judeus. Para mantê-los longe de Moscou, os judeus que vieram no solo tomado à Polônia foram circunscritos aos "Limites do Assentamento Judaico", que iam do Báltico, no norte, ao Mar Negro, no sul. Na fronteiras destes limites ficavam a Letônia, a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e o que restara da Polônia. Os judeus <i>neorussos</i> se acomodaram nestes países.</p><p>Segundo relata Gelvin, eles tinham que se manter em seus vilarejos (<i>shtetls</i>) e, entre si, falavam o seu próprio idioma, o <i>iídiche</i> - uma mistura de línguas que consistia, em grande parte, em alemão e hebreu, com um pouco de eslavo e até do francês antigo.</p><p>Se no centro e no oeste europeu os judeus tinham sido emancipados há muito como cidadãos, na Rússia o projeto para eles consistia em mantê-los segregados até que se "russificassem". Para tanto, em 1827 o governo russo começou a recrutar judeus para o Exército do czar. Eles eram convocados mais jovens que os russos cristãos, e o serviço militar era prestado até que completassem 25 anos.</p><p>O memorando que acompanhou a lei de recrutamento tinha um título extenso:</p><p><i>"Memorando sobre a transformação dos judeus para o benefício do império, através da gradual atração destes para professar a fé cristã, aproximando-os e, finalmente, fundindo-os completamente com os demais súditos do império."</i></p><p>O esforço deu certo apenas em parte, na análise do historiador. Ele acredita que, de fato, o projeto desmontou as estruturas e instituições que dominaram a vida dos judeus por séculos. Mas, por outro lado, o antissemitismo da sociedade russa não permitiu que eles fossem efetivamente assimilados.</p><p>Paradoxalmente, o mesmo sistema sócio-cultural judaico, que havia teoricamente se desestruturado, aparece ainda mais forte como consequência da resistência antissemita. E a manutenção dos <i>shtetls</i> não foi suficiente para conter os judeus nos vilarejos designados. Segundo o professor, eles migraram para os centros urbanos mais acessíveis.</p><p>Em quarenta anos, de 1860 a 1900, a população judaica de Varsóvia pulou de 41 mil para 220 mil. Neste mesmo período, o número total de judeus em Odessa saltou de 25 mil para 140 mil.</p><p>Mas isso não significava que os judeus estivessem sendo bem recebidos. Pelo contrário. Se muitas vezes eles fugiam dos <i>shtetls</i> por conta dos <i>pogroms</i> - ações deliberadas de destruição e assassinato coletivo promovidos por lideranças russas regionais -, nas cidades eram estigmatizados. Eram circunscritos a nichos e tinham a empregabilidade restrita.</p><p>Assim, no fim do século XIX, o que os judeus do leste europeu mais queriam - e passaram à ação - foi fugir. A princípio, não para a Palestina, mas para a América. Entre 1881 e 1914, 20% da população judaica da região imigrou. Entre 1,5 e 2 milhões foram para os Estados Unidos. Cerca de 350 mil imigraram para a Europa Ocidental.</p><p>E a Palestina com isso?</p><p>É que, na análise de Gelvin, o que atrapalhou a vida dos palestinos, fazendo com que um outro povo viesse ocupar o espaço que eles ocupavam há séculos, foi o fervor nacionalista do século XIX. Não que estas pessoas estivessem passando por um surto de paixão patriótica. Na verdade, elas estavam descobrindo o conceito de nação. E isso redesenhou as fronteiras do planeta.</p><p>Em linhas gerais, porque senão isso aqui não tem fim, o Iluminismo - que privilegiava a razão e a base científica em detrimento da tradição e dos dogmas religiosos - concluía que "as leis que governavam a sociedade dos homens eram tão discerníveis pela razão quanto as leis naturais que governavam o universo físico".</p><p>Esse apelo à razão se alastrou pela sociedade erudita da época, e chegou aos guetos judeus no justo instante em que eles estavam se "integrando" às comunidades em que estavam inseridos. Em decorrência da emancipação e da cidadania, as escolas judaicas deixaram de oferecer exclusivamente o conteúdo de orientação religiosa e passaram a incluir o latim e o idioma local - construindo uma ponte até então inexistente entre judeus e não-judeus.</p><p>Esta sinergia se deu exatamente na propagação do Iluminismo - circunstância que gerou o <i>Haskalá</i>, o Iluminismo judaico.</p><p>"O Haskalá teve seu início na Alemanha, durante o último quarto do século XVIII. A partir dali, ele se espalhou pelo Império Austríaco e pelos assentamentos", esclarece o historiador. "Os devotos do Haskalá - os <i>maskilim</i> - esperavam trazer ao escolado bíblico as ferramentas mais importantes utilizadas pelos seguidores não judeus do Iluminismo".</p><p>Na visão de Gelvin, isso possibilitaria que "os judeus do oeste da Europa se integrassem nas sociedades em que viviam sem o medo de perder sua identidade cultural judaica" e que, a partir da terceira década do século XIX, "a atividade principal dos <i>maskilim</i> em cidades como Odessa, Vilnius, Riga, Brody etc era o ensino de línguas modernas da Europa e a difusão da ciência e do progresso".</p><p>Resumindo o que o professor elaborou, os judeus eram milhões de pessoas vivendo de forma segregada - social e culturalmente -, majoritariamente no leste europeu, e sua versão do Iluminismo transformou a concepção (e a atitude) deles perante o mundo em que viviam. Estudaram línguas e os mais importantes livros escritos em cada idioma. Sobre isso, o autor destaca um texto de Salomon Maimon, um judeu polonês que escreveu sua biografia intelectual em 1793:</p><p><i>"Coloquei alguns livros na mala e voltei para casa em êxtase. Depois de ter estudado esses livros intensamente, meus olhos se abriram. Eu acreditava que tinha encontrado a resposta para todos os segredos da natureza. Tinha um olhar superior e orgulhoso em relação a todos os outros que ainda não sabiam daquelas coisas, ria de seus preconceitos e superstições, e me oferecia para ajudá-los a acabar com aquelas ideias e iluminá-los em sua compreensão."</i></p><p>Como assinala Gelvin, em uma época de manifestações nacionalistas à torto e à direita, a transformação cultural inspirada no Haskalá forneceu um terreno fértil para uma séria de ideologias - entre elas o sionismo. E um jovem jornalista de Viena, Theodor Herzl, nascido em 1860, filho de um comerciante húngaro, foi quem mais contribuiu para a organização da causa sionista.</p><p>Atuando como correspondente em Paris, reportou para os austríacos o "Caso Dreyfus". Como você sabe, Alfred Dreyfus, um judeu capitão do exército francês, foi injustamente acusado de espionar para os alemães e condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. </p><p>Descobriu-se depois que os documentos que o incriminaram tinham sido falsificados. O célebre escritor Émile Zola afirmou em seu texto "<i>J'Accuse</i>" que foi o antissemitismo francês quem perversamente condenou o capitão judeu (o que levou à prisão do próprio escritor).</p><p>Zola foi solto, Dreyfus foi solto, mas o caso deixou patente para Theodor Herzl que, se nem na civilizada França os judeus estavam à salvo de perseguição e injustiça, o único caminho possível seria a obtenção de uma terra para os judeus. Passou a escrever sistematicamente sobre o assunto.</p><p>Após ter lançado o livro "O Estado judeu", de pouca repercussão, ele enviou um artigo a um jornal londrino. Sob o título "A crônica judaica", ele expressou de forma resumida suas ideias sobre o grande problema enfrentado pelos judeus, denominado no século XIX como a "Questão Judaica".</p><p>"A Questão Judaica ainda existe. Seria tolo de minha parte negar isso. Ela existe em todos os lugares onde há judeus em quantidade significativa. Nos lugares onde ela ainda não existe, os judeus a levarão quando para lá migrarem. Nós rumamos naturalmente para esses lugares onde não sofremos perseguição, mas nossa presença ali acaba por gerar nova perseguição. Isso acontece em todos os países, e continuará acontecendo mesmo naqueles mais civilizados, até que a Questão Judaica encontre uma solução política."</p><p>Herzl questionou a instituição da emancipação judaica:</p><p>"Quando as nações civilizadas acordaram para a falta de humanidade de suas legislações exclusivas, e decidiram nos emancipar, já era tarde demais. Porque nós, curiosamente, nos tornamos pessoas burguesas dentro do gueto, e só saímos de lá para competir agressivamente com as classes médias... Nós fizemos um esforço honesto para nos integrar à vida social das comunidades à nossa volta, e para preservar a fé de nossos pais. Mas isso nos foi proibido."</p><p>Aqui Herzl elaborava o conceito de nação:</p><p>"Nós somos um povo - nossos inimigos nos uniram, apesar de nossas diferenças, como sempre aconteceu na história. A angústia nos une, e depois de unidos, descobrimos nossa força. Sim, nós somos fortes o suficiente para formar um Estado, um Estado modelo".</p><p>Além da base teórica, Theodor propunha uma destinação geográfica. Citava a Palestina, mas também mencionava a Argentina e o oeste dos Estados Unidos (isso mesmo, a terra do bangue-bangue e dos caubóis). Mas reconhecia a preponderância do Oriente Médio: "A Palestina é nosso lar, e estará sempre em nosso sangue e memória".</p><p>Por conta desta convicção, e dos repetidos <i>pogroms</i> em solo russo, muitos judeus estavam emigrando da Europa para a Palestina, mas de uma forma que hoje chamaríamos de "sustentável" - sem impactar demasiado a região. Herzl, entretanto, lutava para encorpá-la.</p><p>Em 1897, ele convocou um congresso sionista na Basileia, Suiça, onde fundou a Organização Sionista Mundial. Seu programa dizia que o objetivo do sionismo era criar um lar na Palestina para o povo judeu, promovendo a colonização da Palestina por trabalhadores judeus na indústria e na agricultura.</p><p>Os otomanos, que eram os "donos" da Palestina, à época, criaram uma lei para barrar esta chegada em massa de judeus. Os imigrantes deveriam renunciar à sua cidadania europeia e se tornarem súditos otomanos, e poderiam escolher qualquer destino no Império Otomano - exceto a Palestina.</p><p>Virou uma lei para palestino ver. Não funcionou.</p><p>Apesar dos esforços de Herzl e da Organização Sionista, a comunidade judaica internacional estava bem dividida. Muitos eram pela fidelidade aos países de nascença e contra a partida dos judeus da Europa, enquanto outros eram especificamente contra a ida para a Palestina; alguns defendiam imigrarem para a Uganda e muitos atacavam o programa sionista como sendo de "esquerda".</p><p>Tinha lá seu fundamento. A judia Rosa de Luxemburgo, líder do Partido Comunista da Alemanha, escreveu, em 1916: "Sinto-me tão próxima das miseráveis vítimas que trabalham nos seringais de Putumayo quanto dos negros da África, que têm seus corpos explorados como brinquedos pelos europeus".</p><p>Seja como for, com ou sem controvérsia, com ou sem permissão, os judeus estavam atravessando o Mediterrâneo de volta para a terra que eles defendiam ser a origem do povo judeu. E eles fizeram isso em ondas, chamadas de <i>aliyah</i> ("ascender", em hebraico) - <i>aliyot</i>, no plural.</p><p>A primeira <i>aliyah</i> foi em 1882, estimulada pelos supracitados <i>pogroms</i> na Rússia. Dobrando a população judaica local, 25 mil judeus imigraram para a Palestina, se distribuindo entre Jafa, Haifa, Jerusalém e as margens do Mar da Galiléia. Aparentando o que hoje chamaríamos de comunidades hippies, cultivavam pequenos lotes de terra de propriedade coletiva.</p><p>Não deu muito certo - o que já era esperado, segundo Gelvin. Um célebre Rotschild, Edmond, investiu 1,5 milhão de libras nas colônias agrícolas, tentando ajudá-las a deslanchar. Por meio do sistema chamado de <i>plantation</i>, consolidou e expandiu a terra cultivada, otimizou a produção e multiplicou o rendimento do solo.</p><p>O resultado, sob o aspecto da produção, foi bom. Mas, ao abrir empregos para dez vezes mais árabes do que para judeus (só os assentamentos empregavam cerca de 4 mil árabes), os "colonos" judeus começaram a se deslocar para as regiões urbanas da Palestina. Não formaram maiores laços com a região, pois a maior parte da terra pertencia ao investidor Rotschild.</p><p>Isso motivou a criação de um Fundo Nacional Judaico para comprar terras na Palestina. </p><p>Segundo o historiador, "os sionistas se propuseram a espalhar colônias por toda a Palestina. Sua missão era cultivar toda a terra possível, drenar regiões pantanosas e 'fazer o deserto florescer".</p><p>O primeiro quarto do século XX trouxe 75 mil colonos judeus para ocuparem os terrenos comprados, em duas ondas - de 1904 a 1914 e de 1918 a 1923. Foram a segunda e a terceira aliyot. Foi uma migração de forte componente ideológico, uma ode à natureza e ao trabalho comunitário.</p><p>O autor abre aspas para um proeminente sionista, não identificado: "Antes da chegada dos judeus pioneiros à Palestina, poços e nascentes secavam, muitas árvores eram cortadas, nada evitava que as dunas de areia invadissem todo o território. Só o que se espalhava era a malária. À essa região desolada chegaram os pioneiros. Eles drenaram os pântanos, construíram estradas, removeram pedras e rochas, eles semearam e colheram".</p><p>Naquele inóspito e poeirento pedaço do planeta, os judeus julgaram ter encontrado a sua versão do paraíso. Um dos imigrantes da época - e que se tornaria o primeiro-ministro inaugural de Israel, décadas depois -, Ben Gurion, escreveu:</p><p>"A diáspora significa dependência - material, política, cultural e intelectual - porque somos os estrangeiros, a minoria, desprovidos de uma terra natal, sem raízes, separados do solo, do trabalho e da indústria primária. Nossa tarefa é romper radicalmente com essa dependência e nos tornarmos senhores de nosso destino".</p><p>É quando esta romaria internacional de judeus colide e contribui para a ebulição da região. O que se tinha eram dezenas de milhares de estrangeiros obstinados e empreendedores ditando regras em uma terra que reunia centenas de milhares de árabes. Ao contrário do que muitos dos invasores apregoavam, Gelvin enfatiza: "A Palestina definitivamente não era uma terra sem um povo."</p><p>Aí, pra bagunçar de vez o coreto, veio a Primeira Guerra Mundial. O Oriente Médio se tornou uma região chave para o desenrolar do confronto. Era rota do petróleo e estava em poder dos turcos, que por sua vez eram aliados dos alemães. Com isso, os ingleses investiram na cooptação dos povos árabes, fartos dos séculos de imperialismo turco. Prometeram a eles que, se ficassem ao lado Tríplice Aliança (Inglaterra, França e União Soviética), quando a vitória chegasse a região se tornaria independente. </p><p>A vitória chegou. Os otomanos foram expulsos e os franceses e ingleses se tornaram os mandatários da região (a Síria para os primeiros e o Egito para os últimos). O problema era a terra que existia entre os dois países. Os diversos acordos realizados ao longo da guerra eram contraditórios em relação à Palestina.</p><p>A Inglaterra estabeleceu como norte a sua Declaração Balfour. O texto era favorável aos interesses judaicos ("O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo") e ambíguo em relação ao futuro da região chamada de Palestina.</p><p>Com o fim da guerra, os palestinos - que ainda não se auto-denominavam "palestinos" e sim consideravam a si mesmos parte da "Grande Síria" - só queriam uma coisa: ver os judeus fora dali. Em miúdos, que cada judeu fosse para o raio que o parta.</p><p>Mas o pior é que não parava de chegar judeu. Dezenas de milhares. Só o período entre 1924 e 1928, chamado de a quarta <i>aliyah</i>, trouxe 82 mil novos imigrantes. Boa parte dessa turma vinha da Polônia, intimidada pelo surgimento de uma nova legislação anti-judaica. Diferentemente dos jovens russos, ideológicos e idealistas, estes recém-chegados se assemelhavam mais a refugiados. E nem eram tão jovens. A labuta na terra não lhes interessava muito, e rumaram para as cidades, Tel Aviv e Haifa.</p><p>Como se sabe, para cada ação há uma reação. A incessante chegada de judeus inflamou a rejeição dos árabes. A intransigente rejeição dos árabes impôs aos judeus que se organizassem, em defesa. Milícias judias protegiam a minoria judaica da maioria árabe. Enquanto isso, na Europa, a situação estava cada vez pior para os judeus. Os árabes não queriam que eles ficassem. Mas eles já não tinham para onde voltar.</p><p>Como contraponto ao movimento sionista, nascia o <i>nacionalismo palestino</i>.</p><p>Ou seja: estamos há cem anos do momento atual e já havia um impasse, muito antes de haver Israel. Países que hoje imaginamos milenários estavam sendo criados. Não havia nem Israel, nem Palestina. Um pouco antes, na Conferência do Cairo de 1921, a Grã-Bretanha decidiu separar o território que ficava a leste do rio Jordão do mandato da Palestina, e estabeleceu uma unidade administrativa separada, chamada de "Transjordânia" (atualmente perdeu o "trans" e ficou só Jordânia).</p><p>Winston Churchill, que presidiu a conferência como secretário colonial britânico, não perdeu a deixa: "Criei a Jordânia com um rabisco de caneta numa tarde de domingo".</p><p>Frase politicamente incorreta para os pruridos atuais.<i> Haters</i> do século XXI, divirtam-se, derrubem as estátuas e cancelem o sujeito. Mas lembrando que este aí do chiste era o (único) cara que iria peitar Hitler e roubar do nazista a vitória na Segunda Guerra Mundial. Mas isso é outra história.</p><p>Voltando ao caldeirão do Oriente Médio, James Gelvin contextualiza o momento entre as duas guerras.</p><p>"O fato do nacionalismo palestino ter se desenvolvido depois do sionismo, e inclusive como resposta a ele, não diminui de forma alguma a legitimidade do nacionalismo palestino e nem faz com que ele tenha menor valor do que o sionismo", disseca o professor, afirmando que "todos os nacionalismos surgem em oposição a um 'outro'. O próprio sionismo nasceu da reação ao antissemitismo e aos movimentos nacionalistas excludentes da Europa."</p><p>Os confrontos se tornaram comuns. Comunidades tentavam restringir o acesso de outras comunidades aos locais sagrados. Tumultos crescentes espocaram na região, espalhados por Jerusalém, Hebrom, Jafa e Safed. Nestes conflitos morreram 133 judeus e 16 árabes. Pouco para os parâmetros atuais. Mas significativo para aqueles tempos.</p><p>Os habitantes da região se sentiam tão sírios que o mais importante jornal publicado em Jerusalém (cidade então sob domínio árabe) era o <i>Suriya Janubiyya</i> - a "Síria do Sul". Não à toa. Até a eclosão da Primeira Guerra Mundial esta "Síria do Sul" integrava a "Grande Síria", como mencionei acima. Como ressalta Gelvin, "elites urbanas de Damasco e Beirute investiram em grandes latifúndios em regiões como a Galileia". Uma boa estrutura, com estradas de ferro e vias para as carruagens, conectava o "norte" ao "sul".</p><p>"A Grande Síria havia se tornado uma unidade integrada social e economicamente", disserta o historiador, "se consolidando como um centro comercial com sua própria força de trabalho". Explica ainda que "camponeses e beduínos do território que hoje éa Palestina migravam regularmente, indo e vindo dos ricos campos agrícolas do distrito de <i>Hawran</i>, que hoje pertence à Síria".</p><p>Mal comparando, os palestinos eram para a Síria o que os paraibanos são para o Rio e os baianos para São Paulo. Uma força de trabalho oportuna direcionada ao trabalho braçal.</p><p>(Não vou entrar aqui no conceito de <i>otomanidade</i> explorado pelo autor, onde parte dos moradores da Palestina se considerava anteriormente súditos otomanos.)</p><p>Mas a Primeira Guerra bagunçou o coreto e inviabilizou para sempre a "Grande Síria". O posterior sistema de mandatos fez da Síria uma região de influência francesa e da região da Palestina uma região de influência inglesa. O vínculo histórico com o falido Império Otomano e com os sírios esfarelou e virou areia.</p><p>Agora o que os palestinos tinham no horizonte eram ingleses e judeus. Os primeiros dando as ordens e os últimos tomando as terras.</p><p>Árabes locais de todas as origens - não só a população original da Palestina - estavam vendo o crescimento da presença judaica com péssimos olhos. Se reuniram em associações, clubes, grupos. O resultado foi o estouro da Revolta Árabe, em 1935. Não era a "Revolta Palestina". Era a revolta do povo árabe que morava lá, palestinos que antes se diziam sírios aliados a árabes de todo lugar. Tinham um objetivo comum: botar os judeus para fora dali.</p><p>A bem da verdade, quem fez a revolta foram os árabes sírios e egípcios mesmo. Os nascidos na Palestina podiam ser parte da soldadesca, mas não apitavam nada. Havia um forte jogo de interesses dos árabes que queriam abocanhar a região e aos quais convinha expelir os judeus. Nada dessa estorinha de aceitar ali o estabelecimento de uma <i>Eretz Israel</i>. Os árabes não pretendiam permitir que uma força superior fincasse os pés definitivamente na região.</p><p>Porém, se até então quem dava cobertura aos judeus eram os ingleses, de uma hora para outra tudo mudou. Literalmente. Pararam de complicar a vida dos árabes e começaram a ajudá-los. A <i>commodity</i> petróleo ganhara valor nas últimas duas décadas e os interesses comerciais e geopolíticos do Reino Unido migraram para o outro lado.</p><p>Não só. Com a ascensão de Hitler na Alemanha, com seu discurso antissemita, a união entre árabes e nazistas era natural. Para evitar que todo o Oriente Médio se bandeasse para o lado dos nazistas, os ingleses viraram a casaca e começaram a cercear (impedir, na verdade) o desembarque de judeus. Foi quando lançaram o que ficou conhecido como o <i>Livro Branco</i>.</p><p>Com o pau comendo solto na Europa em guerra, os ingleses se comprometeram com os árabes que, após o fim do conflito, nenhum judeu desembarcaria ou permaneceria na Palestina sem que fosse autorizado pelos próprios palestinos.</p><p>Como a chance de uma autorização voluntária era zero, a medida era um alívio para a população local e uma estaca no coração de um Estado Judeu que nem sequer havia nascido. </p><p>Mas mesmo o Livro Branco não foi bem recebido pelos árabes - porque, por mais que fosse restritivo aos judeus, os árabes só aceitavam dispositivos que excluíssem os judeus de qualquer cenário legal. </p><p>Para os judeus, que neste momento estavam enfrentando a sanha genocida de Hitler na Europa, a situação era crítica, mas tinha que ser gerenciada. Nas palavras de David Ben-Gurion, "nós devemos combater Hitler como se o Livro Branco não existisse, e combater o Livro Branco como se a guerra não existisse".</p><p>Palestinos e nazistas estavam unidos. Exemplo maior que Haji Amin al-Husayni não havia. Nascido em uma das mais influentes famílias de Jerusalém, líder do Alto Comitê Árabe e presidente do Conselho Supremo Muçulmano, Haji passou toda a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, como hóspede e interlocutor de Hitler para os assuntos do Oriente Médio.</p><p>"A residência oportunista durante o período de guerra de Haji Amin, e as atividades propagandistas na Alemanha nazista, certamente não foram o momento de maior orgulho da história do nacionalismo palestino", admite o autor.</p><p>Seja como for, de 1939 a 1945 a Palestina entrou em banho maria. Embora a quinta <i>aliyah</i> tivesse trazido quase 200 mil judeus para o território, eles logo parariam de chegar, porque estavam ocupados na Alemanha e no Leste Europeu sendo espoliados e incinerados pelo regime nazista. </p><p>Neste período, cerca de 14 mil imigravam anualmente para a Palestina (abaixo do permitido pelo Livro Branco), mas os demais judeus que tentavam escapar não tinham outro lugar para onde ir. Os países do globo terrestre se recusavam a recebê-los como refugiados - inclusive o Brasil, este poço de prosperidade e pureza étnica.</p><p>O saldo da recusa planetária foram seis milhões de judeus mortos. Homens e mulheres, jovens e idosos, crianças e recém-nascidos. Mas este Holocausto não foi suficiente para evitar a questão palestina. Muito pelo contrário, deu-lhe senso de urgência. Se metade dos judeus do mundo foram mortos, restou ainda a outra metade. </p><p>O Reino Unido, vitorioso na guerra, falido nos cofres e ainda dono do mandato palestino, cumpriu o que se propusera no Livro Branco. Impediu dezenas de navios com refugiados judeus de desembarcarem sua carga humana na Palestina. </p><p>Pasme: 250 mil judeus sobreviventes da guerra, boa parte oriunda dos campos de extermínio (ao fim da guerra confinados em campos de refugiados na Alemanha), cruzaram a Europa, atingiram o Mediterrâneo, embarcaram em navios para o Oriente Médio e... eram impedidos de irem ao solo. Voltavam nos mesmos navios e rumavam de novo para os mesmos campos de refugiados.</p><p>E, enquanto os judeus eram mandados de volta e rodavam como almas penadas pelos campos europeus, os ingleses queriam mesmo era repassar essa batata quente para os americanos. O Império Britânico se tornara inviável e aquele mandato na Palestina era uma aporrinhação desnecessária para um Reino Unido apequenado.</p><p>Seja batata, pepino, abacaxi ou qualquer outro produto agrícola que ocorra ao amigo leitor, o troço caiu no colo da recém-criada ONU, que veio para substituir a Liga das Nações. A Assembleia Geral comissionou então o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina, constituído por representantes da Suécia, Holanda, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Austrália, Canadá, Índia, Irã, Guatemala, Uruguai e Peru. </p><p>Como explana Gelvin, esse comitê emitiu dois relatórios, um majoritário e outro minoritário. O primeiro fazia "a partilha da Palestina entre as comunidades árabes e judaicas, estimulando que as duas ficassem unidas economicamente (o minoritário recomendava o estabelecimento de um Estado federal único)". Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética apoiaram a partilha.</p><p>Os árabes e os palestinos nem aceitaram conversar. Nada de partilha. Não à judeuzada.</p><p>Diante disso, o governo britânico antecipou, ainda em 1947, que podiam incluí-lo fora da zorra toda - e que, a partir de maio de 1948, todas as suas tropas voltariam para casa. Em bom português, não ia ter mais ninguém separando árabes de judeus e a porrada iria comer.</p><p>Uma guerra civil teve início entre palestinos e judeus. E, quando enfim chegou o dia em que os ingleses foram embora, os judeus declararam a criação do Estado de Israel. Era 17 de maio de 1948. Depois de dois mil anos, o povo judeu voltava a ter uma pátria.</p><p>Abro aspas para o autor: "Os sionistas aceitaram o plano de partilha das Nações Unidas e estavam dispostos a viver em paz com seus vizinhos; os Estados Árabes rejeitaram o plano de partilha e declararam guerra ao Estado judeu; os Estados Árabes agiram como bloco único; os sionistas, em menor número e com menos armas, batalharam heroicamente contra todas as adversidades; apesar das garantias sionistas de proteção, os árabes palestinos atenderam ao chamado dos governos árabes e abriram caminho para os exércitos que avançavam".</p><p>"Os exércitos que avançavam" invadiram simultaneamente a Palestina, para expulsar os judeus, agora auto-proclamados israelenses. O conflito passou para a História como a "Guerra da Independência" (se você for judeu) ou "Nakba" (se você for palestino).</p><p><i>Nakba</i> significa a "catástrofe" em árabe. Você logo vai entender porquê.</p><p>Em números gerais, eram 600 mil judeus de um lado e 1,4 milhão de palestinos do outro. A estes se somavam os exércitos dos países árabes da região. Havia uma enorme desproporção bélica e de tropas. Americanos e soviéticos não queriam se envolver. O pau que cantasse.</p><p>Para surpresa mundial, os judeus, com um terço das forças inimigas, venceram. Até hoje há uma grande polêmica sobre as razões desta vitória improvável. A mais aceita é a de que os árabes tinham conflitos inconciliáveis entre eles mesmos e também interesses "pessoais" divergentes.</p><p>Jordânia e Iraque, de um lado, e Egito, Síria e Arábia Saudita, de outro, nutriam uma forte rivalidade e pretensões simultâneas em liderar o mundo árabe. Nenhum dos Estados queria colocar seus exércitos sob o comando do rival. Com isso, agiram separadamente e capitularam. Para um inimigo menor, com menos combatentes e com menos armas. Mas suficientemente coeso e determinado.</p><p>E os que mais perderam foram os palestinos. Daí a <i>nakba</i>.</p><p>De uma certa forma, os árabes perderam para eles mesmos. Nem dentro de cada país havia unidade ("o governo da Síria nunca confiou totalmente nos oficiais do Exército sírio") e nem todos mantinham o mesmo grau de hostilidade contra Israel ("O rei Abdullah da Jordânia reunia-se com os líderes do Yishuv desde a criação da Transjordânia em 1921, inclusive negociando as fronteiras dos seus respectivos Estados").</p><p>Gelvin vai além, ao dizer que "Os Estados Árabes realizaram um péssimo trabalho de preparação para a guerra" e também que "a liberação da Palestina não era vista com bons olhos por governos que haviam acabado de conquistar sua independência (Líbano, Síria, Jordânia) ou que ainda conviviam com uma presença imperialista (Egito)."</p><p>Segundo um historiador israelense e britânico, Avi Shlaim, de ascendência judaica iraquiana, "a coalisão árabe foi uma das mais divididas, desorganizadas e desmanteladas de toda a história das guerras".</p><p>Os judeus venceram a Guerra da Independência. Aos vencedores, tudo. Aos perdedores, as batatas.</p><p>No caso, o exílio. Ao todo, 750 mil palestinos perderam seus lares com a guerra. Foi "o massacre e o exílio de uma sociedade inteira, acompanhada de milhares de mortes e centenas de vilarejos destruídos", reconheceu o ex-primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak, segundo o historiador.</p><p>Ainda segundo Gelvin, "a vitória militar dos <i>Yishuv</i> sobre seus vizinhos do Estado árabe e o deslocamento dos palestinos que viviam dentro das fronteiras de Israel, transformaram a natureza do conflito de maneira fundamental".</p><p>Ele acrescenta que, "antes de 1948, duas comunidades de igual estatura (mas com legados diferentes) entraram em conflito direto pelo controle da Palestina", ressaltando que "em maio de 1948, uma dessas comunidades se declarou dona de um Estado soberano, enquanto a outra vivenciou um cataclismo".</p><p>"A comunidade palestina tinha se dispersado e não tinha um território <i>para chamar de seu</i>" (na versão do tradutor Alexandre Camacho)."Os <i>Yishuv</i> incorporaram quase 80% do mandato palestino no novo Estado, e Egito e Jordânia ficaram com o restante".</p><p>O restante a que se refere o autor são a Faixa de Gaza, tomada pelo Egito, e a Cisjordânia, tomada pela Jordânia, ambos no interior do Estado israelense. Perdidos ficaram os palestinos, que fugiam para lá e para cá, e que se tornaram refugiados de guerra em sua própria terra.</p><p>A partir daí, impôs-se a questão internacional dos refugiados, que repercute até os nossos dias. Metade dos palestinos se tornaram refugiados, sendo que 50% destes dentro do próprio Estado de Israel. A própria movimentação bélica dos árabes havia expulsado os palestinos ("eles não queriam que uma população civil árabe estivesse na região, já que isso limitaria a sua liberdade operacional").</p><p>Ou seja, a mesma estratégia utilizada hoje pelos israelenses para evacuar a Faixa de Gaza.</p><p>Segundo o embaixador de Israel nos Estados Unidos, Abba Eban,"a Liga Árabe emitiu pedidos que estimulavam o povo a procurar refúgios temporários em países vizinhos, e a voltar a seus lares somente depois da vitória dos Exércitos árabes, a fim de obter a sua parte nas propriedades abandonadas pelos judeus".</p><p>Embora tenha transcrito a afirmação do embaixador, Gelvin é cético quando à sua fundamentação. Mas não tem dúvidas quanto ao oportunismo dos falsos amigos da população local.</p><p>"Os governos árabes exploraram sem escrúpulos a situação dos refugiados palestinos em benefício ´próprio", sacramenta. "Depois, em momentos em que a colaboração dos refugiados já não era necessária, os governos demonstraram indiferença em relação a eles, e até chegaram a tratar com hostilidade a presença deles em seus países".</p><p>Em suma, o destino dos refugiados mais humildes foi mesmo a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e os países árabes vizinhos. Os de maiores recursos financeiros e sociais emigraram para o Golfo Pérsico, a Europa e as Américas (o autor não cita, mas há uma grande comunidade palestina no Chile, que conta inclusive com seu próprio time de futebol, o Palestino FC).</p><p>Com o fim da guerra, em paralelo à questão dos refugiados, restava a questão do reconhecimento do novo Estado. A maior parte do planeta reconheceu o direito dos judeus ao seu próprio país, ainda que lamentando a recusa árabe da partilha (por isso houve a guerra). Já a Liga Árabe impôs um boicote diplomático e econômico ao novo Estado imediatamente após a guerra. </p><p>Israel se proclamou um Estado judaico e aprovou em 1950 a Lei do Retorno, que dizia em seu primeiro artigo que "todo judeu tem o direito de imigrar para o país". Na contabilidade do autor, em quatro anos chegaram 700 mil imigrantes, dobrando a população. Nos 15 anos seguintes chegaram outros 700 mil. Vieram também 120 mil judeus do Iraque, 165 mil do Marrocos, 31 mil da Líbia, 430 mil do Iêmen, 80 mil do Egito e 10 mil da Síria.</p><p>Enquanto Israel ganhava corpo, concomitantemente o mundo árabe ao seu redor passava por uma profunda transformação. Os golpes de estado militares dos anos 40 na Síria, Egito, Iraque, Iêmen do Norte e Líbia desaguaram nas políticas anti-imperialistas dos anos 50 e 60. Um líder, em particular, ganhou proeminência. O egípcio Gamal Abdel Nasser.</p><p>Nasser assumiu o poder no Egito determinado a por um fim aos 75 anos de presença militar britânica - e sua ação mais agressiva nesse sentido foi a nacionalização do Canal de Suez, que tinha o Reino Unido e a França como seus principais acionistas.</p><p>Lesadas, as duas potências, mais Israel, resolveram retaliar invadindo o Egito. A ofensiva gorou porque foi contrária aos interesses dos Estados Unidos, que só soube do plano após o fato consumado. A pressão norte-americana forçou os invasores à retirada dos exércitos. Quem mais ganhou com isso foi Nasser, que nacionalizou o Canal e conseguiu a expulsão dos agressores.</p><p>Nasser capitalizou o seu novo status político visando uma organização de países árabes que pudesse se contrapor à influência ocidental, criando em 1958 a República Árabe Unida. O fato é que, por conta das dissensões, a RAU nunca deu muito certo, mas foi capaz de dar muito errado.</p><p>Se fiando em uma pretensa união entre os países da região e determinado a catapultar seu prestígio, Nasser se valeu de uma informação errada sobre uma acumulação de tropas israelenses na fronteira com a Síria para escalar uma sonhada guerra de aniquilamento total e combinado contra Israel.</p><p>O desenlace do plano egípcio é tão decisivo para o que viria a ser o futuro do Oriente Médio, que não me satisfiz com a narrativa concisa de James Gelvin. Seu livro cobre um século de conflito, mas, justamente por isso, não se aprofunda no detalhamento de cada circunstância. E a guerra entre os países árabes e Israel, uma espécie de <i>jogo do returno</i> da Guerra da Independência - a <i>Nakba</i> -, passou para a história como a Guerra dos Seis Dias.</p><p>Fui procurar conteúdo que me permitisse entender como uma guerra que durou menos que uma semana teve efeitos que duraram por décadas. E que redesenhou o mapa do Oriente Médio.</p><p>A obra que, por tudo que pesquisei, indicava ser a mais completa e minuciosa sobre o evento foi o "Seis dias de guerra", por Michael B. Oren. Não me decepcionou. Falo dela no próximo post.</p><p>Edipro, 348 páginas | 1a ed. 2a reimpressão 2023 | Copyright 2006 | Trad: Alexandre Camacho</p><p>Título original: <i>"The Israel - Palestine Conflict: one hundred years of war"</i></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-14281287509120290622023-12-21T11:11:00.006-03:002023-12-23T10:15:21.225-03:00"A informação", por Martin Amis<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYy4WExSpi5jwmWNZNKn4pBfBUYEjqArlyz8NGp-ZvbhhgqKfCc9wg9g31_0Chn-E2GsAotCafxMDOxCVFEolo1XNPxtEYFDLzkhptcIHAq-PTo3ej0uRzDNrqklLMcvvFAsehlCDKTI9psIab2vKhSsqQO6LG3GrMX5_8Cz3FV7f-B3vkkkjuJoB-Dmo/s1157/A%20informa%C3%A7%C3%A3o.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="781" data-original-width="1157" height="432" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYy4WExSpi5jwmWNZNKn4pBfBUYEjqArlyz8NGp-ZvbhhgqKfCc9wg9g31_0Chn-E2GsAotCafxMDOxCVFEolo1XNPxtEYFDLzkhptcIHAq-PTo3ej0uRzDNrqklLMcvvFAsehlCDKTI9psIab2vKhSsqQO6LG3GrMX5_8Cz3FV7f-B3vkkkjuJoB-Dmo/w640-h432/A%20informa%C3%A7%C3%A3o.jpg" width="640" /></a></div><br />Eu de cara devo admitir que tenho um ponto em comum com Richard Tull, o protagonista. Escrevo resenhas de livros que ninguém lê. Mas talvez as semelhanças parem por aí. Tull escreve resenhas favoráveis e recebe por isso. Eu desço a lenha (quando o autor merece) e ninguém me paga.<p></p><p>Também...</p><p>Dito isto, eu, que já babei Amis por um romance que não me lembro o nome agora (era um cínico triângulo de amor em um campo de concentração nazista, onde um tenente comia a mulher do chefe do campo), não vou poder fazer o mesmo neste "A informação".</p><p>Tem coisa boa? tem. E é bom? Não. É chato, pedante, alongado, narcisista, presepeiro. O domínio que o autor tem da prosa se presta a um espetáculo monótono, digno de uma foca amestrada. </p><p>Admito que precisa ser bom para equilibrar uma bola no focinho. Mas vá assistir isso dias a fio...</p><p>É um texto pretencioso que te cansa. Até a viagem de Tull e Barry para os Estados Unidos, a leitura do livro é tipo subir uma montanha íngreme levando pela cara uma tempestade de areia. Chegando ao topo, porém, parece que uma benção miraculosa subitamente contaminou a narrativa, e ela fica... boa!</p><p>Pena só que foram necessárias quase trezentas páginas para chegar nesse ambiente minimamente razoável para o leitor diletante. E - mais pena ainda - depois de umas três dúzias de páginas a dupla volta para o modorrento cenário londrino caricaturado pelo autor.</p><p>Por que Martin, ou seus editores, não perceberam que era um texto pernóstico, masturbatório, de uma auto-deploração soturna? Sei lá. Devia ter mercado cativo nos <i>pubs</i>. Amis morreu em maio deste ano, na véspera do aniversário do meu cunhado botafoguense. O que isso tem a ver com a história?</p><p>Nada! mas foi justamente com um monte de nada a ver que o célebre escritor preencheu quase quinhentas páginas. Com uma carrada de irrelevâncias para o leitor não-inglês contemporâneo (não que meu simpático cunhado seja irrelevante, mas sua presença nesta resenha certamente o é).</p><p>E olha que o argumento cerne da narrativa era excelente.</p><p>"Ele é o meu amigo mais antigo. Eu adoro aquele filho da puta", comentou Richard Tull no momento em que, pela última vez, tentava fuder inapelavelmente com a carreira do tal grande amigo.</p><p>E o escritor incumbido desse tema escroto aí de cima era ótimo. Martin Amis. Seus personagens idem. Dois velhos amigos. Ambos escritores. Um hermético. O outro inócuo. Um não vendia nada. O outro vendia horrores. Despeito versus desprezo. Salamaleques versus indiferença.<i> Plot</i>: um amigo-autor fracassado que passa a vida tentando cavar a cova do amigo-autor <i>best-seller.</i></p><p>Alguém pensou (o próprio Amis?): essa sacada pode dar samba.</p><p>Então juntou-se uma baita ideia para um livro e um baita autor para escrevê-la. Mas deu chabu. Talvez ele estivesse de ovo virado. Ou sem saco. Ou de salto alto. Mas o que resta é que não deu liga. E olha que, escolhendo a dedo alguns trechos, até parece que o livro é bom.</p><p>Eu deveria ser suspeito, resenhando um livro sobre um resenhista. Mas Richard Tull era pior que eu. Eu gosto de resenhar. Tull queria ser romancista. Seu primeiro livro, "<i>Premeditação</i>", foi seu ápice. "O veredito sobre <i>Premeditação</i> foi o seguinte: ninguém entendeu o livro ou chegou a lê-lo até o fim, mas ninguém também tinha certeza de que fosse uma merda".</p><p>A partir daí, tudo só piorou. Já Gwyn Barry, o galês, escrevera o título mais vendido da década, "<i>Amelior</i>". Tull não era ninguém na fila do pão. Os jornalistas faziam fila para entrevistar Barry.</p><p>"<i>Amelior</i> é uma espécie de terra prometida? É por causa desse mito que faz tanto sucesso? Seus dois livros são utopias formais? O senhor acha que a reinvenção da sociedade é uma das responsabilidades do escritor?"</p><p>Enquanto isso, Tull "reservava-se o direito de deixar claro que as coisas que Gwyn escrevia eram uma merda, <i>Amelior</i> era uma merda imperdoável e que o sucesso de Gwyn era acidental. Transitório". Segundo o amigo, "o entusiasmo pela obra de Gwyn esfriaria mais depressa que seu corpo".</p><p>Ainda que sem dinheiro, sem leitores e sem editora, Richard Tull aspirava grandes coisas. "Ele não tentava escrever romances de talento", contava Amis do seu protagonista. "Tentava escrever romances de gênio, como Joyce. O próprio Joyce era um chato mais ou menos na metade do tempo. Richard era chato o tempo todo. Sua obra era ilegível".</p><p>Não é necessário dizer que um escritor que escreve sobre escritores e suas picuinhas está zombando dos seus próprios pares. Um ás do mundo literário que escarnece de editores, jornalistas, autores e da mediocridade coletiva. Talvez, mais que tudo, escrevesse para eles e o livro fosse uma grande piada interna. OK. Pode ser. </p><p>Mas o leitor brasileiro comum é uma vítima inocente do livro de Amis. O livro é chato como o "<i>Sem título</i>" de Richard Tull e como é James Joyce em metade do tempo (segundo o autor, né, porque eu nunca li Joyce; como vou me propor a ler um cara que não usa ponto?)</p><p>Diz a contracapa que o romance é "um exemplo do virtuosismo e da irreverência linguística que se tornaram a marca de Martin Amis". É como eu disse antes. A tal foca amestrada. "Amis evolui com desenvoltura na fogueira de vaidades do mundo literário". Aham. Pois é.</p><p>Óbvio que sobra sarcasmo para as premiações do meio. Amis comenta que seu insípido co-protagonista, Gwyn, o galês, estava sendo preterido para o primeiro prêmio pela "poetisa bósnia que também dirigia um hospital infantil com mil leitos em Gorazde". Amis é bom. Este livro não.</p><p>São centenas de páginas absolutamente confusas, com frases deliberadamente pela metade, personagens bisonhamente semi-definidos, como se a descrição completa das cenas não nos fosse apresentada porque integram alguma espécie de charada - ou porque um escritor brilhante que escreve para outros escritores quase brilhantes deve deixar metade do texto subentendido.</p><p>Geralmente eu não <i>subentendia</i>. Eu só não entendia.</p><p>Há uma passagem em que Richard está concluindo o que Amis define como "um nobre exemplo do antigo gênero literário conhecido como <i>libelo difamatório</i> - que se situam no extremo oposto do panegírico, ou seja, consistem basicamente em injúrias e acusações pessoais".</p><p>Bem, eu não injuriei nem acusei ninguém. Estou a salvo da pecha. Só não aliviei.</p><p>Você pode me perguntar, como certa vez fez uma dona, por que o livro tem esse nome (no caso, era um outro livro). Não vou dizer, para não dar <i>spoiler</i>. Mas é uma razão babaca. A informação é essa.</p><p>Na foto, eu leio o livro nos jardins de Fontainebleau. Decerto você não está ligando o cu às calças, mas este era o jardim de Napoleão. Provavelmente eu nunca mais vou ler um livro no jardim de Napoleão. Ou seja: eu poderia ter escolhido um livro melhor para ler no jardim do cara.</p><p>Cia das Letras, 490 páginas | 2a edição | 2004 | Copyright 1995 | Tradução Sergio Flaksman</p><p>Título original:<i> "The information"</i></p><p><i>Obs.: Entrando no site da editora, há seis livros de Amis, entre eles o "Zona de interesse", que citei lá em cima e cujo nome tinha esquecido. Há também "Lionel Asbo", "Casa de encontros", "Trem noturno" e "Água pesada e outros contos". O mais caro é justo "A informação", R$ 87,90. Que sacanagem.</i></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-21320747400410764142023-12-07T09:59:00.000-03:002023-12-07T09:59:18.162-03:00"Tempo para viver, tempo para morrer", por Erich Maria Remarque<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEg5GtwqeS8RdxPeuEXe3FhOxLLVbrHfj6GJy7kPTsFU6SIJ-NI0oLZyWiUAuTIsVeqltamEiw8s47HHDquTSOC7cHDp9JhuSOIAi2CXCDz_sF_QApqoOubZNe3c-1gdUCMSctOqiUwCAEWbeIGJlaHxrJcZR4gsmEQOJ-OkKJ2MTi46AOu6Y8AqyOh1=s1916" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1488" data-original-width="1916" height="498" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEg5GtwqeS8RdxPeuEXe3FhOxLLVbrHfj6GJy7kPTsFU6SIJ-NI0oLZyWiUAuTIsVeqltamEiw8s47HHDquTSOC7cHDp9JhuSOIAi2CXCDz_sF_QApqoOubZNe3c-1gdUCMSctOqiUwCAEWbeIGJlaHxrJcZR4gsmEQOJ-OkKJ2MTi46AOu6Y8AqyOh1=w640-h498" width="640" /></a></div><br />Escrita como um roteiro para um film <i>noir</i>, o segundo livro de Remarque é uma parábola sobre a inevitabilidade da morte em um planeta em guerra. Diferentemente do seu primeiro livro - talvez o maior best-seller da literatura alemã -, genuinamente autoral, este é um romance pacifista, narrado com as tintas fortes de quem esteve no front na guerra anterior.<p></p><p>Aliás, "Nada de novo no front", seu primeiro texto, fez tanto sucesso que seu título se tornou expressão corrente (a obra era a narrativa de um jovem soldado alemão, que, ao longo da Primeira Guerra Mundial, vê todos os seus companheiros morrerem em combate, um a um; a falta de "novidades" era a morte corriqueira).</p><p>Falei desse livro aqui, no ano passado. Dentro da cronologia que me propus para uma sequência de posts sobre a WWII, ele, que falava da WWI, fazia parte da abertura. Já este faz parte do fechamento.</p><p>Com a enorme repercussão do seu livro (não do meu post, quem me dera), que contava das agruras da <i>Wehrmatch</i> no teatro de operações, Remarque foi execrado depois da guerra. Para os nazistas - defensores da balela de que a Alemanha não fora derrotada no campo de batalha -, o texto era tudo o que não queriam ver divulgado: um soldado alemão denunciando as más condições da linha de frente, a falta de armamento, a fome, as tropas exauridas, as falhas no apoio logístico.</p><p>Para evitar a disseminação de um relato que não mitificava a natureza crua e nada heroica da guerra, os nazistas queimaram todas as edições. A simples posse do texto se tornou proibida. </p><p>O autor foi caluniado, vetado e banido. Sua irmã foi presa e assassinada pelo regime. Com requintes de crueldade: ela, que antes de Hitler assumir o poder teria dito preferir perder a cabeça do que apoiar o austríaco, recebeu o troco literal. Foi decapitada pela SS.</p><p>Mas, seja como for, a Alemanha, depois da de 1914-18, perdeu mais esta guerra, a de 1939-45. Erich, agora na França, se tornou uma celebridade mundial. Era não só um alemão que havia sido inimigo do regime (agora definitivamente derrotado), como se tornara também um ícone da paz. </p><p>Pois com esse "Tempo para viver...", escrito quase dez anos após o fim da Segunda Guerra, um quarto de século mais maduro do que quando escreveu seu primeiro livro, é nítido que o ex-soldado sofisticou seu texto. Sua dinâmica, antes reflexiva, agora é cinematográfica.</p><p>Buscando já de cara lançar o leitor no inferno da guerra, ele abre o primeiro capítulo com seu protagonista, Ernst Graeber, na linha de frente alemã, em solo russo. Este já era um momento em que a queda se aproximava. O exército alemão recuava.</p><p>Após alguns tiroteios e execuções sumárias de judeus, camponeses russos e <i>partisans</i>, Graeber obteve uma licença e foi à Alemanha por duas semanas. Foi para sua cidade natal, Essen, à procura dos pais, mas metade da cidade estava reduzida a escombros. Seu bairro, Werden, estava semi-destruído. Encontrou uma antiga colega de colégio, Elisabeth, cujo pai havia sido preso pela Gestapo. A relação do casal durante seu período na Alemanha irá tomar dois terços do livro.</p><p>O romance dos dois freia demasiadamente a ação. A narrativa se torna arrastada.</p><p>E não só. Uma das deficiências do texto é a constante impressão de estarmos lendo uma denúncia panfletária sobre os erros e atrocidades do governo nazista. Por mais que o contexto seja convincente, é nítida a intenção do autor em pontuar, através dos personagens e situações do enredo, o caos administrativo que grassava em meio à obsessão dos alemães pela ordem (sem contar a cegueira dos idólatras de Hitler e a quantidade de criminosos de farda).</p><p>Por sua inequívoca experiência no teatro de guerra, o livro encorpa quando o protagonista retorna para o front. Vou dar uma palhinha. A violência ostensiva, à guisa de recurso estilístico, provavelmente causava mais impacto do que causa hoje.</p><p>"Atrás de um tanque atingido, encontrou Sauer e dois recrutas. O nariz de Sauer sangrava. Uma granada tinha explodido muito próximo dele. Um dos recrutas estava com o ventre aberto. Os intestinos estavam expostos. Chovia para dentro dele. Não havia nada para medicá-lo. Também, seria inútil. Quanto mais rápido morresse, melhor. O segundo recruta tinha a perna fraturada. Caíra dentro de uma cratera. Não dava para entender como ele poderia ter fraturado a perna na lama macia. Dentro do tanque incendiado, que tinha se partido ao meio, viam-se os esqueletos negros de seus ocupantes. Um pendia para fora. Seu rosto só estava meio carbonizado; a outra metade estava inchada, vermelha e violeta, com a pele estourada. Os dentes eram muito brancos, como cal."</p><p>O fim do livro, ainda que contundente, era previsível. Mas difícil criticá-lo por essa previsibilidade: escrito há quase setenta anos, o que poderia ser original, à época, hoje é banal. Não obstante, a obra pacifista de Erich Maria Remarque cumpre seu papel. Nos faz refletir. E lamentar.</p><p>Editora Globo, 356 páginas (1a edição) 1990 | Tradução Marion Luiza Pfeffer | Copyright 1954</p><p>Título original: "<i>Zeit zu leben und zeit zu sterben</i>"</p><p><i>Obs.: Pena, mas a edição não está mais à venda. De toda maneira, hoje em dia o que não falta é sebo online. Recomendo o www.estantevirtual.com.br. Sou freguês.</i></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-77660319222810070542023-11-30T11:17:00.000-03:002023-11-30T11:17:19.614-03:00"Era um garoto", por Tarcisio Badaró<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrlbTDQlfuRKyVk8CGoAE5mmiQtfGpzM1zzl5o8tYxnXZUJwDnZOXNuSRNe-SkjICeRWpW24OnZpt_CNChyphenhyphenSIFtdsnkINOO2_-AG1XiiDfkziA1UdVn30bPF0nzRi0WfCpKDCdVBLUbDkyBsxWkhHXH0kM_2Ml2sx_BE-GiFrYLtjzbXw75oE9Uqi6gX0/s1543/O%20soldado%20brasileiro%20de%20Hitler%20Horst%20Brenke.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1157" data-original-width="1543" height="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrlbTDQlfuRKyVk8CGoAE5mmiQtfGpzM1zzl5o8tYxnXZUJwDnZOXNuSRNe-SkjICeRWpW24OnZpt_CNChyphenhyphenSIFtdsnkINOO2_-AG1XiiDfkziA1UdVn30bPF0nzRi0WfCpKDCdVBLUbDkyBsxWkhHXH0kM_2Ml2sx_BE-GiFrYLtjzbXw75oE9Uqi6gX0/w640-h480/O%20soldado%20brasileiro%20de%20Hitler%20Horst%20Brenke.jpg" width="640" /></a></div><br />"O soldado brasileiro de Hitler", nos diz o subtítulo. Epa lá. Discordo. O moleque não deu um tiro sequer. Mal saiu do treinamento e foi logo aprisionado. Na verdade, ele foi muito mais "o prisioneiro brasileiro de Stalin" do que um "soldado" de quem quer que seja. Prisioneiro é o que ele foi.<div><p></p><p>E olhe que ser um prisioneiro na União Soviética não é uma narrativa comum por estas bandas. Lemos pouco sobre o cativeiro russo. Já o mercado editorial alemão tem em catálogo centenas de memórias de soldados do <i>Reich</i> que penaram nos campos soviéticos de prisioneiros.</p><p>Este prisma por aqui é raro. Ponto pra Badaró.</p><p>Apesar do título de um ser idêntico ao subtítulo do outro, não há termo de comparação entre este e "Os soldados brasileiros de Hitler", de Dennison de Oliveira (que comentei aqui há duas semanas), um esforçado cata-cata de histórias desiguais, com <i>chicos</i> alemães e depoentes senis.</p><p>Já o texto de Badaró faz muito com pouco. Partindo de um minúsculo diário estropiado, já velho de guerra, ele refaz os passos de um adolescente curitibano que, morando em Berlim, foi na padaria na hora errada e acabou subitamente "convocado" para o serviço militar.</p><p>O garoto se chamava Horst Brenke e era filho de Richard e Margarete Brenke, um jovem casal alemão cujos familiares, enfrentando o caos econômico na Alemanha dos anos 20, resolveram tentar a sorte no Brasil, comprando um grande terreno no Paraná para reiniciarem a vida.</p><p>Pagaram pela terra à vista, em Berlim; mas chegaram aqui não havia nada. Conto do vigário alemão.</p><p>O jeito era trabalhar para sobreviver. Depois de um período improdutivo em Curitiba, onde nasceu Horst, em 1926, Richard conseguiu emprego em Belo Horizonte, como mecânico na casa Arthur Haas, um conjunto de posto e oficina para carros de um comerciante judeu. Em 1934 veio ao mundo a irmãzinha, Maria do Carmo Brenke.</p><p>As coisas no Brasil, porém, não estavam nada fáceis. E enquanto isso, paradoxalmente, a Alemanha ia de vento em popa. O entusiasmado partido nazista assumira o poder, os empregos grassavam, o dinheiro era farto e os Brenke, ora, eram alemães. Voltaram à pátria.</p><p>Não se sabia à época, mas os planos de Adolf Hitler para quitar as faturas se baseavam na espoliação futura dos países vizinhos. Assim, a partir de 1938 os países ao redor da Alemanha foram sumariamente anexados ou invadidos. Os resultados iniciais se mostraram promissores. Até a presumidamente potente França (e sua inexpugnável Linha Maginot) capitulou em semanas. </p><p>A parada começou a dar ruim quando os boches cravaram os dentes no lombo do urso soviético. O que era para ser uma conquista rápida e lucrativa se transformou num atoleiro. Os alemães ficaram dois anos saqueando e matando na União Soviética, ganhando aqui, perdendo acolá. Mas uma hora o barco começou a fazer água de vez. No terceiro ano os nazis tiveram que fugir.</p><p>Em 1944 os ingleses e norte-americanos desembarcaram na Europa. A partir daí, foi tudo uma questão de tempo. Com Stalin de um lado e Churchill de outro, com Mussolini fazendo lambança, Hitler sentiu a pressão e tentou uma última estratégia. Sua ideia básica era "morramos todos". </p><p>Com os próprios exércitos aniquilados, cada vez mais os velhos e os jovens integravam as unidades de combate. Numa dessas companhias de calouros estava Horst Brenke, o "convocado" na fila da padaria. Zanzou com seu pelotão por florestas congeladas, sem achar ninguém para combater, até que se viram ultrapassados pelo Exército Vermelho e, enfim, cercados.</p><p>O comandante designou Horst e mais dois sujeitos para protegerem uma área de cerca de cem metros ao sul e nas costas de um vilarejo chamado Halbe. Pouco depois um bombardeio fez com que os "protetores" se escondessem num celeiro. Os escombros da explosão vedaram as portas. Em pouco escutaram um vozerio lá fora. E as palavras não eram em alemão.</p><p>"São os Ivans", disse um dos sujeitos. E gritou: "<i>Nie strelatsch!</i>". Sábias palavras. Significavam "Não atirem!" em polonês. Dava para os russos entenderem. Os guris saíram por um buraco. Os russos confiscaram os relógios dos três. Foram feitos prisioneiros.</p><p>Isso ia durar muito tempo. Quase todo o livro.</p><p>A primeira prisão dos alemães foi na própria Alemanha. Afinal, o que não faltava era campo de prisioneiros por lá. Era mais uma questão de troca de inquilinos. Coube a Horst o Stalag VIIIC, em Sagan, uma cidadezinha duzentos quilômetros a sudeste de Berlim.</p><p>Halbe era até mais perto, o ruim era o meio de transporte. A pé. Marchando. Quem fraquejava e caía perdia a vaga no campo. Tomava uns pipocos na ideia e era deixado morto no meio do caminho. Não Horst. Ele era bom no negócio de andar. Dormia em pé e andava dormindo.</p><p>Chegou no campo e ganhou uma gamela de sopa aguada, com umas batatas mal lavadas e um naco de pão. O bom foi que conseguiu papel e lápis. Sentou no seu beliche e escreveu, em alemão: "Preso! Quem poderia imaginar isso!" Era o começo do diário. Que, décadas depois, acabou nas mãos de Badaró. Diário cuja história eu resumo mal e porcamente aqui. Em homenagem a Horst.</p><p>O campo era para um mero pernoite. No dia seguinte voltaram para a estrada, e Horst anotou no seu papel: 8 de maio de 1945. Em Berlim, o marechal Wilhelm Keitel - homem de confiança de Hitler, o do "morramos todos", que se suicidara duas semanas antes - assinava a rendição alemã. Festa na cidade.</p><p>Não para Horst, que marchou mais 240 quilômetros até Opole, seguindo o curso do rio Öder. "Alojados em um campo provisório. Daqui deve-se continuar a caminhar! Para onde, não se sabe."</p><p>Era para bem longe. Naquela mesma tarde, embarcaram em um trem com vagões para animais. Caberiam vinte, mas eram amontoados quarenta prisioneiros alemães em cada vagão.</p><p>Em vagões de carga como aqueles os alemães transportaram judeus para os campos da morte. Enfiavam 130 pessoas em cada vagão, sem espaço sequer para porem os pés, que iam uns em cima dos outros. Às vezes, por uma abertura superior, jogavam cal e água sobre os judeus. A combinação química desintegrava a carne do povo encarcerado e comprimido. Morriam todos. </p><p>Mas russos não são alemães. O tratamento VIP se restringia à comida pouca e ruim. Nada de cal, ao menos. O trem avançou lentamente por semanas. O medo coletivo é que o destino final fosse a Sibéria. Mas ainda estavam na Polônia. Cruzaram o Vístula e trocaram de trem. A lotação apertou. Agora em cada vagão eram noventa sujeitos.</p><p>O cardápio não variava e, pior, as rações eram cada vez menores. A Polônia ficara para trás. Quando passavam pelos vilarejos russos, vinha a barulheira: crianças jogando pedras nos trens dos prisioneiros. Chato. O brasileiro anotou a data do seu desembarque em Moscou. Era 13 de junho.</p><p>Mal o dia raiou e os prisioneiros tomaram outro trem. Vinte e quatro horas depois, sem pão nem água, chegaram ao seu destino: Vladimir, uma cidade com nome de lateral do Corinthians. Escreveu: "Será que alguém um dia iria encontrar esse caderninho? Será que iam sobreviver, os dois?" </p><p>No alojamento travou conversa com prisioneiros antigos, chamados de "stalingrados" - é que a maioria dos detentos fôra presa lá. Logo soube que Vladimir tinha diversos campos como aquele. E que a maioria dos prisioneiros havia desfilado acorrentada por Moscou, como troféus de guerra. Não ele. A guerra já acabara.</p><p>A cidadezinha em que estavam se encontrava em ruínas. E cabia aos prisioneiros tirar entulho, abrir e pavimentar ruas. Foi o primeiro trabalho de Horst, até surgir a oportunidade na sua própria área: desenho técnico. Como havia informado no interrogatório de chegada que era brasileiro e desenhista, após dois meses ralando sob o sol, carregando pedras, conseguiu uma ocupação mais amena - projetando as ruas que ele antes pavimentava.</p><p>Sonhava com a possibilidade da liberação, na condição de estrangeiro. Franceses e poloneses que estavam no campo, na sua chegada, foram mandados de volta para casa.</p><p>A comida continuava ruim. Às vezes era apenas sopa de urtiga e fatias finas de pão. Ou uma tal de <i>kasha</i>, uma espécie de mingau russo. Embora o almoço no escritório fosse um pouco melhor, de manhã e de noite se resumia a água com farelo dissolvido.</p><p>Com o tempo, passou a ser mais bem-quisto no trabalho. Os projetistas eram todos alemães, sob a chefia de um capitão russo boa praça. Que logo descobriu que Horst era o único ali que sabia jogar xadrez. Como parceiro de jogo do capitão, a rotina deu uma aliviada. Um pouquinho que fosse.</p><p>No alojamento, porém, nada melhorava. Dormiam em beliches de três andares, sem colchão. As botas estavam cheias de buracos. Brenke utilizava o mesmo uniforme de quando fora preso, mais de quatro meses antes. Cheio de piolhos. Chovia. O tempo esfriava.</p><p>"Já irão nos deixar loucos. Para mim, em breve, é como se eu deitasse na cova. O principal é que eu deite quente. Já está tão frio que o lápis escorrega dos dedos duros! Daqui a pouco não vou poder mais escrever! Tomara que essa miséria tenha logo um fim. De um jeito ou de outro."</p><p>Em outubro os prisioneiros romenos partiram. Horst pensava quando chegaria sua vez. Era brasileiro, afinal. Adoeceu. Passou uma semana na enfermaria, um mero galpão vazio, sem ninguém que o atendesse, quando foi chamado. Perguntaram: "É brasileiro, não é? Parte hoje." Se encheu de alegria. Não se despediu de ninguém e foi levado para a estação.</p><p>O trem que o levaria já havia partido. Devolveram-no ao alojamento. Faltou sorte.</p><p>Novembro sequer chegara e tudo ao redor era neve. Dezessete graus abaixo de zero. Sopa de cascas de batata. Prisioneiros morriam como moscas. Outros estrangeiros partiram. Mas desta vez ele não foi selecionado. Naquela noite a marmita veio com areia. Ele comeu. Houve uma quarentena. Tifo.</p><p>Sobreviveu. No fim do mês foi finalmente convocado para libertação. Na estação um oficial confirmou com ele: "Brasileiro?" Horst fez que sim. "De Curitiba". O oficial perguntou onde estava sua família. Horst disse que em Berlim. "Como?" O oficial se exasperou e riscou o nome dele da lista. Voltou para a prisão. Mas não para o seu campo, nem para o seu trabalho. Começaria tudo de novo.</p><p>Estava novamente preso. E tinha pela frente o inverno russo.</p><p>E novamente o duro trabalho braçal. Desta vez, foi alojado no campo principal. Passou o Natal sob 25 graus negativos. Com fome, piolhento e esfarrapado. Irritado com os alemães que trabalhavam no campo como chefes de companhia, dando ordens a outros alemães e comendo melhor que eles.</p><p>Os russos tratavam os prisioneiros alemães até que com alguma dignidade. Em fevereiro, Horst recebeu um salário. 75 rublos. Um quilo de pão custava 25 rublos. No meio do inverno adoeceu. Se recuperou. Em 28 de abril completou um ano como prisioneiro. Ansiava pelo 1<u>o</u> de maio, feriado do Dia do Trabalho. Não carregaria carvão. Fez sol, a ração teve bolo e vinte gramas de gordura.</p><p>Duas semanas depois ele foi novamente interrogado. Era o procedimento padrão para selecionar quem sairia do campo e voltaria para casa. Mas ele não acreditava mais que sairia de lá um dia. O comissário russo fez as perguntas de praxe, em alemão. Na hora da nacionalidade, Horst confirmou que era brasileiro. </p><p>- Quantos anos você tem? perguntou o russo, em português, para espanto de Horst.</p><p>- Eu completo vinte anos dentro de um mês e seis dias! respondeu.</p><p>No mesmo dia foi colocado em um transporte internacional. O trem deixou Vladimir naquela noite e demorou longos quatro dias para chegar a Moscou. E demorou mais vinte para deixar a Rússia, cruzando o rio Tisza e chegando à Romênia. Desembarcaram na pequena cidade de Sighetu Marmatiei. Os guardas russos não os seguiram. Não haveria mais guardas.</p><p>Em um campo provisório, cercado por arame farpado, ganhou roupas novas. As primeiras depois de um ano vestindo os mesmos trapos do uniforme alemão. Ganhou uma calça escura, uma camisa branca de botão e um paletó surrado. Comiam bem e não precisavam trabalhar. Era junho de 1946.</p><p>Uma semana depois embarcou novamente. O trem agora era de passageiros, e não de carga, como os demais em que viajara no último ano. Comemorou o aniversário na cidade húngara de Debrecen. Era agora um garoto de vinte anos. O trem passou por Budapeste e chegou à Viena. O desembarque foi em St. Valentin, também Áustria. Era um campo de refugiados - como descrevi detalhadamente aqui em "A longa volta para casa", alguns meses atrás. </p><p>A diferença é que eu então falava da perspectiva de quem comandava os campos com milhões de refugiados. Agora estamos vendo a história de um único "refugiado". Um guri de pais alemães que nasceu e foi alfabetizado no Brasil. O <i>displaced</i> ficou um mês na Áustria.</p><p>Um novo trem o levou para Bolonha, onde gramou por quinze dias, acomodado em instalações da UNRRA, esta tal entidade que zelava pelos deslocados de guerra - seu novo status. Já não era mais um prisioneiro; mas não tinha para onde ir. Não tinha documentos. Não tinha como provar quem era.</p><p>Foram levados para Aversa, perto de Nápoles. Lá ele procurou o cônsul brasileiro, que não acreditou na sua história, a princípio; mas, um mês depois, por razões que Badaró não nos esclarece (certamente porque não tinha essa informação no diário), o cônsul o chamou.</p><p>Disse que ele deixaria Nápoles no dia seguinte, um 25 de setembro. O navio era o Almirante Jaceguay, que aportaria no Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1946. O cônsul mandou que ele tirasse uma foto para o passaporte. O retrato de 5cm x 7cm foi para a capa do livro.</p><p>Acabou aí a aventura do garoto Horst Brenke, o "soldado brasileiro de Hitler". Teve uma vida convencional no Brasil, voltando para Belo Horizonte. Manteve seu diário guardado, sem compartilhar com ninguém sua história. Morreu jovem, aos 57 anos, em 25 de maio de 1984.</p><p>O diário de 76 páginas, em papel ensebado e cheio de manchas, com letrinhas miúdas e todo escrito em alemão, permaneceu indecifrado. Até que a jovem enteada de um dos filhos de Horst, que nunca conheceu o "avô", comentou com o novo namorado, jornalista, que tinha um diário misterioso em casa.</p><p>Falou com a pessoa certa. Um escritor.</p><p>Editora Vestígio, 190 páginas | Copyright 2016 | 1a reimpressão</p><p><i>P.S.: Gostou, né? Pois então sugiro que compre o livro e leia a história completa. Tem muito mais, incluindo a viagem do escritor à Rússia. Isso aqui foi só um resuminho apressado.</i></p></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-52981987439822127622023-11-14T17:11:00.001-03:002023-11-14T17:19:07.022-03:00"Os soldados brasileiros de Hitler", por Dennison de Oliveira<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4cLoK2DdBHTpn2rxXOv7AKoFfckLZ0UNbPEwBhyphenhyphenurS4nB1fBEHUIQ4ubdamv3ITvxRjA7KMI5tO9emTqkPNqS_cpnc1drq1jol4AJeM0nxuz4JTJKr0qvzXRdC1URyRbVtXd0IoRO8_U/s1157/Os+soldados+brasileiros+de.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="772" data-original-width="1157" height="428" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4cLoK2DdBHTpn2rxXOv7AKoFfckLZ0UNbPEwBhyphenhyphenurS4nB1fBEHUIQ4ubdamv3ITvxRjA7KMI5tO9emTqkPNqS_cpnc1drq1jol4AJeM0nxuz4JTJKr0qvzXRdC1URyRbVtXd0IoRO8_U/w640-h428/Os+soldados+brasileiros+de.jpg" width="640" /></a></div><br />O autor é um professor radicado no Paraná, estudioso da história da guerra. Finaliza sua publicação com um texto conciso e bem fundamentado sobre as raízes do conflito e da reorganização europeia pós-45. Dá foco também à formação do Estado de Israel, investindo no paralelo entre o genocídio judeu perpetrado pelos nazistas e o tratamento dado aos palestinos pelos judeus.<div><br /></div><div>Embora o faça com certa timidez, seu flerte com o negacionismo do Holocausto não passa despercebido. Afirma a política de extermínio praticada por <i>alguns</i> representantes do regime nazista e minimiza o assassinato organizado de 6 milhões de civis entre homens, mulheres e crianças que possuíam religião ou antecedentes judaicos - nivelando-o com o assassinato de outros grupos estigmatizados pelo governo alemão, como os homossexuais, os ciganos etc.</div><div><br /></div><div>Mas esta não é a motivação do seu texto. A lenga-lenga típica dos negacionistas só surge ao fim do livro. E também não é o foco do meu comentário, embora não pudesse deixar passar despercebidas as assertivas do autor - situadas entre o historicamente descabidas e o relesmente criminosas. </div><div><br /></div><div>Por uma razão simples: não se atenua um crime contra a humanidade.</div><div><br /></div><div>Nem um atentado terrorista, a propósito. Mas isso são outros mil e quatrocentos.</div><div><br /></div><div>Assim, rumemos para o <i>leitmotiv</i> da obra: a "importante" participação de soldados brasileiros na <i>Wehrmatch</i>, as forças armadas da Alemanha. Os soldados "brasileiros" de que trata o livro são todos filhos de alemães (e austríacos) que haviam migrado para o Brasil após a Primeira Guerra Mundial. A economia alemã estava esfacelada, seu mercado de trabalho idem e, lá, o ambiente político era de balbúrdia. Fugir da Alemanha era um bom negócio para os alemães.</div><div><br /></div><div>Os que escolheram o Brasil por destino e, no Brasil, São Paulo, matricularam seus filhos na <i>Deustche Schule</i>. Com a chegada de Hitler ao poder e o cenário promissor da economia alemã na segunda metade dos anos 30, muitos alemães voltaram com suas famílias para a Alemanha.</div><div><br /></div><div>Seus filhos brasileiros, nascidos na década de 20, entraram todos para a <i>Jungvolk</i> (uma espécie de escotismo nazista) e, depois, para a <i>Hitlerjugend</i>, a juventude nazista. Chegaram à idade de convocação militar já no último terço da Segunda Guerra, entre 1943 e 1945.</div><div><br /></div><div>Os jovens que não morreram e conseguiram retornar ao Brasil foram a matéria-prima exclusiva de Dennison de Oliveira. Foram entrevistados já em idade avançada, no início dos anos 2000, passados mais de meio século dos eventos que se esforçam em reconstituir.</div><div><br /></div><div>Um deles, "Gustav" (tratado no livro como G.S.), foi o ponto de partida e também de contato com os demais soldados. Estudaram todos no mesmo colégio paulistano, lutaram na mesma guerra, voltaram para o mesmo país.<br /><div><br /></div><div>O autor narra seu contato com um filho de alemães nascido em São Paulo na década de 20, e que nos anos 30 retornara com a família para a Alemanha. O depoente optou pelo anonimato, temeroso (ainda) de ser vítima de preconceito pelo passado nazista. Oliveira refere-se a ele apenas como G.S. </div><div><p></p><p>O uso das iniciais desumaniza e descontextualiza a ideia de uma versão pessoal. Vamos então dar um nome verossímil a ele, já que mais da metade do pequeno livro é dedicado a este soldado específico. "G" poderia ser Günter, Gerd, Gustav etc. Vamos ficar com o último, cuja versão portuguesa, Gustavo, é mais apropriada a quem nasceu no Brasil. Optemos por um sobrenome - vou de Schröeber, mas poderia ser qualquer outro, como Schön, Schumacher, Sïeber etc.</p><p>Na Alemanha, nosso recém-rebatizado Gustav Schröeber se inscreveu na <i>Jungvolk</i> e depois na <i>Hitlerjugend</i>, a Juventude Hitlerista. Como qualquer criança, foi alvo de curiosidade dos amigos pela sua origem sul-americana e apelidado de <i>Der Amerikaner</i> ou simplesmente <i>Güingo</i>. Tentou fugir à prestação do serviço militar, convenientemente alegando sua condição de estrangeiro, mas não colou. Pelo seu nível de escolaridade, foi aceito em um curso de aspirantes a oficiais em Praga, na Tchecoslováquia ocupada, em 1943, de onde saiu como canhoneiro.</p><p>Quando da designação para o front, tentou escapar da ida para combate na frente italiana, alegando não querer guerrear seus compatriotas brasileiros - uma desculpa esfarrapada, pois coube ao Brasil uma parcela ínfima, tardia e desimportante da linha de frente, em um teatro secundário da guerra. A chance de vir a trocar tiros com os brasileiros era desprezível. A FEB só aportou na Itália um ano depois, no fim de 1944, e nossos batalhões estavam mais preocupados em não congelar do que em atirar em alguém.</p><p>Vale abrir um parêntese: as tropas brasileiras não tinham uniformes adequados, equipamento adequado, treinamento adequado, não falavam inglês, nem italiano, nem alemão; receberam por missão atacar um monte irrelevante, defendido pelo rebotalho do exército nazista, e fracassaram. O Brasil insistiu em ter tropas na Europa pela conveniência para a ditadura getulista e por capricho para o alto-comando militar brasileiro. Foi uma ação de marketing político, não uma ação bélica.</p><p>Seria como mandar à Groenlândia um mestre-de-obras cearense para construir iglu para esquimó.</p><p>Voltando à desculpa cara-de-pau de Schröeber, os brasileiros só colocaram o pé na Europa em setembro do ano seguinte, e somente em novembro uma divisão inteiramente brasileira se consolidou. A alegação estapafúrdia de que um reles soldado alemão teria "se recusado" a ir para um determinado front porque em algum momento do futuro poderia vir a combater sul-americanos oriundos do país em que havia ocasionalmente nascido é para rir. Seria motivo de pilhéria, espancamento ou fuzilamento. Certamente disse isso para edulcorar a sua passagem medíocre pela <i>Wehrmacht </i>e para posar de cidadão de princípios e brasileiro patriota.</p><p>Não foi a primeira nem a última das mentiras de Schröeber em seu longo depoimento.</p><p>O segundo brasileiro descrito por Oliveira como tendo prestado serviço militar na <i>Wehrmacht </i>o fez por breves semanas e não disparou nenhum tiro. Fritz Müller (pseudônimo posto pelo autor, sobrenome por mim mesmo) nasceu também em São Paulo, em 1928, e aos dez anos voltou para a Alemanha, com os pais e irmãos. A família foi residir em Berlim, onde Fritz se alistou, como todos os da sua idade, na <i>Jungvolk</i> e depois na <i>Hitlerjugend</i>.</p><p>Com os irmãos mais velhos já no Exército, em 1944 ele foi chamado para compor uma bateria anti-aérea, onde ele e mais dois jovens pilotavam holofotes, sob orientação de um militar. Em 1945 foi efetivamente recrutado e mandado para a Polônia (que, à época, já não existia, era o Governo Geral), de onde fugiu dos russos. Na volta à Alemanha, foi preso pelos americanos. Libertado, acabou sendo mandado para trabalhar na zona de ocupação russa.</p><p>Para escapar à miséria que grassava na Alemanha, conseguiu na embaixada brasileira o repatriamento, em 1947. Fritz voltou ao Brasil sem saber falar português. Morreu em São Paulo, em 2006, na completa ignorância sobre a guerra da qual "participou", mais de meio século antes. Acreditava nas boas intenções do regime nazista, que, inocente, havia sido levado à guerra pela Inglaterra e que a Alemanha sofrera grandes atrocidades por parte dos Aliados.</p><p>Via em Berlim os judeus com a estrela amarela costurada, mas "eram poucos" e não os considerava "perseguidos". Se morreram em campos de concentração, era porque as condições de guerra foram severas de forma geral. Fritz não acreditava no extermínio deliberado (hoje denominado "negacionismo") e tinha uma lembrança afetuosa da sua infância nazista.</p><p>Seu irmão Jürgen Müller (rebatizado por mim, já que o pseudônimo atribuído a ele foi Martin, um nome inglês), mais velho, integrou uma tropa nazista que caçava civis na Lituânia. Depois foi deslocado para a Rússia, onde recebeu a "Ordem da carne congelada", como debochavam os soldados - uma medalha para quem esteve servindo no Leste.</p><p>O que Jürgen mais fez foi zanzar de um canto ao outro, quase sempre sem ação: interior francês, Côte d'Azur e Ucrânia, até que recebeu a função de liderar um grupo de pastores (soldados inexperientes) na Romênia. Especializado em retiradas (as tropas alemãs tinham fugido na Rússia e na Ucrânia), fugiu também na Romênia, onde levou um tiro na perna e acabou preso, nu, pelos soviéticos. Depois de cinco anos como prisioneiro na União Soviética, foi mandado de volta à Alemanha, de onde conseguiu repatriamento para o Brasil, em 1950.</p><p>Hans, filho de austríacos que emigraram para o Brasil em 1924, nasceu em 1926, em São Paulo. Sua história é semelhante a de todos os demais garotos mencionados no livro: estudou na paulistana <i>Deutsche Schule</i> e rumou para a Alemanha em 1938.</p><p>Seus pais foram para Hamburgo, onde ele integrou as escolinhas nazistas - de educação física, simulacro militar e cursinho rápido de ódio aos judeus - e, na guerra, estreou como apontador de holofotes, como outros guris. Em 1944, enfim militar, foi mandado para o front tcheco.</p><p>Acossado pelos russos, passou a maior parte do tempo enfiado em um buraco. Era inverno e isso lhe custou a amputação dos dedos dos pés. Não tinham armamento ou munição suficientes. Além de ter tido o pé congelado, teve a sua Maüser roubada. Não consta ter disparado nenhum tiro. Sua maior diversão era beber cachaça (sua equivalente local, a <i>schnaps</i>).</p><p>Com a ajuda do consulado brasileiro, conseguiu um repatriamento para o Brasil em 1948. Os pais voltaram no ano seguinte.</p><p>O caso de Max ainda é mais desprovido de relevância. Capixaba, nascido em 1928 de imigrantes alemães que voltaram à pátria em 1935, cumpriu o mesmo cronograma dos demais: Jungvolk - o tal primário de adestramento infantil - e escola militar. No caso de Max, na Prússia.</p><p>Como soldado, em 1945 cavou buracos na Tchecoslováquia ocupada e depois foi mandado para Viena. Não deu um único tiro. Fugiu aqui ou acolá, durante a guerra, e fugiu depois da guerra para a França. Voltou depois para Hamburgo e conseguiu o repatriamento para o Brasil em 1947.</p><p>Na sua ignorância, repete, como se fosse verossímil, uma piada de português - a de que os soldados russos que invadiram a Alemanha roubavam torneiras para ter água em qualquer lugar -, e o autor, na sua ingenuidade, reproduz o deboche como se verdade fosse, sem aspas reticentes ou um comentário cético.</p><p>A propósito, cabe observar que os soldados alemães invasores roubaram tudo o que encontravam e eram estimulados a dar um tiro na cabeça do cidadão roubado, fosse homem, mulher ou criança. Há vasta e reputada literatura sobre o assunto. Nela, constatamos que expropriar e assassinar eram o comportamento militar padrão nos tempos em que a <i>Wehrmatch </i>era a invasora. Depois, invadida, se tornou hábito culpar o inimigo de fazer o mesmo que ela própria havia feito.</p><p>O caso de "Chicco", um filho de austríacos que nasceu em 1927, em São Paulo, e que foi enviado, com o irmão mais velho, ao Österreich, em 1939, inicia como os demais, mas com um fim bem diferente. Franz - não vou chamá-lo de <i>Chicco</i>, é bizarro - também estudou na Deustch Schule paulistana e, no império germânico, também integrou a Jungvolk.</p><p>Em 1943 já integrava as baterias anti-aéreas, como os outros adolescentes entrevistados por Oliveira, e em 1944 foi convocado para o serviço militar, primeiro em Viena e depois em Berlim. Foi mandado para a Dinamarca e depois para a Holanda. Em ambos os países sua tropa se limitou a fugir dos Aliados e a se proteger dos bombardeios.</p><p>Em Nijmegen, na Holanda, no barata-voa que eram as fugas, Franz de repente se viu sozinho e tentou retornar para a retaguarda. Percebendo a movimentação inimiga ao redor, jogou fora sua arma, levantou os braços e se rendeu. Eram ingleses, que não tinham o hábito germano-soviético de matar soldados rendidos e burocraticamente conferiam seus documentos. </p><p>"Um brasileiro! Pegamos um brasileiro!"</p><p>Na época, Pelé ainda não existia e o Brasil se resumia a Carmen Miranda, que era portuguesa. Mas o brasileiro Franz foi bem mais útil: bem educado, falava inglês fluentemente e se tornou intérprete e tradutor. O único perrengue foi ter passado os primeiros dias preso num chiqueiro, entre os porcos. Fora isso, tudo transcorreu bem.</p><p>Franz trabalhou com a 53a Divisão de Infantaria, do País de Gales, na Holanda, e, com o fim da guerra, foi para Neuburg, como tradutor da administração britânica na Alemanha ocupada. Liberado, foi para a Bélgica, de onde embarcou de volta para o Brasil.</p><p>Ao contrário do que parece pretender o autor e do que nos leva a crer o título, o tema não é nada militar, muito menos glorioso. É uma narrativa sobre pobres-coitados que, crianças, estavam à mercê das ambições de ascensão econômica dos pais - e coube a eles pagar um preço alto. Oliveira só teve como entrevistar os sobreviventes. Das crianças mortas ninguém tem o paradeiro.</p><p>Suas famílias vieram da Alemanha e da Áustria fugindo do desemprego e da ruína do pós-guerra; desistiram da aventura no Brasil e retornaram ao eldorado alemão da segunda metade dos anos 30, quando Hitler, à custa de empréstimos que não seriam pagos, turbinava a economia; e fugiram de volta para o Brasil, como repatriados protegidos pela nacionalidade postiça, quando a Alemanha passou de invasora a invadida, e seus crimes de guerra foram cobrados.</p><p>Pelos comentários pretensamente patrióticos, por meio dos quais glorificam sua presença no front, os "soldados brasileiros de Hitler" até hoje não entendem no que tomaram parte. Figurantes incapazes em um morticínio covarde, permanecem imersos na mais absoluta ignorância sobre a tragédia criminosa em que bateram ponto.</p><p>Foram bucha de canhão nas mãos de um psicopata covarde. Hoje se orgulham de terem sido vítimas.</p><p>Juruá Editora, 122 páginas | 1a edição | Copyright 2008</p></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-87437192503079463152023-11-07T19:46:00.000-03:002023-11-07T19:46:03.625-03:00"Diário de Berlim ocupada - 1945 - 1948", por Ruth Andreas-Friedrich<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiULzCd-5HtZh4zDLy1bsDK39iwTQ6n5OF48wGX4ItlVx6GeYhpUpZ051KWs76hvhlcNn4MDF3eumJ-6teNF8HDcLhvovMVWp5LHcf228T5m6I0LaivfXByDeGNs_-oGYp5RlwHTYw3yPpf2CJt13wzX5nurZQsJZRjPToaqGz_p2PRTs92zqBZsEb8/s1536/di%C3%A1rio%20de%20berlim%20ocupada%20post.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1068" data-original-width="1536" height="446" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiULzCd-5HtZh4zDLy1bsDK39iwTQ6n5OF48wGX4ItlVx6GeYhpUpZ051KWs76hvhlcNn4MDF3eumJ-6teNF8HDcLhvovMVWp5LHcf228T5m6I0LaivfXByDeGNs_-oGYp5RlwHTYw3yPpf2CJt13wzX5nurZQsJZRjPToaqGz_p2PRTs92zqBZsEb8/w640-h446/di%C3%A1rio%20de%20berlim%20ocupada%20post.jpg" width="640" /></a></div><br />Uma barragem ininterrupta de bombas deixou a cidade em ruínas. Não há água, comida, transporte ou energia. Pior: as mulheres foram estupradas e os homens estão mortos.<div><br /></div><div>Não, não estou falando de Gaza, nem de um kibbutz israelense. Falo de Berlim, 78 anos atrás.<br /><div><br /></div><div>Era novembro de 1945. Poucos meses antes, a Segunda Guerra Mundial vivia seus últimos dias. A Alemanha tinha sido invadida por russos (a leste) e por americanos (a oeste). Em meio às ruínas da Berlim desmoronada, o grupo <i>Onkel Emil</i>, formado por jovens alemães de esquerda, ferreamente antinazistas, comemorava o fim da guerra e a chegada do Exército Vermelho.</div><div><br /></div><div>Não eram meros alemães oportunistas - e sim jovens que, na clandestinidade, desde o início da guerra, fizeram ativa oposição a Hitler. Mas as coisas não se deram como eles esperavam.</div><div><br /><div>Já sem encontrar resistência, os soviéticos chegaram saqueando, roubando e estuprando. Alguns do grupo de jovens comunistas alemães falam o idioma russo, se identificam como resistentes e, na terra arrasada, conquistam alguns privilégios. Recebem também algumas tarefas de organização e o direito de realizar um espetáculo musical nos escombros da cidade. Os russos amam a música.</div><div><br /></div><div>O idealismo logo sucumbe diante da realidade. As duras condições de vida se impõem. Faltam acomodações, comida, segurança, energia, higiene, aquecimento e transportes. Os russos são algozes e ladrões, jamais parceiros; nunca exemplos de conduta, como esperavam os jovens. Os aliados, vitoriosos, não se entendem, nem se suportam. Os alemães lutam pelas migalhas.</div><div><br /></div><div>Esta é a narrativa de Ruth e seus amigos ao longo dos primeiros três anos de ocupação de Berlim. O grupo logo se desintegra e a cidade é repartida entre as quatro forças aliadas: ingleses, americanos, franceses e russos. Os alemães se dividem entre os que apoiaram o nazismo (e agora tentam esconder seu passado) e aqueles poucos que desde o início da guerra eram contra o governo; mas mesmos estes já acham a dominação estrangeira pior do que a opressão do governo nazista.</div><div><br /></div><div>Trechos dos diários podem ser um termômetro do sentimento dos berlinenses. </div><div><br /></div><div>"Afinal, os americanos vêm ou não? Berlim será dividida ou ficará com os russos?", se questionava a autora, testemunhando a fértil oposição fascista após o fim do regime. "Grupos anti-fascistas espocam como cogumelos. A cada duas esquinas, formou-se algum grupo político".</div><div><br /></div><div>"Campanha Alemanha Livre"... "Grupo Seidlitz"... "Antifa"... "Aliança de Oponentes de Hitler"... Ruth é mordaz: "Nem todos esses grupos anti-Hitler podem se orgulhar de uma longa luta anterior".</div><div><br /></div><div>Fora de dúvida que grupos de oposição ao nazismo antes eram raridade, principalmente no ocaso do regime. À medida em que a derrota se impunha inevitável, recrudescia o patrulhamento da SS e dos <i>gauleiter</i> sobre a população. O justiçamento dos opositores era violento e imediato. Ruth correra grande risco com suas convicções políticas e imaginava que a chegada dos soviéticos, com seu revolucionário comunismo, iria trazer benefícios palpáveis ao povo.</div><div><br /></div><div>As coisas não se deram assim, como constatamos em seu relato. Os diários se estendem por três anos e formam um raro mosaico da vida em Berlim durante o início da ocupação soviética. O texto traz muitas curiosidades, entre elas o súbito novo valor de uma estrela de Davi amarela.</div><div><br /></div><div>"Vez por outra, uma estrela de Davi adornando a camisa de quem a usa como se fosse uma condecoração. Um álibi", diz Friedrich, que acrescenta que "corre o boato de que estrelas de Davi valem hoje no mercado quinhentos marcos cada uma".</div><div><br /></div><div>É difícil não sorrir para esta súbita inversão de valores. Mas ela relata que o álibi não funcionou como esperado. "As mulheres judias também foram estupradas".</div><div><br /></div><div>Os primeiros meses da Berlim sob ocupação estrangeira cabem dentro do estereótipo: roubos, saques, estupros. Como mostra a própria ilustração da capa, você estava com sorte se saísse com sua bicicleta e voltasse com ela. Os soldados soviéticos não perdoavam bikes, relógios e xoxotas.</div><div><br /></div><div>Após o primeiro ano, os alemães do lado soviético da administração de Berlim tentavam normalizar a rotina da cidade. Houve eleições, com 90% de comparecimento. Oitocentos e cinquenta e um mil homens e um milhão e meio de mulheres foram às urnas. Nada mal.</div><div><br /></div><div>Ganhou o Partido Social Democrata, com 48,9%. O Partido da Unidade Socialista, o partido do invasor poderoso, teve que se contentar com pífios 20,4%. Um membro do partido derrotado ironizou: "As mulheres de Berlim votaram contra seus amantes russos".</div><div><br /></div><div>A União Soviética continuava deportando trabalhadores alemães qualificados (cientistas, especialistas em indústrias-chave etc) para sabe-se lá onde. "Os democratas chamam isso de assassinato. Os ditadores descrevem o assunto como 'satisfação de obrigações prévias".</div><div><br /></div><div>Os invernos são o pior momento. Falta energia de oito a dez horas por dia. Não há aquecimento. As pessoas viajam de trem para a floresta de Grunewald e gastam horas recolhendo lenha que será queimada em um dia. Ruth registra:</div><div><br /></div><div>"A natureza também, a seu modo, tenta resolver o problema da superpopulação alemã. Como o antigo Egito, todo o país parece afetado por sete pragas. Tão logo a praga da guerra terminou, veio a do estupro, seguido da praga dos refugiados. E, enquanto grassa essa última, uma nova - o frio - se instala em em enregelantes nevascas. As mortes continuam", prossegue Friedrich, chamando o estouro dos esgotos de quinta praga, a sexta seria a enchente do Oder e a sétima a tuberculose e as doenças venéreas.</div><div><br /></div><div>Além das pragas naturais, a população sofre com a partição da cidade entre quatro países diferentes. Um artigo do <i>Neue Zeitung</i>, intitulado "A situação por zona", analisa a gestão de cada um:</div><div><br /></div><div>"Os franceses acreditam que os alemães não têm o direito de participar da política. Nem da política interna", afirmando que, para eles, "uma administração pobre é melhor do que a boa política". Já os russos "pensam diferentemente. A política é necessária. A política deles: a do Partido da Unidade Socialista. Acreditam que a má política é ainda melhor do que uma boa administração. Mas a mentalidade da zona deles é de medo".</div><div><br /></div><div>"Os ingleses", continua o jornal, "creem que aquilo que se mostrou bem-sucedido com eles também deve dar certo na Alemanha: um sistema de voto majoritário, democracia social, economia planejada, total liberdade de crítica". Mas o texto ressalta que "na verdade, apenas a crítica vem funcionando".</div><div><br /></div><div>"Os americanos acreditam que uma atitude democrática é preferível a qualquer dogma político. Em consequência, sua atitude para com a política interna alemã é a menos determinada. Paradoxalmente, a mentalidade da zona americana de expectativa calculada é a mais europeia."</div><div><br /></div><div>Friedrich e seus amigos criticam o fato da Áustria receber reparações de guerra: "Tratada como uma nação que foi oprimida por Hitler e agora está libertada", transcreve a autora, diretamente dos jornais. "Áustria, primeiro país vítima da agressão de Hitler a ser isenta do pagamento das reparações como nação não hostil".</div><div><br /></div><div>O grupo se indigna com a perspectiva da Alemanha indenizar a Áustria. "Quanta besteira", balbucia, incrédula, Ruth. "De todos os povos, nossa nação-irmã no Eixo. O mais ansioso, servil e entusiasta homem de 1938".</div><div><br /></div><div>"O nazismo começou na Áustria", acredita a autora, "encontrou clima e apoio na Baviera e terminou na Prússia", para concluir que a Prússia foi dissolvida, que "os bávaros afirmam que não foi coisa deles e a Áustria pede reparações. Será que o mundo ficou completamente maluco?"</div><div><br /></div><div>As teorias da conspiração tão comuns hoje na internet, e com milhões de adeptos entusiasmados nas redes sociais, espocavam entre a população. Segundo a autora, muitos acreditavam que os americanos roubaram a bomba atômica <i>inventada</i> pelos alemães. Para o populacho, a lógica era a seguinte: se os americanos entraram na Alemanha em abril e explodiram Hiroshima em agosto, é lógico que ela foi roubada dos alemães.</div><div><br /></div><div>Quem não entendeu, que peça para a Dilma e o Bolsonaro explicarem. Devem ter suas teorias.</div><div><br /></div><div>O grupo de amigos que era o entorno da autora dos diários se dissolve com a passagem dos anos. Um morreu, assassinado por um russo, e os demais deixaram o lado soviético de Berlim. Ruth, idealista, gostaria de ficar. Mas é uma editora em um "país" onde não há papel. </div><div><br /></div><div>Se orgulha das eleições de dezembro de 1948, quando mais de 80% do um milhão e meio de alemães votaram contra as políticas do Partido da Unidade Socialista, e celebra a vitória de Pirro: "Um resultado admirável, levando-se em conta que ele provavelmente será pago com uma intensificação do bloqueio, com um inverno sem carvão, com noites sem eletricidade e com uma dieta de batatas desidratadas".</div><div><br /></div><div>Na véspera do ano novo de 1948, Ruth Andreas-Friedrich embarca para Frankfurt e se prepara para deixar Berlim para trás. Enquanto ajusta o cinto de segurança da aeronave, o passageiro ao lado afirma: "A caminho da liberdade".</div><div><br /></div><div>O registro de Friedrich tem o mérito de reportar a cidade e a ocupação soviética sem o desserviço da demagogia. Compõe um documento valioso para entendermos o fechamento de Berlim Oriental ao ocidente.</div><div><br /></div><div>Cai o pano da cortina de ferro. Demorará quase meio século para levantar.</div><div><br /></div><div>O avião decola. Enquanto ganha altura, a autora dos diários chora e se despede. As nuvens lhe roubam a visão. "Em algum lugar lá embaixo está Berlim, Berlim ocupada".</div><div><br /></div><div>Editora Globo, 297 páginas | 1a edição 2012 | Tradução Joubert de Oliveira Brízida | Copyright 1985</div><div><br /></div><div>Título original: <i>"Battleground Berlin: diaries 1945 - 1948"</i></div><div><br /></div><div><br /></div><div><br /></div></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-81394484337733643352023-10-25T16:04:00.000-03:002023-10-25T16:04:52.996-03:00"A máfia dos bombardeiros", por Malcolm Gladwell<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDvsPxPWLKT-bsx14MFype3LCCWacowNshU1c-Kw4xgNWjEE8pRG8EP2Zg70jftMpjQWRsXcVFynuy1pt5uzUKrLOovB3RLsVbxwSJO7Ptv0Y1RIzYMa_pI2PsHI0yabXk0-k0b0AF9xBUxgZdGcOiI-8Kxm_O1ycI03A-CMUwq1JslxUDSfpUqUpc/s1280/A%20mafia%20dos%20bombardeiros.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="999" data-original-width="1280" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDvsPxPWLKT-bsx14MFype3LCCWacowNshU1c-Kw4xgNWjEE8pRG8EP2Zg70jftMpjQWRsXcVFynuy1pt5uzUKrLOovB3RLsVbxwSJO7Ptv0Y1RIzYMa_pI2PsHI0yabXk0-k0b0AF9xBUxgZdGcOiI-8Kxm_O1ycI03A-CMUwq1JslxUDSfpUqUpc/w640-h500/A%20mafia%20dos%20bombardeiros.jpg" width="640" /></a></div><br />Nas últimas semanas o Oriente Médio vem lidando diariamente com dois tipos de bombardeio. Os foguetes de curso semi-aleatório disparados da Faixa de Gaza contra cidades de Israel e as bombas de precisão lançadas pela defesa israelense sobre alvos do Hamas na Faixa de Gaza.<div><br /></div><div>OK, dei uma simplificada. Tem muito mais coisa sendo disparada além do que esbocei nesse curto parágrafo - ontem mesmo mísseis da Síria e do Líbano voaram em direção a Israel, e foram devidamente retaliados -, mas ele se presta a uma meia dúzia de comentários que quero fazer a respeito de "A máfia dos bombardeiros" e a busca da ação milimétrica de um bombardeio.</div><div><br /></div><div>Já o texto prima por uma abordagem superficial. O autor é o jornalista norte-americano Malcolm Gladwell, cujo foco seria o inglório esforço do bombardeio de precisão nos idos dos anos 40.<br /><div><br /></div><div>O livro traz informações pertinentes, mas Gladwell faz um caminho enviesado para contar sua história - ainda que a conte bem. A "máfia" que dá título ao livro é mais uma sacação comercial para estruturar o roteiro, um viés romântico atribuído a uma categoria que era especializada em jogar bombas na casa dos outros.<div><br /><div>No país alheio, quero dizer.<br /><p></p><p>Que foi exatamente o que esses aviadores fizeram na Segunda Guerra Mundial. Os alemães jogaram na Inglaterra. Os ingleses, poloneses e americanos jogaram na Alemanha. Os americanos jogaram no Japão. A pesquisa deste jornalista do <i>Washington Post</i> e da <i>New Yorker</i> fala principalmente sobre o que os americanos fizeram. E de como as bombas levaram à rendição dos japoneses.</p><p>Pelo protagonismo, é também uma biografia de Curtis LeMay, coadjuvada por Haywood Hansell. O primeiro foi um piloto destemido, que na Segunda Guerra Mundial comandou o desastroso bombardeio de Schweinfurt e Regensburg, em uma tática corajosa e suicida que levou à perda de dezenas de aeronaves e centenas de vidas, sem alcançar o resultado pretendido em terra.</p><p>O segundo liderou um processo de bombardeio de precisão em uma época em que <i>precisão</i> era um produto indisponível no mercado - e que por isso fracassou.</p><p>Acima de tudo, o livro enfileira uma sequência de tentativas e uma sucessão de fracassos, com muita gente morrendo, de uma forma ou de outra. </p><p>Nesta atividade, não esqueçamos, morrer era uma coisa tão banal (tanto para quem era atacado como para quem atacava) que o 367<u>o</u> Esquadrão de Bombas tinha uma placa no dormitório escrita "Lar da 367<u>a</u> Força Aérea dos Pratos de Barro".</p><p>Hoje os aviadores não morrem mais. Mísseis são disparados à distância e teleguiados. Aeroplanos conduzidos por controle remoto matam quem está embaixo, sem ter ninguém para morrer em cima. Mas a mais precisa das bombas continua matando a esmo, quando jogada sobre cidades.</p><p>Neste caso, o efeito colateral de qualquer bomba é sempre a morte da população civil.</p><p>Oitenta anos depois dos bombardeios sobre a Europa e sobre o Japão, as bombas permanecem o produto mais letal do supermercado bélico. A precisão que seus desenvolvedores perseguiam foi substituída pelo conforto de quem as atira. Em alguns casos, dispará-las é como passar o código de barras do destinatário; em outros, é como jogar um piano da janela de um arranha-céu sobre os transeuntes de uma rua movimentada.</p><p>Hoje quem comanda o <i>joystick</i> está de boa, ao contrário dos tempos "primitivos" que o livro aborda.</p><p>A obra oferece uma leitura rápida, com curiosidades e fatos interessantes, em uma construção oportuna. E, numa época em que, há poucos meses, <i>patriotas</i> fizeram contatos com extraterrestres acoplando celulares na cabeça, onde mais você saberia que nos anos 40 houve uma seita nos arredores de Chicago chamada <i>Seekers</i>, liderada por Dorothy Martin, "uma mulher que alegava manter contato com um grupo de alienígenas que ela chamava de Guardiões"?</p><p>Gladwell nos conta que, segundo Dorothy, "esses Guardiões diziam que o mundo seria destruído por um dilúvio no dia 21 de dezembro de 1954". Mas alertava que sua galera seria poupada, pois "alguns dias antes do apocalipse, ela e seus seguidores seriam resgatados por um disco voador, que aterrissaria em seu quintal".</p><p>Não rolou. Os ETs não vieram. Nem em 1954, nem em 2023. Nossos contemporâneos continuam se matando. Vamos ter que nos contentar com os humanos mesmo para tomar conta dessa joça.</p><p>Editora Sextante, 205 páginas | Primeira edição (2021) | Tradução Carolina Simmer | Copyright 2021</p><p>Título original: <i>The Bomber Mafia</i></p></div></div></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-27701980021542374722023-10-07T09:00:00.004-03:002023-10-31T08:39:00.964-03:00"Churchill", por R.H. Kiernan<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOkf2P7OSd1BxbglVshC9nqyu1PZ4KsbLUZqe9HITEuqUz7G5n7pkCqvyzKsZ4Rvrn3yBVBXGYD47Zk3RcBxJ_aYIZj9n0Nz_3UIwHIB2A2O3VjJmlPW0MTTOwuVUayI9Fv70ucsy0C7kZfN6V_O7Rr1xslaX5ugrf8OZ5-gQ7y2BVVDYZn6ZkE06u/s1600/Churchill%20finest%20hour%20NY%20com%20pop%20up.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1600" height="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOkf2P7OSd1BxbglVshC9nqyu1PZ4KsbLUZqe9HITEuqUz7G5n7pkCqvyzKsZ4Rvrn3yBVBXGYD47Zk3RcBxJ_aYIZj9n0Nz_3UIwHIB2A2O3VjJmlPW0MTTOwuVUayI9Fv70ucsy0C7kZfN6V_O7Rr1xslaX5ugrf8OZ5-gQ7y2BVVDYZn6ZkE06u/w640-h480/Churchill%20finest%20hour%20NY%20com%20pop%20up.jpg" width="640" /></a></div><br />Flanando pelo interior da ilha, alguns anos atrás, entrei numa lojinha que vendia umas boinas e outras bugigangas. Legalzinha. Típico brechó para turistas. Fuçando um cachecol aqui, uma caneca da rainha ali, reparei numa estante nos fundos, meio escondida, com umas três dúzias de livros.<div><br /></div><div>Não resisti, né? Esqueci os briqueabraques e fui até lá. Puxei da prateleira mais alta uma lombadinha estreita, já meio encardida pelo tempo. Nela estava escrito apenas "Churchill", sublinhado pelo nome do autor. Na base vinha o nome da editora. Harrap.<p></p><p>A capa não tinha texto ou ilustração. Uma trivial encadernação antiga, sem as bossas tipográficas de hoje. Abri a edição. Era uma biografia do Churchill, impressa em 1942. Ou seja, dois anos após ele ter se tornado Primeiro-Ministro. E publicada enquanto a guerra seguia a pleno vapor - e indefinida. </p><p>"Uau", pensei, "que achado". Temi que fosse me custar os olhos da cara, mas a moça do caixa me surpreendeu: era uma bagatela. Apenas <i>one pound, o</i>u seja, uma libra - meros sete reais.</p><p>Já tive a satisfação de ler várias biografias narrando a longa e tonitruante vida de <i>sir</i> Winston Spencer Churchill. Renomadas. Desde as assinadas pelo seu biógrafo oficial, o <i>depoimentista</i> Martin Gilbert, àquelas mais originais, como a de Andrew Roberts, que privilegiou as tiradas bacanas do biografado. São títulos publicados já no terceiro milênio, apoiados na farta documentação do pós-guerra.</p><p>Não é o caso deste simpático livrinho, lançado no calor dos acontecimentos.</p><p>Ainda assim, o autor é profissa. Seu maior best-seller foi "Lawrence da Arábia". Fez sucesso também com as biografias de Baden Powell, General Smuts e Lloyd George. Reginald Hugh Kiernan era do ramo. E esta bio sobre o Churchill deve ter sido escrita a toque de caixa.</p><p>O texto descamba para a hagiografia. Compreensível. Imagine só. Seu país está em guerra com a Alemanha nazista e uma biografia é lançada sobre o seu primeiro-ministro, o único líder planetário a peitar Hitler. Lógico que a bio está mais para <i>cheerleader</i> do que para um imparcial rei Salomão.</p><p>Dito isto, entretanto, há que se olhar para a preciosidade que é a edição. Podemos até considerar que títulos como este integravam diretamente o esforço de guerra. Estimulavam a resiliência do povo inglês. Como estamos carecas de saber, a impavidez da população londrina durante os bombardeios diários daquela que foi chamada a <i>Batalha da Inglaterra</i> é tida até hoje como fator determinante para a vitória aliada, em um momento crítico do conflito.</p><p>Assim, a publicação é quase uma peça de resistência. Falo sobre isso mais à frente.</p><p>Embora o texto de Kiernan seja sumamente conciso, as principais passagens da movimentada juventude de Winston estão todas ali. Dos combates em que esteve envolvido à sua precoce e animada carreira de escritor e correspondente de guerra (com direito a uma foto sua, altivo, como prisioneiro dos <i>boers</i>).</p><p>Nada ficou de fora, nem sua acrobática participação na política inglesa, pulando entre<i> tories</i> e <i>whigs</i> (Churchill cometeu a proeza de iniciar a carreira política como conservador, mudar para o partido liberal e depois voltar para os conservadores - o que seria o funeral eleitoral de qualquer sujeito que não fosse Churchill). Essa volubilidade é tratada com generosa complacência pelo autor. </p><p>Sua ascensão ao governo inglês e sua participação na Primeira Guerra Mundial são esmiuçadas. Já a conflagrada performance da Marinha britânica no ataque ao estreito turco de Dardanellos, alvo constante de polêmica, é tirada da conta de Churchill.</p><p>O fato é até hoje controvertido; como quem o debate geralmente o faz de forma passional, ou porque abomina ou porque idolatra Winston (vide o idiota do Patrick Buchanan, pseudo-historiador, cujo livro, "Churchill, Hitler e a guerra desnecessária" abordei no blog em março último), é perda de tempo nos ocuparmos desta <i>thread</i> aqui.</p><p>O que importa é que a fracassada ação naval na Península de Gallipoli foi um divisor de águas no avanço meteórico de Churchill, a partir daí relegado a funções de menor status e influência nos rumos da guerra - e algumas destas "funções" foram quase suicidas. Por escolha própria.</p><p>Mas antes vale frisar que, defenestrado do comando da Marinha, teve seus méritos reconhecidos diretamente por um dos seus principais antagonistas, o Secretário de Estado de Guerra Horatio Kitchener - um militarista adepto da conscrição obrigatória: "There is one thing at least they can never take from you. When the War began you had the Fleet ready".</p><p>Houve outras coisas que ninguém pôde tirar de Churchill - como a coragem espalhafatosa. Aos 41 anos, em plena Primeira Guerra Mundial (a maior carnificina de todos os tempos), desempregado, já gordo e careca, Winston resolveu continuar lutando contra os alemães... no front!</p><p>Pediu, e levou, a patente de major. Ao invés de se refestelar na retaguarda, foi para as trincheiras comer lama, onde, diz a lenda (e o livro também), ele por duas vezes mal havia saído do seu buraco quando o abrigo em que estava foi reduzido a cinzas por uma bomba. Fato é que Winston sempre procurou o perigo - o perigo é que não o achava na hora certa.</p><p>(Lembrando que, entusiasta da aviação como arma de guerra, não só incentivou o governo a investir numa esquadrilha pioneira, como se tornou, ele próprio, piloto; após um pouso acidentado, a família e o próprio governo o dissuadiram de pilotar novamente.)</p><p>Não foi a passeio para a linha de frente. Comandou ataque de tropas no meio da madrugada - para raiva da soldadesca - contra as trincheiras alemãs, desenvolveu táticas inovadoras de combate e participou da concepção e do desenvolvimento do tanque de guerra. Como diz Kiernan, "by February, 1916, 'Big Willie', the father of all tanks, was evolved, and passed its tests. Churchill was, therefore, one of the originators of the greatest weapon of modern land-warfare".</p><p>Bem, os tanques se tornaram mesmo uma arma decisiva na Segunda Guerra. Mas vale ressaltar que o autor, escrevendo em 1942, os considerava o estado da arte da tecnologia bélica e nem de longe imaginava o que viria a ser a bomba atômica, "inaugurada" três anos depois.</p><p>(Como você pode constatar, não vou me arvorar a tradutor aqui. Quando eu achar válido reproduzir alguma passagem do livro, vou lançar em inglês mesmo. Na maior parte das vezes, serão aspas do próprio Churchill. As palavras que ele escolhe são tão ou mais importantes do que seu significado.)</p><p>Após o fim da Primeira Guerra, Churchill retomou parte do seu protagonismo no governo. Devolveu de volta para casa cem mil alemães prisioneiros de guerra e determinou a prestação de ajuda humanitária à derrotada Alemanha. No outro extremo, frente à Revolução bolchevique, se tornou um crítico ativo do comunismo. Dois anos depois, chegou mesmo a propor uma união tríplice entre Inglaterra, França e Alemanha para, nas palavras do autor, "salvar" a Rússia do comunismo.</p><p>Ainda que a edição tivesse sido lançada no auge da Segunda Guerra Mundial, interessante notar que o autor destacava o temperamento conciliatório de Churchill em tempos de paz, recordando o quanto ele havia sido concessivo com o inimigo.</p><p>"In 1941 Germany was the ruthless foe; yet to her Churchill had shown only magnanimity in 1918", destacou Kiernan, acrescentando que "always he had believed in fighting a war energetically and then in displaying good will in the peacemaking".</p><p>Ou seja, a carapuça de Versailles não caía bem em Churchill. Se as duras condições do tratado foram combustível para o surgimento do revanchismo populista na Alemanha, não teve a anuência do futuro primeiro-ministro. Ele conhecia bem os alemães. Até demais.</p><p>No fim da década de 20 Churchill tinha perdido espaço e relevância na política inglesa. Não por falta de atributos; e sim por excesso deles. Sua presença era uma constante ameaça aos desafetos; sua sombra obumbrava os parceiros de partido; seu temperamento era alfa +; sua verve era ferina.</p><p>E os ingleses tinham plena noção do poder demolidor da oratória de Churchill (que, muitos disseram mais tarde, venceu a guerra armado apenas do idioma inglês). Ele se valia do seu humor cáustico e certeiro contra tudo e contra todos.</p><p>Certa-feita, no Parlamento, reclamou que quando criança seus pais não o levaram ao <i>Barnum's Circus</i> para ver o maravilhoso homem sem ossos - julgaram que a experiência seria muito forte para ele. Então, se referindo impiedosamente ao primeiro-ministro Ransay Mac Donald, tido por fraco e "sem espinha", Churchill afirmou que "my parents judged that the spetacle would be too revolting and demoralizing for my youthful eyes and I have waited fifty years to see the <i>Boneless Wonder</i>".</p><p>O desossado Mac Donald foi fundador do Partido Trabalhista e foi três vezes primeiro-ministro inglês.</p><p>Convalescendo de uma cirurgia de retirada do apêndice, Churchill não se saiu bem nas eleições seguintes. Seu partido também naufragou. "In the twinkling of an eye", comentou, "I found myself without an office, without a seat, without a Party, and without an appendix".</p><p>A edição é rica na reprodução das advertências de Churchill sobre o perigo que uma Alemanha em dissimulado, mas crescente, rearmamento representava para a paz europeia. O próprio autor ressalta que, ainda no início da década de 30, "at that time the rearmament of Germany and the preparations for building a new war-machine were already in train". </p><p>A precoce (e clandestina) reorganização da Wehrmacht é tida até hoje como se ignorada, à época. Kiernan mostra que não, descrevendo que "a large General Staff was being created contrary to treaty, the factories were being sedulously prepared for war-production, and an Air Force was being developed under the guise of civil aviation and 'air sport".</p><p>A propósito, o cinismo deste "air sport" me faz lembrar dos CACs, o certificado de armamento para caçador que o governo brasileiro autorizou a rodo. De posse de um, qualquer morador de Madureira pode comprar legalmente uns vinte fuzis pra caçar rinoceronte na esquina. Ê Brasilzão...</p><p>Mas, voltando à Europa, no fim de 1934, apenas um ano e meio após a chegada de Hitler ao poder, um Winston Churchill em desprestígio e no ocaso alertava: "Beware", frisou, "Germany is a country fertile in military surprises... It is never advisable to underrate the military qualities of this remarkable and gifted people, nor to underrate the dangers that may be brought against us".</p><p>Pois assim fizeram os ingleses e os europeus. Fizeram vista grossa aos indícios gritantes do que estava por vir. Com as anexações realizadas pelos nazistas em 1938 - a Áustria e os Sudetos -, Chamberlain voltou de um encontro com Hitler em Munique comemorando um acordo de paz, obtido à custa de muitas concessões; trato que, para Churchill, não valia uma libra furada. </p><p>"That acceptance of Hitler's terms involved the prostration of Europe before the Nazi power, of which the fullest advantage will certainly be taken", asseverou Winston, para desgosto dos políticos ingleses, que estavam jogando purpurina no "vitorioso" Chamberlain.</p><p>Reproduzo <i>ipsis literis</i> estas passagens aqui porque acho que a parte mais valiosa desta singela biografia é justamente nos permitir testemunhar o momento histórico. O livro não se baseia no relato dos vencedores, nem faz eco à narrativa dominante; ele foi publicado enquanto ninguém tinha vencido e as bombas ainda caíam na cabeça das pessoas (inclusive na dos leitores).</p><p>E também não esqueça que, quando este livro chegou às livrarias, mais da metade dos sessenta milhões de pessoas que viriam a morrer na Segunda Guerra Mundial ainda estava viva.</p><p>Com a invasão da Tcheco-Eslováquia, em março de 1939, as advertências que Winston Churchill vinha fazendo desde 1932 não precisaram ser repetidas. De repente, ficou claro que Adolf Hitler não iria se contentar com nada que não fosse <i>tudo</i> onde ele pudesse por as botas e ter sob mira. Assim, antes desprezado, agora Churchill era o presciente, o homem que sempre soube o perigo. </p><p>Para exemplificar a relação entre Churchill e o povo inglês, Kiernan resgasta um dito do norte-americano Mark Twain: "When I was fourteen I thought my father so ignorant I could hardly bear to have the old man around. But when I got to be twenty-one I was astonished to find how much he seemed to have learned in seven years".</p><p>Pois é...</p><p>A invasão da Polônia lançou a Grã-Bretanha na guerra - compromisso assumido com os poloneses (o qual Hitler apostava que ela não honraria). Era um estado de guerra retórico, porém. Em 1940, com a ocupação da Dinamarca e a invasão da Noruega, a passividade inglesa se tornara crítica. </p><p>Faltava pulso. Chamberlain era um premier fraco e sem autoridade. Havia lutado com incompetente honestidade pela paz, mas não possuía a legitimidade necessária para conduzir o país na guerra.</p><p>O Parlamento, que antes apoiara Chamberlain incondicionalmente, agora o atacava. Convocado ao gabinete por sua <i>expertise</i> militar (para desgosto de muitos), o até então indesejado Churchill passou a integrar o governo. Orientava o primeiro-ministro. Encarnava o espírito britânico de insubmissão. Mas - vale realçar - sem a arrogância de quem diz "eu avisei..."</p><p>Kiernan destaca esse ponto, quando assinala que "Churchill stood sturdily by the Prime Minister, explaining the tactical and strategic necessities that had decided the Government's actions and vividly describing the sea-fighting".</p><p>Provavelmente reproduzindo um documento publicado à época, ou fazendo transcrição dos jornais, ele abre aspas para uma fala de Churchill aos críticos ainda remanescentes: "Let pre-War feuds die. Forget your personal quarrels. Keep your hatred for the common enemy and ignore Party interests. Harness all your energies. Let the whole ability and forces of the nation be hurled into the struggle".</p><p>Ele, mais que ninguém, sabia do que falava. O inimigo era forte, agressivo e impiedoso.</p><p>"At no time in the last war were we in greater peril than we are now", alertou.</p><p>A esta altura, com a biografia já praticamente no fim, o autor destaca que Chamberlain renuncia ao governo e que somente um nome era concebível para o cargo. Quase quarenta anos após ter chegado ao Parlamento britânico, Winston Churchill - enfim - se tornou seu Primeiro-Ministro.</p><p>E em que circunstâncias. O cenário da Segunda Guerra Mundial que havia tido início oito meses antes se tornaria radicalmente outro em exíguas seis semanas. Churchill assumiu em meio à <i>phony war</i>, gracejo usual à época (termo não citado no livro, e que depois se tornou recorrente). Era o que chamaríamos de "guerra de mentira". É que os ingleses haviam desembarcado na França, mas até então só atacavam garrafas de vinho e bandejas de queijo. Nada de combate.</p><p>Entretanto, como disse há pouco, em mínimas seis semanas tudo mudou. O renomado exército francês capitulou. O norte da África foi tomado pela Wehrmacht (que jamais é chamada por seu título no livro, como hoje é usual). A Itália teve sua posição no Mediterrâneo fortalecida. </p><p>Caraca. Os boches estão invadindo geral e faltam só oito páginas para o livro acabar.</p><p>É neste instante que acontece todo aquele drama que filmes recentes vêm repisando, a heroica e quase inacreditável retirada de 300.000 soldados das praias de Dunkirk, na França, para desembarcarem em segurança no solo britânico.</p><p>O livro reproduz também o discurso feito por Churchill no rádio, que foi imortalizado e permanece tendo seus trechos repetidos, em matérias, filmes, sites e redes sociais. É aquele que termina com o até hoje antológico "This was their finest hour".</p><p>A esta altura, só havia um país no mundo contra a Alemanha nazista: a Inglaterra. Todos os demais eram submissos. Alguns periféricos eram omissos, que se auto-denominavam "neutros" (como a Suiça); outros eram convenientemente aliados, mesmo que de segunda classe. E um homem estava à frente desta isolada e solitária resistência inglesa: Winston Churchill.</p><p>"Standing alone in Europe, Britain under her great leader had to take extraordinary measures for defence, developing the Home Guard, setting up special regulations to deal with offences of military importance in invasion areas, and taking wide precautions against Fifth-Column activities", esclarece Kiernan. </p><p>A propósito, este medo da invasão pelos teutões motivou diversos filmes do período, hoje hilários, em que caipiras ingleses saem de carabina atrás de alemães malocados no celeiro. Apesar do pânico, os nazis nunca desembarcaram na ilha (mas era parte do plano, isso é fato).</p><p>A sensação, entretanto, de ser o único país do planeta em oposição a Hitler não devia ser nada confortável. E também - nos cabe refletir agora -, se não fosse esta resistência solitária, os nazistas teriam pego a Europa toda na mão grande. E aí iria ficar difícil para os Estados Unidos, no futuro, reverterem a situação.</p><p>(Lembrando que por esta época havia entre os norte-americanos uma forte corrente de apoio aos nazis. Não faltavam nazistas e racistas por lá. O "Complô contra a América", de Phillip Roth, postado há muitos anos aqui no blog, traz um pouco dessa história.)</p><p>E uma passagem desmerecedora para todos os envolvidos foi a postura da França de Vichy, de ex-aliada à capacho subserviente à Alemanha. Com a frota francesa atracada no Mediterrâneo e a posição ambígua do governo francês (se rendendo em terra aos nazistas, mas alegando que sua frota no mar permaneceria neutra), criou-se um impasse de difícil solução: ou aceitava-se a estorinha de que os nazistas não usariam os navios franceses ou só restava aos britânicos afundá-los.</p><p>A Inglaterra instou para que a frota francesa se bandeasse para os portos ingleses; em vão. Diante da recusa, Churchill ordenou que a frota fosse posta a pique. Com os franceses dentro. Este doloroso fato histórico é pouco revisitado. Natural. Isso não dá filme de Hollywood. Não há mocinhos. </p><p>"This is no time for weakness", afirmou Winston, de forma pesarosa e assumindo a responsabilidade pela matança. "It is the supreme hour to which we have been called".</p><p>Em 4 de julho ele compareceu ao Parlamento para expor as motivações que o levaram a afundar os navios franceses. "I leave the judgement of our action, with confidence, to Parliament. I leave it to the nation, and I leave it to the United States. I leave it to the world and history".</p><p>Deixou mesmo. Mas nada garantia que seria assim. Os ingleses passaram perto da derrota - e aí a história seria contada de outra forma. Não só no hemisfério norte; aqui também. Em 1940 a Argentina estava totalmente atrelada à Alemanha. O Brasil tinha o Sul polvilhado de células nazistas e um governo abertamente inclinado a apoiar os alemães. A narrativa seria muito diferente.</p><p>(Até Petrópolis teve um forte núcleo de apoio ao nazismo, como recente exposição realizada no Museu Imperial demonstrou.)</p><p>"At the end of August, 1940, Churchill could review what had happened outside and within Britain", relata Kiernan, que relaciona a extensão do avanço nazista. "Belgium and Holland have been overwhelmed; France defeated, and with all her great stores of material and her arsenals in German hands, had completely deserted Britain; the Western seabord from the North Cape to Spain, held by the Germans, gave ports and airfields from which attack or invasion could be launched".</p><p>As previsões eram as mais sombrias. "Bombers, escorted by fighting aircraft, could reach Britain from many directions in a few minutes, and the German Air Force was numerically stronger".</p><p>A resistência britânica esteve por um triz. A partir de agosto de 1940 foi travada a <i>Batalha da Inglaterra</i> (à qual me referi no início), onde os alemães investiram no bombardeio maciço das cidades inglesas. Os céus do Canal da Mancha se tornaram o campo de uma disputa infernal.</p><p>Os dois times envolvidos eram a RAF, a aviação inglesa, contra a Luftwaffe, a aviação alemã - em número muito superior de aeronaves e contando com o fator surpresa. A contenda começava quando os boches chegavam despejando suas bombas.</p><p>Vale contextualizar: com a Europa de joelhos em menos de um ano de guerra, Hitler apostou que a destruição de Londres e outra meia-dúzia de grandes cidades britânicas seria suficiente para levar a Inglaterra à rendição. O clamor popular, diante de casas, ruas, colégios e instituições em chamas, seria suficiente para forçar o teimoso Churchill a jogar a toalha.</p><p>Porém, ao contrário do que esperavam os alemães, o povo inglês se revelou um osso duro de roer - e reagiu com fleugma tipicamente britânica ao bombardeio diário. Marcavam o chá e reuniões de trabalho para "depois do bombardeio". O livro é um bom registro do momento.</p><p>Após superado o período em que a Grã-Bretanha esteve mais vulnerável, Churchill, como praxe, falou pelo rádio. O velho <i>bulldog</i> tinha o dom de provocar o brio e elevar a confiança da população. Não amenizava os fatos e convocava o cidadão para o sacrifício coletivo.</p><p>(Nunca é demais lembrar que neste momento o cotidiano do povo civil eram os incêndios, o bombardeio e o racionamento.)</p><p>"If we had been confronted at the beginning of May with such a prospect", disse Churchill, "it would have seemed incredible that at the end of a period of horror and disaster, or at this point in a period of horror and disaster, we should stand erect, sure of ourselves, masters of our fate, and with the conviction of final victory burning unquenchable in our hearts. Few would have believed we could survive; none would have believed that we should to-day not only feel stronger but should actually be stronger than we have ever been before."</p><p>Eu disse lá em cima que o livro estava terminando. E estava mesmo. Não faltam nem meia dúzia de páginas, mas cada parágrafo exorta o cidadão inglês para ao esforço de guerra.</p><p>E, como parte da tarefa, exalta repetidamente o tamanho da façanha inglesa. Como de hábito, Kiernan dá voz a Churchill: "The resistance of the British Empire to Nazidom kindled hope in the hearts of millions of dowtrodden and despairing men and women throughout Europe and the world."</p><p>Eu estou deliberadamente reforçando o foco na Batalha da Inglaterra porque me parece que, aqui, não damos a devida dimensão a este momento do conflito. Ele acaba ofuscado por Stalingrado, pela guerra no deserto, pelo Dia D, pela libertação da França ou pela tomada de Berlim.</p><p>Mas é provável que nenhum destes eventos tivesse acontecido se a Inglaterra tivesse perdido esta batalha. Acaba passando batido que houve um instante em que o último bastião da resistência a Hitler na Europa esteve por um fiapo. Foi esta batalha. O bombardeio de Londres. Quando, após o acachapante sucesso da <i>blitzkrieg</i>, em onze meses a Alemanha tinha todo o continente prostado a seus pés - exceto os ingleses.</p><p>Então o registro feito por esta edição da Harrap, escrita poucos meses após os ataques, é precioso. E do qual me pauto em citar alguns trechos emblemáticos, até mesmo para recorrer mais facilmente às principais passagens do livro - para quando eu e você quisermos resgatar um momento ou outro.</p><p>"Churchill expected the aerial attack to grow more intense", assinala Kiernan. "Hitler, he said, had boasted so much of his Air Force and of the number of British aircraf destroyed that he would continue his assault as long as he had strength to do so."</p><p>"Up to the end of August the RAF had smashed every attack in daylight on England", destaca o autor. "If Hitler could win the daylight mastery of the air, invasion would follow", afirma. Mas a força aérea britânica (com o inestimável auxílio de uma brigada polonesa de pilotos, o Esquadrão 303 - o <i>Polskie Sily Zbrojnie Na Zachodzie</i>, acrescento eu) dizimou os chucrutes no ar.</p><p>O livro traz a contabilidade do combate. Em agosto, os alemães perderam 562 aviões, contra 219 ingleses (com 132 pilotos tendo sido salvos). Em setembro, os alemães perderam 885 aviões - sendo 185 deles apenas em um dia, 15 de setembro, em um ataque nazista que reuniu 500 aeronaves bombardeando Londres.</p><p>Em noventa dias, os alemães perderam 2.375 aviões. As perdas humanas dos nazistas foram na proporção de dez para um.</p><p>Nem mesmo a melhor máquina de guerra do mundo estava preparada para tolerar este nível de perdas. Kiernan observa que "the skill, courage, and devotion of the airmen were turning the tide of war". E destaca que "outnumbered and constantly in action, they smashed the great Luftwaff formations again and again".</p><p>Foi sobre esta performance que Churchill disse as palavras que acabaram eternizadas: "Never in the field of human conflict was so much owed by so many to so few". Bom nisso, o tal do Churchill.</p><p>Na prática, a biografia é interrompida para reportar a situação de guerra. E acaba por aí, de repente, como não poderia ser diferente - já que nem Churchill, nem a guerra, tinham acabado. </p><p>E eu vou terminar esse post do mesmo jeito. Abrindo aspas para Winston Spencer Churchill.</p><p>"No one can predict, no one can even imagine, how this terrible war against German and Nazi aggression will run its course or how far it will spread or how long it will last. Long, dark months of trials and tribulations lie before us. Not only great dangers but many more misfortunes, many shortcomings, many mistakes, many disappointments will surely be our lot."</p><p>"Death and sorrow will be the companions of our journey; hardship our garment; constancy and valour our only shield. We must to be united, we must to be undaunted, we must be inflexible. Our qualities and deeds must burn and glow through the gloom of Europe until they become the veritable beacon of its salvation."</p><p>Essa guerra foi o inferno. Ainda bem que a gente venceu.</p><p>George G. Harrap & Company Ltd, 212 páginas</p><p><i>P.S.: Escarafunchei no google, mas não consegui descobrir a data da primeira publicação do livro. Meu exemplar é uma reimpressão, datada de 1942. Acredito que o texto tenha sido escrito ao longo de 1941.</i></p></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-43818467444422366022023-09-14T18:03:00.007-03:002024-03-26T07:59:32.170-03:00"O homem que aprendeu o Brasil", por Ana Cecilia Impellizieri Martins<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBxEL3hvrHhmEA9QUJsg0KAH-sxhSS3Nd9npPCVj3VzxkCS_XjpB5tFDiEbSeOvMK3a9OWL_dcpqPx1FWVjuFzeTjRnAItl6CZgsczgCbqzZZi49DBYoc2iFEzyVqGDNCQNAX-D5Krt7lI0v0EhnXI-pkwjoQvy0DKHqcnnx1VQP646lub0fHOU1E7UwA/s1400/o%20homem%20que%20aprendeu%20o%20Brasil.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1050" data-original-width="1400" height="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBxEL3hvrHhmEA9QUJsg0KAH-sxhSS3Nd9npPCVj3VzxkCS_XjpB5tFDiEbSeOvMK3a9OWL_dcpqPx1FWVjuFzeTjRnAItl6CZgsczgCbqzZZi49DBYoc2iFEzyVqGDNCQNAX-D5Krt7lI0v0EhnXI-pkwjoQvy0DKHqcnnx1VQP646lub0fHOU1E7UwA/w640-h480/o%20homem%20que%20aprendeu%20o%20Brasil.jpg" width="640" /></a></div><br />O professor, tradutor, ensaísta e escritor brasileiro Paulo Rónai nasceu húngaro em Budapeste. Uma terra pátria que lhe foi hostil, contaminada por séculos de conflitos e preconceitos. Se houvesse permanecido, o país natal lhe mataria. Paulo fugiu. No Brasil se tornou imortal.<p></p><p>Aqui Paulo Rónai foi grande por inúmeras razões. Mas a catástrofe da qual escapou por um triz foi o cemitério de milhões de outros, também grandes - humanistas, intelectuais, cientistas, pensadores. Como, por exemplo, ignorar o tamanho do tcheco Petr Ginz, no país vizinho, artista brilhante, assassinado adolescente, aos 14 anos em Therensienstadt, por ser judeu? Foi assim. Todos mortos. </p><p>"O homem que aprendeu o Brasil" esteve entre os poucos que conseguiram construir sua fuga para a sobrevivência. Por isso, vou tirar proveito da preciosa biografia assinada por Ana Impellizieri. Ela narra em detalhes a valente trajetória de Paulo Rónai. Escapou, deixando para trás, sob uma sombra negra, a Europa. E o vulto projetado sobre Paulo era, hoje sabemos em detalhes, o Holocausto.</p><p>A fábrica da morte.</p><p>A Hungria da década de 30, de onde saiu Pál (seu nome de batismo), era um país sem protagonismo. Uma nação sem brilho, frágil e decadente, após a dissolução do Império Austro-Húngaro. Era assim desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Até então cumpria seu papel de agregada da Áustria e capital multi-étnica. O desmembramento largou-a órfã. Empobrecida.</p><p>Com o início da Segunda Guerra Mundial, o governo húngaro resolveu atrelar o país à Alemanha de Hitler. E, entre outros desvios morais, adotou, à húngara, a política racial nazista.</p><p>Em cada um dos países aliados (ou invadido pelos alemães) o protocolo de tratamento aos judeus tinha suas peculiaridades. Por intermédio de Paulo - um jovem estudioso, literato e professor de idiomas -, flagramos o destino reservado lá aos judeus húngaros, quando a guerra irrompeu.</p><p>A enorme comunidade judaica de Budapeste não foi segregada pela força de leis étnicas rigorosas, como em Berlim, nem cercada, como na guetificação em Varsóvia. Mas foi coagida e submetida a restrições legais e à detenção em um campo de concentração, em uma ilha no Danúbio.</p><p>(Falando assim parece idílico, não?<i> Uma ilha no Danúbio</i> soa bem romântico. Só que não.)</p><p>Vale frisar que o campo de Háros-Szigeti, embora rigoroso, não era inumano. Lá, os judeus homens, à exceção dos idosos, eram convocados para um "serviço militar", que se restringia a serviços subordinados à própria administração da prisão e a trabalhos forçados - mover uma montanha de pedras para acolá e depois trazê-las de novo para cá. Pitoresco é que tinham direito a licenças semanais, que autorizavam seu retorno temporário (por 24 ou até mesmo 48 horas) às suas casas.</p><p>Era, como temos no Brasil, uma <i>saidinha</i> - só que lá quem saía não eram criminosos, eram vítimas.</p><p>Era nestes períodos que Paulo avançava em seu projeto de conseguir a documentação necessária para emigrar. Não só precisava da autorização da burocracia húngara, como da aceitação do país de destino e de todos os demais países pelos quais viesse a passar em sua viagem.</p><p>Eu, que - por ignorância - desconheço a fina flor da cultura húngara, vou me valer de novo do vizinho tcheco para fazer um paralelo: Paulo enfrentava as exigências de uma papelada <i>kafkaniana</i> para obter o interminável rol de documentos demandados para um judeu que quisesse dar o fora.</p><p>[Lembrando que 1) a política étnica de genocídio somente seria posta em prática a partir de 1942; e 2) à Hungria, enquanto durou sua condição de aliada, não era imposto o mesmo esquema de prisão, espoliação e expatriação dos judeus para os campos de extermínio na Polônia. Isso só veio depois, no último capítulo da saga genocida de Adolf Eichmann. Essa história já contei aqui no blog.]</p><p>E neste interregno, neste pântano social, Paulo nos assombra com sua fortaleza, equilibrado frente à ameaça potencial de ser morto pelo seu próprio governo e pela recusa dos países do mundo em recebê-lo; sendo ambas, a ameaça e a recusa, derivadas do fato <i>aleatório</i> de ter nascido judeu.</p><p>A capa traz uma foto desconcertante do período, tirada no tal campo de de trabalho. Nela Paulo estava fazendo o que mais gostava: lia. Certamente uma foto posada (eu, tal e qual o professor, tenho essa mania; e a tecnologia já me permitiu centenas de fotos lendo meus livros mundo afora).</p><p>Mas o doce hábito da leitura não era a rotina desfrutada por Paulo na sua sentença de confinamento. Embora, por sua cultura e desembaraço, tenha conquistado nos seis meses de detenção um posto fisicamente menos exigente do que carregar pedras, muitas vezes teve que fazê-lo - e, pior, não raro sob chuva, em pleno inverno húngaro. </p><p>Vendo-o aí, preso pelo regime magiar-nazista por ser judeu, espanta o quanto Paulo foi visionário. Determinado, metódico, jamais abriu mão de cada pequena costura. Encurralado, com a água já na altura do peito, não se permitiu o luxo do desespero. Era de tirar o chapéu, esse Paulo Rónai.</p><p>Atente que, desde muitos anos antes da aliança da Hungria com a Alemanha nazista, Paulo já vinha cerzindo sua aproximação com o Brasil. Utilizou a maior arma (talvez a única) que dispunha: seu talento para a literatura e para os idiomas. Sem conhecer patavina de português, se valeu de um livro de poemas e de um dicionário alemão-português para decifrar a nossa língua. E não parou mais.</p><p>O pau comendo na Europa, Hitler invadindo a Áustria, os Sudetos, a Tchecoslováquia, e Rónai ralando na sua obsessão em conseguir livros do Brasil, traduzi-los e se corresponder com jornais e escritores brasileiros. Se oferecia para publicar os poetas brasileiros em húngaro, e azeitava suas relações, frequentes, com a embaixada brasileira na Hungria e em outros países europeus. </p><p>Chegou mesmo a se tornar professor de francês do embaixador brasileiro.</p><p>Pedrinha a pedrinha, como quem diligentemente calceta uma estrada com pequenos seixos, Paulo foi pavimentando sua (ainda balouçante) ponte para o Brasil. Ana Cecilia Impellizieri, minuciosa, nos relata cada movimento seu naquele jogo de xadrez às cegas.</p><p>Entrementes, para aflição de Paulo, o supracitado confinamento na ilha aconteceu. A boca do funil se estreitava. Enquanto isso, nenhuma de suas muitas combinações gerava o trampolim que precisava. O cerco se fechava, a guerra avançava e a legislação brasileira criada pela ditadura getulista proibia, na prática, o desembarque de judeus no Brasil.</p><p>Haveria tempo? O ano de 1940 chegava a seu fim e Paulo, por mais que temesse a permanência, não tinha ainda como imaginar o fim atroz reservado àqueles que não conseguiriam a fuga.</p><p>Mas havia uma carta na manga. A extensa rede de contatos mantida por Rónai com intelectuais brasileiros, muitos deles ligados ao governo, e também com jornais e editoras, culminou numa carta dirigida ao próprio Getúlio Vargas e, enfim, em um (redentor) convite oficial do governo brasileiro para que o professor húngaro Paulo Rónai viesse ao Brasil. O intuito era professar palestras e engendrar um projeto de futura disseminação da literatura brasileira na Hungria.</p><p>Com o convite tendo chegado à diplomacia brasileira em Paris (a embaixada em Budapeste havia sido desativada), Paulo conseguiu enfim tirar seu passaporte e obter os vistos para sair do país e para entrar no Brasil. E ainda faltavam as autorizações para cruzar os demais países até Portugal...</p><p>Paulo Rónai enfim partiu, deixando para trás os familiares e a noiva, Magda. Era um caminho de mão única. Indesejado, no seu passaporte húngaro estava carimbado: "Sem validade para retorno".</p><p>As tantas amizades, os tantos poemas traduzidos, os livros lidos, as dezenas, centenas de correspondências trocadas, os elos construídos, os relacionamentos sedimentados - o abnegado homem das letras de Budapeste enfim decifrou o enigma para o Eldorado.</p><p>A sua chegada ao Brasil e seus meses - e anos subsequentes - são destrinchados no belo trabalho de Impellizieri. Apesar da rápida (para nós, né) aclimatação e do seu sucesso profissional no país, das conexões importantes que conquistou, nem todos a quem amava Paulo logrou resgatar da Hungria.</p><p>Lá e cá Paulo se manteve à beira do precipício emocional, sempre a um tropeço da queda, da notícia (ou falta delas) de que os seus se perderam. Jamais, porém, esmoreceu. "Trabalho para agradecer o destino", veio a dizer mais tarde. Ele sabia que devia tudo à sua capacidade de tradutor - mas ela de nada serviria sem sua obstinação. </p><p>"Não lhe devo a rigor a própria vida?" credita o próprio Paulo. Foi traduzindo os poetas brasileiros que Rónai lançou sua corda para escapar do abismo. Muito antes de conhecê-los pessoalmente, fez deles colegas, amigos, almas gêmeas. Trabalhou por eles - e eles o salvaram. Primeiro, o próprio Paulo; depois, sua mãe, duas irmãs e os dois cunhados.</p><p>(Com a noiva, casou-se por correspondência, para favorecer as encruadas possibilidades de obter sua entrada no Brasil. Quando conseguiu, era tarde. Os nazistas chegaram antes.)</p><p>Para o pai não houve tempo. Em junho de 1943, foi chamado ao departamento de Censura, por conta de uma carta que recebera dos irmãos, escrita em húngaro. Como país inimigo do Brasil, o idioma magiar era fonte de suspeição. Frente ao diretor, Paulo confirmou a tradução do texto, que narrava a morte do seu pai, Miksa Rónai. O mais doloroso é que, na véspera, como um favor ao funcionário da Censura (que não sabia húngaro), fôra ele próprio quem fizera a tradução oficial da mesma carta. Para não entregar o amigo, teve que simular surpresa - e dor - diante da autoridade.</p><p>A partir de 1946, com o fim da guerra e a chegada da família, Paulo deu um basta nos seus cinco anos residindo em quartos de pensão e alugou uma casa, na então ainda bucólica Ilha do Governador. Enfim.</p><p>Entendo que hoje o nome de Paulo Rónai seja desconhecido por muitos. Pertence a uma outra era, diria mesmo a uma outra cultura - tão diferente é a atual, a nossa, do universo erudito da sua época. Mas, seja lá onde for que você resolva situá-lo, no tempo e no espaço, Rónai foi um ponto fora da curva. A começar pelo domínio que conquistou sobre um idioma tão díspare do seu.</p><p>Do português para o húngaro. Do húngaro para o português. De ambos para o francês. Do latim...</p><p>Paulo Rónai se tornou aqui um mestre da própria ferramenta. Professor de um ofício raro e, muitas vezes, invisível. De enorme riqueza, entretanto. "Traduzir é a melhor forma de ler", ele escreveu. "Traduzir é conviver", definiu o (quase) intraduzível Guimarães Rosa.</p><p>"A tradução, que força uma língua a dobrar-se, acompanhando as curvas de um pensamento estrangeiro, é, mais ou menos, o único meio de comunhão espiritual requintada entre as nações", disse certa vez o poeta húngaro Mihaly Babits.</p><p>O próprio biografado se colocava, modesto, à sombra: "Tradução não é aventura individual da inteligência - embora nela exista, é claro, certa margem para a manifestação do bom ou mau gosto do tradutor".</p><p>Em 1946, com apenas cinco anos no Brasil, publicava resenhas nos jornais sobre os últimos livros de Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meirelles.</p><p>"O livro cuja densa riqueza só se penetra depois de meditado e quase decorado, abala pela esperança de um desiludido; pela largueza do amplexo de um homem de gestos parcos", escreve, sobre "A rosa do povo", de Drummond. "Cada leitor encontrará nela o seu poema que o 'atravessará como uma lâmina".</p><p>"As rápidas transições em que a fantasia, ao léu das associações, pula da das impressões visuais às da lógica, do mar efetivo ao mar ideal, conferem ao poema uma complexidade singular", analisa, em "Mar absoluto e outros poemas", de Cecília, afirmando que "o mar tangível e verdadeiro está para o seu 'mar absoluto' como os objetos da realidade para as 'ideias' de Platão".</p><p>Eu, que - desprovido de cultura, talento e vocação - me arvoro aqui a escrever sobre o livro alheio, muitas vezes me perco, fazendo do simples, complicado. Melhor seguir o professor, que, definindo os seus textos, ensinava também como abordava uma obra: "São apenas depoimentos de um leitor acerca de leituras que lhe deram prazer - de um leitor que escreve para comunicar a terceiros o próprio entusiasmo e talvez, mais ainda, para melhor compreender o que leu".</p><p>Ah, sim. Mas do que ele entende e escreve - ao que nós entendemos e escrevemos, há um oceano Atlântico de distância...</p><p>Apesar do grau de sofisticação com que era capaz de mergulhar nas filigranas do idioma de Camões, tinha noção dos seus limites, ao publicar suas impressões sobre "Sagarana", de Guimarães Rosa:</p><p>"O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra", reconhece. "Deve aproximar-se dela de um outro lado para penetrar-lhe a importância literária".</p><p>Mas foi este leitor "vindo de fora" que se tornou o maior especialista na linguagem ímpar de Guimarães Rosa. Virou seu revisor, seu prefaciador, e, após a morte de Rosa, seu organizador e responsável pela obra. Em vida, a admiração mútua se transfigurou em amizade - com cada um sabendo muito bem quão valioso era o outro.</p><p>"Um tradutor, no pleno senso, mestre nesse arte minuciosa e estreita, seu comprovado cultor, seu modesto estudioso", disse Guimarães Rosa sobre Paulo Rónai, prefaciando sua "Antologia do conto húngaro". E foi além, nomeando-o um "escritor de válida formação cultural europeia, humanista, latinista, romanista, erudito em literatura comparada".</p><p>Wilson Martins escreveu sobre Ronái no Suplemento Literário de <i>O Estado de S.Paulo</i>: "O sr. Paulo Rónai, intelectual húngaro, escolheu, simultaneamente, a liberdade e o Brasil. Eu, de minha parte, se me fosse dado escolher um compatriota, teria escolhido o sr. Paulo Rónai".</p><p>Carlos Drummond de Andrade não deixou por menos. Cantou o personagem em verso e prosa: </p><p>"O rude barro/ - Paulo Rónai, conta fagueiro/ Outra façanha dele eu vi:/ Aprendeu a ser brasileiro."</p><p>"Sinto-me em apuros para falar de Rónai a quem porventura não o conheça", escreveu o poeta, mais tarde, quando Paulo completava vinte anos no Brasil. "Que defeito posso atribuir-lhe, para tornar menos escandalosas as suas qualidades? É um sábio e não blasona a sua sabedoria; pelo contrário. Não tem inveja do talento alheio, proclama esse talento sempre que pode. Vive atento ao serviço dos amigos. Trabalha como um monstro."</p><p>Exemplos desse trabalho não faltam. Transbordam.</p><p>O até hoje popularíssimo Aurélio Buarque de Holanda (que virou sinônimo de dicionário, como gilete virou sinônimo de lâmina de barbear) formou uma dupla com Paulo Rónai no estilo Pelé & Coutinho. Entre muitas outras aventuras, foram autores, em parceria, da série "Mar de histórias", com tradução de contos de todos os idiomas possíveis, até hoje republicados.</p><p>Traduziam, às vezes, a quatro mãos, quase sempre do original (só em idiomas mais "intrincados", como o egípcio, tinham que se valer de uma tradução já existente, geralmente uma em francês).</p><p>Aurélio sabia muito bem ao lado de quem estava. Sobre Paulo, disse que ele "tem a arte de ser profundo parecendo apenas deslizar sobre os assuntos. É sutil sem afetação; eu o diria distraidamente arguto. Um clarificador por excelência. Um iluminador".</p><p>Buarque de Holanda dissecou os mecanismos e virtudes que faziam dos ensaios literários de Rónai um material tão denso. "Paulo fundamenta sua crítica com base em sua experiência pessoal da leitura. Leitor equipado, professor de línguas, doutor em filologia, e especialista em literatura francesa, latina e húngara, é de seu próprio repertório que o dedicado leitor extrai suas análises, desinteressado de qualquer proposição dogmática. Não se preocupa em fundamentar argumentos apoiando-se em teorias, mas em sua própria leitura, instigada por uma fascinante capacidade de esmiuçar o texto, reconhecendo referências, desvendando segredos (léxicos, semânticos), apontando seus méritos literários".</p><p>Apesar de toda fama e prestígio trazidos pela sua rotina de tradutor e articulista (publicava em diversos jornais desde a sua chegada ao Brasil), Paulo Rónai se afirmava antes de tudo um professor. E deu aulas de francês e latim, nos principais colégios do Rio de Janeiro, até se aposentar. À parte as viagens, passou a alternar seus dias entre o apartamento de três quartos em Copacabana e seu sítio em Nova Friburgo, carinhosa e brejeiramente chamado "Pois é..."</p><p>A expressão escolhida estava originariamente em francês - <i>Quand même</i>. Mas Paulo achou o fim da picada se valer do francês para batizar seu sítio brasileiro. Então ficou <i>Pois É</i>, como quem diz "apesar de tudo", "pra você ver", "quem diria" e tantas outras equivalências imprecisas.</p><p>Pois é.</p><p>Não sei porque cargas dágua - vai ver porque o nome oficial do autor, Ferenc Molnár (née Neumann), ou era feio ou esquisito demais - trago desde a infância o nome de Paulo Rónai como alguém especialmente próximo. Aliás, sei sim - era ele quem assinava a tradução de "Os meninos da rua Paulo". Nos tornamos emocionalmente íntimos (sem que ele soubesse).</p><p>O livro, a rua, os personagens. Desde então - e põe tempo nisso - Paulo passou a morar na (minha) memória afetiva, e a gente sabe que quem aluga espaço ali não é despejado jamais (donde, me perdoem, eu tinha que fazer essa digressão).</p><p>Foi assim. Em seus últimos anos, o sítio era o seu retiro, mas o mundo lhe permanecia aberto. Se sua vida como cidadão da Europa ficou no passado, ele depois a visitou, já intelectual ilustre, inúmeras vezes. Como também aos Estados Unidos. Nunca como turista; mas como professor convidado, palestrante, explicador do Brasil e dos seus maiores autores.</p><p>Aqui conheceu sua nova esposa, também europeia, italiana, também fugitiva dos boches. E tiveram duas filhas, "brasileirinhas", como ele dizia, e invejava a facilidade delas com o idioma (logo quem).</p><p>Leio a Cora, filha do Paulo, toda semana. E vou cometer uns versos para fazer uma confissão.</p><p><i>Da Cora/ </i><i>não invejo os gatos/ </i><i>nem as viagens/ </i><i>nem a herança magiar</i></p><p><i>dos Rónai;/ </i><i>da Cora </i><i>eu invejo o pai.</i></p><p>Desculpaí, Cora. É inveja boa. Reverência, admiração, perplexidade. Tipo assim.</p><p>Editora Todavia, 386 páginas | 1a edição, 2020</p><p><i>P.S.: Gosto de fotografar os livros que comento. Depois que fiz a foto é que reparei o incisivo raio de sol iluminando com seu facho o livro e o próprio Paulo. Como reza o ditado popular, nada é por acaso.</i></p><p><br /></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-87115042025403771092023-08-28T12:56:00.001-03:002023-08-28T12:56:07.360-03:00"Uma autobiografia", por Rita Lee<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1XOSKl95Ut2P9aQK-JfvUOZBlVFK-PONpBER4vWxnPXxgOsV_MxaivJoGI93b970RLwoPbdBWKY5vu-ZQFZZnEhlxBIl6OaWzOcEPV7lxMLaWslDF7IniEsVhunDOWfFwbVDYp7U7sjfvEpcaXUrtWeV4nFaGg-YjuNtYx4pgSxkxDMppGTtLgc4zAgs/s3588/Rita%20Lee%20uma%20autobiografia.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2640" data-original-width="3588" height="470" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1XOSKl95Ut2P9aQK-JfvUOZBlVFK-PONpBER4vWxnPXxgOsV_MxaivJoGI93b970RLwoPbdBWKY5vu-ZQFZZnEhlxBIl6OaWzOcEPV7lxMLaWslDF7IniEsVhunDOWfFwbVDYp7U7sjfvEpcaXUrtWeV4nFaGg-YjuNtYx4pgSxkxDMppGTtLgc4zAgs/w640-h470/Rita%20Lee%20uma%20autobiografia.jpg" width="640" /></a></div><br />Uma autobiografia, vírgula. São duas.<p></p><p>Tem a bio da Rita Lee Jones - que cogitou aportuguesar o nome, veja só, para Rita Léa Gomes -, da primeira parte do livro. Ácida. E tem a bio da Rita Lee que começa quando Roberto de Carvalho, um guitarrista carioca que tocava com o Ney Matogrosso, entra na vida da "roqueira" paulistana. Melada.</p><p>E eu gosto muito mais de uma delas. Fácil adivinhar qual é e porquê.</p><p>Rita Lee foi uma personagem super interessante. Carismática e talentosa, esteve presente em um momento mágico da MPB - os movimentados anos 60. Difícil não associar o período à sua figura psicodélica no palco dos festivais, fazendo backing vocal para Gilberto Gil em "Domingo no parque" e para Caetano Veloso em "Alegria, Alegria".</p><p>Ela era letrista e vocalista de "Os Mutantes", trio formado por ela e por uma dupla de irmãos, os Dias. O grupo nunca foi um sucesso de público e se desintegrou com a saída de Rita, ainda no início dos anos 70. Por décadas musicalmente relegados a um efêmero <i>recuerdo</i> dos festivais da Record, foram resgatados do ostracismo nos últimos anos.</p><p>Ingleses catadores de relíquias desenterraram os LPs do trio e os elevaram à fina flor do rock alienígena. Viraram uma banda cult (embora acho até que já desfrutassem desse prestígio <i>underground</i> no Brasil).</p><p>Curioso é que Rita rejeite este seu primeiro período de estrelato. Mais que rejeitar, ela espinafra <i>Os Mutantes</i>, seus componentes e tudo o que diga respeito aos irmãos Dias, que ela chama indiferente e debochadamente por um nome só - <i>ozmano </i>-, mesmo tendo sido casada com um deles.</p><p>Ela vai fundo. Destrincha desde a formação do grupo (que começou com o dobro de participantes e chamava "O'Seis") até as arruaças que faziam de kombi pela cidade de São Paulo. Pior, revela os podres (literalmente) da família quatrocentona dos bróders.</p><p>Dá um ar de casualidade aos encontros e desencontros musicais daquela década animada, em que a cultura fervia e o ambiente político oprimia. Fica até desapegado dar essa minimizada na importância dela e de <i>Os Mutantes</i>. Mas ela inverte bastante a narrativa quando retrata o seu período de sucesso solo, a partir da segunda metade dos anos 70.</p><p>Doravante estrela nacional e recordista na venda de LPs, ela nos brinda com sua produção industrial como compositora e suas entradas e saídas de hospícios diversos, menos por drogas e mais por álcool - Rita se tornou uma inveterada cachaceira, de ir às últimas e cair de cara no chão. </p><p>Literalmente. Teve inclusive que reconstituir o maxilar e ficar dois meses no canudinho.</p><p>O texto de Rita Lee é mordaz. Faz a narrativa da sua vida se tornar bem mais divertida do que se contada por um biógrafo profissional (e, como os três leitores que me acompanham aqui no blog sabem, sou bem rigoroso com biógrafos em geral).</p><p>A menina era a terceira filha de um casal improvável ("crescer sendo brasileira entre americanos protestantes/maçons e italianos ultracatólicos me deu uma panorâmica existencial de valores e bizarrices") e não podia dar muito certo ("não é à toa que sou bipolar com um pé no trifásico").</p><p>A origem norte-americana é pra lá de inusitada: seus avós eram sulistas que migraram pro Brasil após a derrota na Guerra da Sucessão, sob os auspícios do Imperador Pedro II, também maçom. Foram para o interior de São Paulo, cuja terra achavam parecida com a deles para o plantio de algodão. Daí nasceu a cidade de Americana. Aprendi mais uma.</p><p>A netinha, muitas décadas depois, esculacha a perda do cabaço para o cabo de uma chave de fenda, aos cinco anos, molestada pelo cara que foi consertar a máquina de costura Singer da mãe.</p><p>Adolescente, Rita - que viria depois a se tornar musa da doce tolice <i>Democracia Corintiana</i>* (algo como a <i>Primavera Árabe</i>, mas sem as pirâmides) tinha pouca paciência pro furdunço ideológico, e se dizia "uma gringa roqueira bocejando para o momento político do país (militares e comunistas se equivaliam na chatice)". Se auto-denominava "uma ET caipira que entrou de gaiata na festa dos sisudos MPBistas que se levavam demais a sério".</p><p>"Ou você era esquerdette ou direitette", enfatiza ela. "Para acomodar quem me cobrava uma posição política, me assumi 'hiponga comunista com um pé no imperialismo".</p><p>Muita cobrança em prol da divisão, ontem e hoje. Até porque dividir é fácil. Quero ver somar.</p><p>Roberto Carlos, o <i>Rei</i>, também não somou. Iniciantes, <i>Os Mutantes</i> procuravam um lugar ao sol e quase conseguiram uma vaguinha na TV Record, no célebre programa <i>Jovem Guarda</i>, mas foram defenestrados com a ajuda do bom moço ("Roberto expressou certo desconforto com a formação 'dois rapazes e uma moça', que de trio já havia ele, Erasmo e Wanderléa, sem espaço no programa para outro").</p><p>Rita, parece, levou de boa; mas contou na bio, né. Ou seja, minimiza, mas não perdoa.</p><p>Quem ela não perdoou mesmo foram os seus parças de <i>Os Mutantes</i>. Como eu disse lá em cima, ela não economiza para falar <i>dozmano</i> e dos seus respectivos genitores, "uma gente arrogante". Na vívida descrição da roqueira, a família Baptista era "riquinha, pero pouco asseada. Avançavam na comida antes de chegar à mesa, falavam alto de boca cheia e, para meu completo nojo, bebiam no gargalo da mesma garrafa de Coca-Cola passada de mão em mão. Isso quando não comiam nos próprios quartos, verdadeiros chiqueiros".</p><p>Aturou. Mas, com este registro cruel, a vingança foi maligna.</p><p>Mas vamos ao que interessa. Rita Lee entrou para a música popular brasileira quando o trio foi convidado para fazer <i>backing</i> vocal para Nana Caymmi no Festival da Record. Era 1967 e o que aconteceu no festival mudou a MPB, que nunca mais foi a mesma. Há documentários à beça disponíveis na rede para quem não sabe bem o que se passou.</p><p>O autor da música era um baiano chamado Gilberto Gil, que, ao ver a parafernália eletrônica levada pelos <i>mutas</i> para fazer o <i>backing</i> (levaram errado...), se interessou e convidou o povo para performar com ele em uma outra canção classificada, "Domingo no parque". O grupo estranhou o convite:</p><p>"Mas não é festival de música brasileira?"</p><p>"É, mas vocês não são brasileiros?"</p><p>"Mas a gente não sabe tocar música brasileira, a gente só faz rock."</p><p>Foi assim que a guitarra entrou na música brasileira. Passaram a música apenas duas vezes em um ensaio geral e a terceira vez já foi no palco do festival. Os figurinos foram todos de autoria de Rita, que fez uma toalha indiana virar túnica (eu nunca soube que indiano se secava, ainda mais que faziam toalhas) e vestiu "ozmano com capas pretas <i>à la</i> Beatles". Fez um coraçãozinho vermelho no rosto e estreou na História.</p><p>Bem, dá para ver que eu acho "Domingo no parque" o ó do borogodó.</p><p>Mas eu não tô sozinho nessa visão da menina paulistana. Nelson Motta, quase um Zelig da MPB na segunda metade do século 20 (um Zelig com talento, diga-se), em artigo publicado em 22 de maio deste ano, também corrobora e se derrama:</p><p>"Desde a primeira vez que a vi, com 20 anos, nos Mutantes, cantando com Gilberto Gil em "Domingo no parque", no Festival da Música Brasileira de 1967, me encantei por ela, como todo mundo, pelo resto da vida. Como todo o Brasil."</p><p>Deixando de lado a confissão do Nelsinho - que dizem que realmente pegou geral -, fica claro que não fui só eu que fiquei mesmerizado com a presença cênico-musical da Rita.</p><p>Mais para baladeira e artista pop do que para a roqueira que ela se via, ao trilhar a carreira solo a cantora-artista-compositora Rita Lee seguiu ganhando cada vez mais espaço e se tornou uma campeã na venda de discos - o oposto do seu período nos Mutas, quando não vendiam nada.</p><p>Talvez por isso, e pelo relacionamento conturbado que teve com <i>ozmano</i>, ela tenha dado uma bela desprezada nesta sua icônica fase inicial. E, nas ondas do sucesso, valorizado o seu repertório posterior, principalmente após o namoro e casamento com o guitarrista Roberto.</p><p>Eu, que vinha me divertindo a beça com a auto-zoação da Lee, a partir daí passei a achar a narrativa enfadonha. Pode ser implicância minha. Mas a bio é boa e a Rita Lee é demais.</p><p>Globo Livros, 294 páginas </p><p><i>* A "Democracia corintiana" foi uma badalação jornalístico-publicitária capitaneada pelos jogadores Sócrates e Casagrande, que reunia conversa fiada, cerveja e música. Como o Brasil estava nos estertores da ditadura, a mídia gostava de estampar a palavra "democracia". Era divertido, mas deu em nada. Como a Primavera Árabe, que ao menos tinha as pirâmides no fundo - o que dava uma enfeitada no bagulho.</i></p><p><br /></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-49678928578777925892023-08-21T12:24:00.000-03:002023-08-21T12:24:08.527-03:00"O fabuloso Zé Rodrix", por Toninho Vaz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhV3ZmcNCYgU1dQ0I1bfYKSdXNKU2BTJOKhg2b_uCBFUpvv2pmMGvg1D2lD956R12cYd6sqjV5SZ2k1pIngCsV7aknKY3jLHPZdKB_iYmhpeeI21IRb6eiw6BNi2q3MeS5rB-PUm18aREDBCCp8amrvFdSGJlslI4ELnb6Ae_k-uSAYigwi0qDlA2fKh3g/s1984/z%C3%A9%20rodrix.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1427" data-original-width="1984" height="460" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhV3ZmcNCYgU1dQ0I1bfYKSdXNKU2BTJOKhg2b_uCBFUpvv2pmMGvg1D2lD956R12cYd6sqjV5SZ2k1pIngCsV7aknKY3jLHPZdKB_iYmhpeeI21IRb6eiw6BNi2q3MeS5rB-PUm18aREDBCCp8amrvFdSGJlslI4ELnb6Ae_k-uSAYigwi0qDlA2fKh3g/w640-h460/z%C3%A9%20rodrix.jpg" width="640" /></a></div><br />Rapaz, eu sou fanzaço do Zé Rodrix. Por isso não sosseguei até achar a biografia sobre ele (como você viu semana passada, sou fã de bios). Mas talvez você nem saiba de quem eu estou falando.<p></p><p>A editora que lançou a biografia sobre o Zé também não confia muito que a galera saiba. Embaixo do nome dele, na capa, colocou "autor do sucesso <i>Casa no campo</i>".</p><p>Mais ou menos como uma bio do Tom que se chamasse "O fantástico Antônio Carlos Jobim", sublinhada pela frase "autor do sucesso <i>Garota de Ipanema</i>".</p><p>Bizarro. Eu dispensaria o adjetivo introdutório e proibiria o cara do comercial da editora de enfiar o título de uma música sob o nome do autor. Colocar "Stella" embaixo do nome do Fabio, vá lá. Ou "Ursinho blau-blau", embaixo do nome do Silvinho. Mas há que se separar o joio do trigo.</p><p>OK, você, que não conhecia o Zé, ao ouvir o nome "Casa no campo", certamente lembrará da letra: "Eu quero uma casa no campo/ onde eu possa compor muitos rocks rurais/ e tenha somente a certeza/ dos amigos do peito e nada mais".</p><p>Lógico que você conhece. Todo mundo conhece. Mas provavelmente você não vai comprar a biografia porque leu na capa que é a biografia do cara que escreveu a canção. Quem se dispõe a comprar a biografia de um artista é porque conhece ou admira esse alguém.</p><p>Mas vamos deixar isso de lado. Para quem o conhecia, o Zé era o Zé. Um compositor genial e ininterruptamente adrenalizado, dono de uma prosódia única. Discursivo, literal, irreverente, anedótico, lírico, poético. Puro Zé Rodrix. Seu estilo era ele mesmo.</p><p>Agradeço a dedicação fraternal do biógrafo Toninho Vaz, essencial para recuperarmos parte da trajetória dessa fera, que acabou a vida atrás das cortinas (por escolha pessoal). O José Rodrigues Trindade, seu nome de batismo, podia se dar a esse luxo. Porque era múltiplo: ator, arranjador, publicitário e escritor. Assim, ao resgatar seu legado, Vaz nos traz uma contribuição importante.</p><p>Mas uma contribuição muito aquém, entretanto, para o leitor que abre o livro sequioso por uma biografia do astro. A obra é mais um compilado de depoimentos, que vão enfileirando seus elogios, entremeados à dissertação cronológica de fatos apurados sobre a vida do biografado.</p><p>O texto e a pesquisa ficam muito a dever. A precisão também, inclusive a textual. Vou pegar uma passagem do próprio livro para exemplificar. Na página 103, Toninho menciona a telenovela <i>O Espigão</i>, informando tratar-se de um "mega sucesso da TV Globo, com 150 capítulos que ocuparam quase o ano inteiro de 1974, de abril a novembro".</p><p>Opa lá. Abril a novembro não são "quase o ano inteiro". Não pode, né? Mas fui confirmar na Wikipedia. A novela foi lançada em 3 de abril e encerrou em 1o de novembro de 1974. Ou seja, foram seis meses e vinte e oito dias. Então vamos aproveitar a deixa e partir daí. Vaz pesquisou a vida "quase inteira" do Zé Rodrix, da mesma forma que a dita novela durou quase o ano inteiro.</p><p>O texto oferecido pelo autor, na verdade, não dá meio copo. Além dos depoimentos óbvios - "ele era inteligente demais", "um poço de sabedoria", "a musicalidade em pessoa", "hiperativo", "faz muita falta" etc -, sobra uma linha do tempo amorfa, pontuada por datas, lançamentos, casamentos e contratos. Tipo "juntei tudo o que eu achei publicado e dei uma organizada". </p><p>Mas foi uma <i>juntada</i> meio aleatória. A ponto do final do livro reproduzir na íntegra um texto de vinte e três páginas (isso mesmo, 23), escritas pelo biografado, sobre seu vício nas salas de bate-papo da internet (quando ainda não existiam as redes sociais). E seguidas por dezesseis páginas com "dezessete perfis" do Zé Rodrix, mensagens de saudade escritas por seus antigos amigos e amigas.</p><p>(Entre elas do amigo Etel Frota, que diz: "Três Trovas Tristes/ Meu Zeuzinho foi-se embora, carregou minha alegria/ Partiu, foi antes da hora/ cantar noutra freguesia")</p><p>Tudo muito sensível, muito carinhoso, mas sem a substância suficiente para compor o que se espera de uma <i>boa</i> biografia. À vera, é mais um longo calendário, ilustrado com fatos e fotos da vida do biografado. A narrativa é monótona. A despeito da amizade pessoal do biógrafo com o biografado, na bio temos do Zé Rodrix muito mais a aparência do que a essência.</p><p>Os elogios repetitivos às mesmas características, ainda que legítimas, privilegiam o estereótipo.</p><p>Reiterando que, embora o autor nos traga muita coisa publicada nos jornais, nas revistas e também algum conteúdo compartilhado por pessoas próximas ao biografado, Vaz nem arranha as passagens ocultas da vida pessoal de Rodrix.</p><p>Por exemplo, "Quem sabe sabe quem não sabe não precisa saber", o segundo LP solo do autor (cuja capa ilustra este post) - após abandonar o icônico e prolífico trio "Sá, Rodrix e Guarabyra" -, mal é mencionado na biografia. As composições do disco são solenemente ignoradas, apesar de serem, ironicamente, autobiográficas.</p><p>A faixa-título discorre sobre alguém que teria passado a perna no biografado. Quem foi? Em que circunstância? Do que se tratou? Que consequências trouxe? Houve alguma reação pós-lançamento? A resposta a estas perguntas inexiste, como inexiste qualquer menção às composições do LP.</p><p>"A sua vida inteira você ficou/ tentando achar alguém como eu/ que fosse bom para você enganar, pra roubar, pra tirar vantagem/ E eu que tinha tanta experiência/ Ainda assim caí na sua conversa/ Meus trinta anos de janela acabaram não valendo de nada/ ou quase nada."</p><p>"Mas se prepare agora/ pro troco certo/que este você vai receber/ Não vai ser muito agradável ouvir desse jeito a verdade nua/ e crua/ A sua última oportunidade você gastou e vai ficar na saudade/ O que eu tenho pra dizer você vai escutar/ quer queira, quer não".</p><p>"Quem sabe, sabe, malandro/ Quem não sabe, não precisa saber, não, não/ E vai ficar a vida inteira dando cabeçada na parede sem entender/ sem conseguir entender porquê."</p><p>Escrevi acima esses trechos da letra de roldão, de memória, sem consultar (eu disse que era fã do cara). E a gente há de convir que, numa biografia, uma letra dessa não pode passar ignorada. Ou então não é bem uma biografia.</p><p>Além da menção ao livro, apenas uma foto 5cm x 5cm, com a reprodução da sua divertida capa, consta na edição. E a letra que reproduzi acima é apenas uma entre as muitas em que Zé narra passagens da sua vida. Muitas, "mentiroso" que era, se tratavam de narrativas ficcionais. Outras, como a faixa-título, eram um óbvio desabafo.</p><p>Fora de dúvida que o fato mais marcante na vida do José Rodrigues Trindade foi ele ter subitamente largado o <i>showbiz</i> e se tornado um recluso publicitário - na verdade, um dos mais talentosos criadores de jingles de todos os tempos.</p><p>"É no silêncio de um Chevrolet que o meu coração bate mais alto", cantou Rodrix, em um comercial que deixou sua marca na história da publicidade brasileira (e no seu melhor momento, quando havia algo que podíamos chamar, com propriedade, de<i> publicidade brasileira</i>). Mas, pena, o abandono da promissora carreira de <i>popstar</i> que antecedeu sua migração para uma semi-pacata vida nos bastidores é tratado de forma superficial.</p><p>Há ênfase demasiada no seu envolvimento (desimportante) com a maçonaria - inclusive o livro publica o desabafo póstumo da última esposa do Zé, se queixando que não recebeu o pecúlio ao qual teria direito - e em outras circunstâncias menores.</p><p>O foco nestas questões seria cabível, tivesse a obra esgotado temas muito mais relevantes na excêntrica carreira de Zé Rodrix. Mas o espaço concedido aos diferentes momentos da vida do biografado não refletem o peso específico de cada um deles; seja na vida de Rodrix, seja na sua importância artística.</p><p>A foto utilizada na capa da publicação é ótima. Mas também questiono a representatividade de estampar a capa com uma imagem que reflete um período de "baixa visibilidade" do biografado. Capa é capa. Por que não uma das belíssimas fotos de quando ele estava em seu auge como músico popular? (como a foto da página 9 do livro).</p><p>São todas questões que trago na condição de leitor de História, ouvinte de MPB e fã de Zé Rodrix. Não quis em nada diminuir o biógrafo ou seu esforço. Mas o lançamento de uma bio gera expectativas. E expectativas não atendidas geram frustrações.</p><p>Por fim, reitero a beleza envolvente de "Casa no campo". Pespegar o título na capa, porém, como chamariz, era dispensável. O talento de Zé Rodrix é muito maior que uma única canção, por mais emblemática que ela seja. </p><p>"Onde eu possa plantar meus amigos/ meus discos e livros/ e nada mais".</p><p>Editora Olhares, 325 páginas</p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-82529563473185778522023-08-14T12:32:00.000-03:002023-08-14T12:32:12.856-03:00"A vida por escrito", por Ruy Castro<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhD4J_rS1gb4Y4eDNfBQwfrISLxO7wjcYfX5R_5O8XvmkLBBHpCYsKkjsXbDzbzTa9lcTNL0i40e8IgbLDnRfR-FquoxGDLWhhKSnkhZw6JrJuww1zP4XrgSU6rgVrlgU52spKQzx3ehe8kreDlsXKH-qXVYKWZTx9i_B3lkk5STA_f9hMcQhPdkAXb/s1280/a%20vida%20por%20escrito.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="1280" height="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhD4J_rS1gb4Y4eDNfBQwfrISLxO7wjcYfX5R_5O8XvmkLBBHpCYsKkjsXbDzbzTa9lcTNL0i40e8IgbLDnRfR-FquoxGDLWhhKSnkhZw6JrJuww1zP4XrgSU6rgVrlgU52spKQzx3ehe8kreDlsXKH-qXVYKWZTx9i_B3lkk5STA_f9hMcQhPdkAXb/w640-h480/a%20vida%20por%20escrito.jpg" width="640" /></a></div><br />Tido por muitos como o maior biógrafo brasileiro, o jornalista Ruy Castro tira um tempo para escrever uma coisinha ou outra sobre a arte da biografia. Puro néctar. O subtítulo "Ciência e arte da biografia" dá um ar técnico à edição. Mas antecipo que é menos um curso e mais um bate-papo.<div><br /></div><div>Bate-papo, aliás, é a suprema ciência do Ruy, que escreve como quem conversa.</div><div><br /></div><div>Generoso, ele dá o passo-a-passo de como escrever uma biografia. Da escolha do biografado à pesquisa, da redação final à impressão do livro, do tamanho da equipe à forma como é remunerado.</div><div><br /></div><div>Se você sonha, porém, em se tornar um biógrafo, não se iluda com as doces promessas do autor. Porque à vera, mesmo, nada do que ele revela faz mágica. Não há transferência de talento por osmose. Ninguém vai virar um baita biógrafo apenas por ter a leitura do livro do Ruy no currículo.</div><div><br /></div><div>Bem, não que ele não creia na hipótese. Sugere mesmo uma universidade dedicada à biografia. Situa a atividade - como diz na capa - entre a arte e a ciência. Mas, cá para nós, a pequena apostila de capa colorida é, sobretudo, um mimo para o leitor assíduo das suas bios.</div><div><br /></div><div>Porque ele revisita cada uma delas. Destrincha os detalhes, dá informações internas, faz uma espécie de <i>making of </i>de cada uma das suas publicações. Quem leu-as todas tem aí um banquete copioso. Já eu, para minha sorte, ainda tenho uma ou duas para ler. O <i>livreto</i> só aumenta a vontade.</div><div><br /></div><div>Curiosamente, a leitura de biografias é considerada um <i>estilo</i> à parte. Ué. Percepção curiosa. Para mim, tudo é vida e tudo é fato. Seja como for, eu gosto; ainda que discorde do viés. Há quem desdenhe: "Esse aí gosta é de ler biografia". Não vou refutar. Deixo isso por conta do Ruy.</div><div><br /></div><div>"Sempre gostei de ler biografias", revela o biógrafo, abrindo o livro. "Tem a ver, talvez, com o meu (nosso) lado voyeur - a possibilidade de espiar o lado B das pessoas que admiramos ou por quem temos curiosidade".</div><div><br /></div><div>Discordo até do Ruy, neste aspecto. Vejo o panorama aprofundado sobre a vida de um certo alguém como uma expedição às entranhas de uma época. A bio permite que eu me transporte para uma década que não é a minha, para um século que não é o meu.</div><div><br /></div><div>Mas Ruy endossa esse meu ponto-de-vista, com uma definição, lógico, muito mais bem escrita. Diz ele que levantar o passado "não implica nostalgia ou saudosismo, mas uma obsessão em descobrir como eram o dia a dia e a cultura quando ele ainda não existia".</div><div><br /></div><div>"O passado é um país estrangeiro", compara. "Às vezes, parece distante. Porém, quando se mergulha nele, descobre-se que pode estar logo ali. E dispensa passaporte, visto e vacina", arremata.</div><div><br /></div><div>O condutor precisa ser profissional, contudo. Ruy desautoriza as biografias autorizadas e não faz gosto das autobiografias: "Nenhuma autobiografia é confiável".</div><div><br /></div><div>Mas alerto que o simples fato de ser escrita por um biógrafo profissional não é selo de qualidade da biografia. Sei disso por experiência própria. Nem sempre nossas altas expectativas são atendidas.</div><div><br /></div><div>Porque algumas vezes o biógrafo é esforçado, reúne uma lauta pesquisa pessoal e põe nas livrarias uma edição sobre um nome instigante. Mas o trabalho publicado é frágil no texto, pouco original na seleção das informações e carece de entrevistas com quem cruzou a vida do ente biografado.</div><div><br /></div><div>Já topei com diversas deste quilate, para minha tristeza. Elas frustram o interesse do leitor. Por exemplo, dois calhamaços que li, dedicados aos compositores Adoniram Barbosa e Dolores Duran. Resenhei-as aqui no blog. Aquém dos biografados e além dos fã-clubes. Entulhadas de devoção e redundância, pobres de substância. Tudo nelas já era do conhecimento público, só foram reempacotadas. E mal.</div><div><br /></div><div>Já o velho jornalista Ruy Castro, pesquisador e entrevistador de mão cheia, meticuloso e obstinado, traz sempre um excesso de conteúdo inédito. E não só - desenvolveu ainda a arte singular de fazer de uma biografia entretenimento puro.</div><div><br /></div><div>E até hoje nenhuma biografia ficou pior por ter sido magistralmente escrita.</div><div><br /></div><div>Sobre o próprio livro, diz ele que "mais do que um manual de como escrever uma biografia, é um relato da experiência de alguém que, depois de vinte anos nas principais Redações de jornais e revistas do Rio e de São Paulo, descobriu um novo mundo a ser explorado pela única ferramenta que o acompanha pela vida: a palavra".</div><div><br /></div><div>Para mim, particularmente, ainda mais bacana foi saber que a centelha da paixão pela biografia foi acesa em Ruy quando da leitura de "Noel Rosa", bio escrita a quatro mãos por João Máximo e Carlos Didier. Foi uma das primeiras biografias que li. Tenho até hoje o tijolaço. Um tesouro. Me fascinei com o talento e sofri as dores do <i>Poeta da Vila</i> até o seu fim.</div><div><br /></div><div>E ainda desfrutei da graça do Rio de Janeiro suburbano e boêmio dos anos 20 e 30. A Vila.</div><div><br /></div><div>Este é o verdadeiro prazer da biografia: ser tomado pelo brilho e intensidade de vidas vividas em momentos-chave da história e da arte, como se estivéssemos lá. Como não nos render?</div><div><br /></div><div>Ruy fala de autores e obras clássicas, como "O mundo que eu vi", de Stefan Zweig (postado aqui no blog) e "Memórias do cárcere", de Graciliano Ramos, e ainda dá uma desdenhada no célebre texto de Gay Talese, "Frank Sinatra está resfriado" (também postado aqui no blog).</div><div><br /></div><div>Discorre também sobre biografados e candidatos a, como Phillip Roth, Woody Allen, Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves e Tom Jobim. E ainda sobre biografar épocas e movimentos, como os anos 20 e a bossa nova.</div><div><br /></div><div>Como bom jornalista, Castro traz também depoimentos contrários ao ofício dos biógrafos. Tipo o da biógrafa (e também jornalista) americana Janet Malcolm, falecida há dois anos, em 2021. "O biógrafo é um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e foge exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem".</div><div><br /></div><div>Exatamente como Roberto Carlos se sentiu ao ver uma biografia sobre ele chegar às livrarias. Não se conformou, foi à Justiça, interditou a obra, retirou o livro do mercado. Outros artistas aderiram à censura prévia sobre as próprias vidas. Mas, em uma decisão célebre e acertada do Supremo, a ministra Carmen Lúcia vaticinou, para a história: "<i>Calaboca</i> já morreu".</div><div><br /></div><div>Mas isso é tema para outro post. Vamos voltar à madame Janet Malcolm.</div><div><br /></div><div>Ela não alivia também a sua outra classe, a dos jornalistas. "Todo jornalista que não seja estúpido demais ou muito cheio de si para não perceber o que acontece à sua volta sabe que o que ele faz é moralmente indefensável". Segundo Ruy, ela quis dizer que "todo jornalista molda seu texto seguindo suas próprias inclinações e que tal texto reflete mais o autor do que a suposta realidade que ele descreve".</div><div><br /></div><div>O Ruy biógrafo se defende, entretanto. "Se Janet pensa tão mal dos biógrafos, o que dirá dos historiadores, que são biógrafos seriais?". E ressalta que a biografia "é uma prática tão sujeita a distorções quanto o ensaio literário, a escavação arqueológica ou a extração dentária, e nem por isso todos os ensaístas, arqueólogos e dentistas devem ser condenados à morte".</div><div><br /></div><div>Eu, como já disse, gosto de biografias. Certamente porque gosto de História. E parte do segredo para me divertir com ambas é mérito de quem as escreve. E isso demanda vocação, método e tempo.</div><div><br /></div><div>"Sem apuração bem feita, não há biografia", diz o mestre das biografias. "A fórmula da apuração é simples: começa pelo levantamento de <i>tudo</i> o que já se sabe sobre o biografado e só então se parte para a busca de tudo o que <i>não se sabe</i>".</div><div><br /></div><div>É isso. Eu, a História e toda a apaixonada torcida alvinegra queremos saber isso: o que <i>não se sabe</i>. Os itálicos, dele, revelam onde está a ênfase. Que conclui: "A primeira etapa pode levar três meses; a segunda, três anos". E emenda: "Eu disse que era simples; não disse que era fácil".</div><div><br /></div><div>Por essa e por outras, reitero - quem gosta de ler, precisa ler Ruy Castro. É craque.</div><div><br /></div><div>Companhia das Letras, (meras) 191 páginas | 1a edição | Copyright 2022</div><div><br /></div><div><i>P.S.: Se eu fosse cunhar um slogan para vender seus livros, diria: "Bio é com o Ruy. O resto é obituário." Hummmm... seria injusto com inúmeros biógrafos talentosos? Sim. Mas o Ruy merece o chiste.</i></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-67408121443272475892023-08-01T18:36:00.000-03:002023-08-01T18:36:56.650-03:00"Onde estão as flores?", por Ilko Minev<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKO08TsZ6YE862EiNfSDKazfgSZVlkZ790hIjZXGD_TWWTEQOkHhE79oOn614Iba49GfzJe64Aa2c5cAJaKJvMmDnWUyNgY2I3mD1oDO9pJBfNegr25Pb3Pg-4bBBF381BrGKiLqd-7ieR3iHXldNZnrPVaHVPJCuO0LR0SbwOjhAJm14MRIc8ZVDq/s3952/onde%20est%C3%A3o%20as%20flores.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2656" data-original-width="3952" height="430" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKO08TsZ6YE862EiNfSDKazfgSZVlkZ790hIjZXGD_TWWTEQOkHhE79oOn614Iba49GfzJe64Aa2c5cAJaKJvMmDnWUyNgY2I3mD1oDO9pJBfNegr25Pb3Pg-4bBBF381BrGKiLqd-7ieR3iHXldNZnrPVaHVPJCuO0LR0SbwOjhAJm14MRIc8ZVDq/w640-h430/onde%20est%C3%A3o%20as%20flores.jpg" width="640" /></a></div><br />A narrativa dos campos de concentração feita pelo judeu búlgaro Ilko Minev é bem mais amena do que aquelas às quais nos acostumamos a ler. Perto das atrocidades que caracterizam este capítulo da História mundial - o Holocausto -, o relato de Minev é fichinha.<div><br /></div><div>Não que não fosse infernal. Foi. O autor disserta em primeira pessoa sobre a aliança entre a Bulgária e a Alemanha nazista. E conta, em minúcias, como superou as duras condições dos campos de trabalho escravo, às margens do Danúbio.<div><br /></div><div>Com um porém: diferentemente da maioria dos relatos de prisioneiros judeus, Minev, por meio do seu personagem Licco Hazan, descreve um cenário onde não havia maus tratos ou barbárie - apenas frio, roupas inadequadas, dormitórios abarrotados e falta de comida.</div><div><br /></div><div>Bem ruim. Naturalmente, passar dois anos nas circunstâncias acima descritas seria trágico para qualquer cidadão contemporâneo - mas para um judeu europeu na década de 40, preso em um campo de concentração nazista, eram condições surpreendentemente toleráveis.</div><div><br /></div><div>Para você ver.<br /><div><br /></div><div>Segundo Minev/Hazan, a Bulgária não era hostil contra seus judeus, como outros países do Leste Europeu. O autor credita a convivência "harmoniosa" entre cristãos e judeus búlgaros ao pequeno percentual da população judaica no país - 1%. Já eu, particularmente, sou cético quanto a criação de teses com base neste percentual. Os judeus alemães também eram poucos (menos de 1% da população alemã) e foram quase todos criminosamente mortos.</div></div><div><br /></div><div>Certamente o carinho do autor por sua terra natal influenciou numa eventual condescendência.</div><div><br /></div><div>Mas a situação na Bulgária era tão mais palatável que na Polônia ou Ucrânia que dava até pra dar no pé. Por conta da ajuda influente de seu antigo patrão judeu, que havia escapado do país antes da chegada dos nazistas, Licco conseguiu fugir do campo, obter novos papéis e viajar para a Turquia.</div><div><br /></div><div>Era janeiro de 1944 e faltava um ano e meio para a guerra acabar. Os boches, porém, já recuavam.</div><div><br /></div><div>A Cruz Vermelha conseguiu para ele e Berta - a mulher que recém conhecera na fuga da Bulgária e com a qual no mês seguinte se casou - um visto de imigração para o Brasil. Seus documentos falsos atestavam que ele era cristão e "técnico em engenharia". Tal despiste era necessário: o Brasil do governo Vargas não aceitava a entrada de emigrantes judeus, nem de gringos sem qualificação.</div><div><br /></div><div>O casal Hazan viajou com conforto de Istambul para Gibraltar, na segunda classe do MS Formosa (coincidentemente, no mesmo navio em que meu avô havia desembarcado no Brasil, catorze anos antes, em 1930). De lá o plano era seguir para Santos, a bordo do Jamaique, mas saltaram em Belém e dali rumaram para Manaus, onde se estabeleceram. Nunca mais deixaram a Amazônia.</div><div><br /></div><div>Ao detalhar a vida do casal em solo brasileiro, o livro passa a ter o empreendedorismo do imigrante como pauta. E, de emprego em emprego, Licco se torna um bem-sucedido empresário regional.</div><div><br /></div><div>Apesar da orelha reforçar que se trata de uma obra ficcional ("Licco Hazan, o narrador deste romance [...]"), o texto é uma coerente costura de fatos triviais. Ao contar a história de Licco, Minev entrega conteúdo pessoal e histórico, em sequência cronológica e com minuciosa ambientação geográfica.</div><div><br /></div><div>Sua história é a de uma vida intensa, mas vida comezinha, como a de cada de nós. Exceto o período de prisioneiro e a (grande) aventura da fuga, não há maiores dramas, nuances ou subtextos na linha de vida de Licco. Em todos os momentos difíceis que vivenciou ele se saiu melhor que os demais, por mérito ou acaso, e foi poupado sem danos ou cicatrizes.</div><div><br /></div><div>Suponho que a narrativa de Licco Hazan seja a descrição de fatos acontecidos. O livro traz muitas passagens banais, com especificidades difíceis e sem sentido de serem inventadas. O texto poderia até mesmo ser resultado da junção de duas ou mais narrativas reais, mesclando um refugiado judeu a um imigrante europeu qualquer. Mas, repito, não há nelas traço de ficção.</div><div><br /></div><div>Talvez quem possa ter contribuído para um núcleo ficcional sejam os parágrafos relativos ao seu irmão David. Depois de também fugir do campo de concentração, permaneceu como guerrilheiro na Bulgária. Confiante no credo comunista, ficou no país no pós-guerra e se tornou dirigente do partido. O personagem dá margem a descrever o que se deu em seguida nos países sob a Cortina de Ferro.</div><div><br /></div><div>As observações do narrador sobre os conflitos em Israel e no mundo comunista, o frágil desenvolvimentismo brasileiro, nossa burocracia excessiva e corrupta, nossas dificuldades sócio-econômicas, poderiam vir de Hazan ou de Minev, tanto faz.</div><div><br /></div><div>Fato é que é uma estória bem contada. O texto é simples, sem firulas. Neste caso em particular, a vida do judeu búlgaro que fugiu de um campo de concentração nazista conta muito mais sobre o que é o Brasil (e suas idiossincrasias) do que sobre o conflito europeu que ele deixou para trás.</div><div><br /></div><div>Me emocionei com a vida e a morte do singelo personagem. Uma bela vida. Seja real ou fictícia.</div><div><br /></div><div>Editora Virgiliae, 247 páginas | 1a edição, 2014</div><div><br /></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-25644487117682652732023-07-14T14:30:00.000-03:002023-07-14T14:30:30.858-03:00"Arrancados da terra", por Lira Neto<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUgFWqj7FkQ-jeL3nrGixFWfyO_GEduqvr2spaWO8PGHO6qkM4sAA6ngQuhASx_2FV6yOLnr74nKKpHvNuRRkskqeP5aIwKgHxyTRXRgUcpqxRdq1yMLBkvKNe8QSG8iBo3dRHT6ryXtxZPJ3kH4ExzbNFr3LaQBTxaLo9iKE8Fs4TnwmwxfBuyJeLeVg/s1280/Arrancados%20da%20Terra%20blog.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="877" data-original-width="1280" height="438" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUgFWqj7FkQ-jeL3nrGixFWfyO_GEduqvr2spaWO8PGHO6qkM4sAA6ngQuhASx_2FV6yOLnr74nKKpHvNuRRkskqeP5aIwKgHxyTRXRgUcpqxRdq1yMLBkvKNe8QSG8iBo3dRHT6ryXtxZPJ3kH4ExzbNFr3LaQBTxaLo9iKE8Fs4TnwmwxfBuyJeLeVg/w640-h438/Arrancados%20da%20Terra%20blog.jpg" width="640" /></a></div><br />O livro traz a história da diáspora dos judeus de Portugal. No seu bojo, conta da Inquisição portuguesa, da civilização crescente dos Países Baixos, da invasão holandesa ao Brasil, da sua subsequente expulsão e da fundação de Nova York.<div><br /></div><div>Um perímetro histórico de respeito. Haja fôlego.</div><div><br /></div><div>Lira Neto, seu autor, faz esta navegação enfurnado em bibliotecas, desencavando miudezas e decifrando documentos centenários semi-ininteligíveis. Já nós, seus leitores, seguimos confortavelmente aboletados na poltrona. Vida boa essa de leitor, não canso de agradecer.</div><div><br /></div><div>E, mais, tiro o chapéu para a habilidade do escritor na construção de uma narrativa factual consistente, e, além disso, cativante, com tão pouco material à disposição. Fez muito com pouco.</div><div><br /></div><div>Por correção, há que se frisar que, se a promessa de "Arrancados da terra" é revelar como um grupo de judeus saídos do Brasil foram dar lá nos cafundós da América do Norte, para então fundarem a maior e mais rica cidade do planeta, os finalmente não foram exatamente estes.</div><div><br /></div><div>Mas Lira Neto é competente em seu itinerário histórico e nos faz apreciar o caminho. O percurso acaba mais saboroso que o destino. Ao qual a gente chega na dúvida de qual conclusão a tirar.</div><div><br /></div><div>A primeira etapa é a detalhada descrição da Santa Inquisição em Portugal e sua obstinada perseguição aos judeus. Ainda que menos sangrenta que sua homônima espanhola, seu objetivo-mor foi atingido. Toda a próspera e antiga comunidade judaica portuguesa no século XVI foi espoliada, morta e erradicada, em nome da igreja de Jesus Cristo.</div><div><br /></div><div>Pra não deixar passar batido.</div><div><br /></div><div>Uma parte relevante dos judeus que lograram emigrar foi para Amsterdam. A capital holandesa era então um dos principais portos europeus. A rica e tolerante sociedade local já possuía, àquela época, preocupações humanistas e "politicamente corretas". Todos os credos eram legalmente permitidos, ainda que entre quatro paredes.</div><div><br /></div><div>Com o passar dos anos, a população judia portuguesa exilada encontrou nos Países Baixos um lar para chamar de seu. Mas, como sabemos que é característico na história dos judeus, essa "paz" não durou por muito tempo. Guerras e contextos políticos (sempre com um viés religioso, naqueles tempos) tornaram a permanência na Holanda menos prazerosa. </div><div><br /></div><div>Sem contar que nem todos os imigrantes judeus conseguiram progredir no novo país. Assim, por um vasto leque de razões, dissecadas por Lira Neto, quando os holandeses criaram a Companhia das Índias, muitos na comunidade judaica resolveram se aventurar no Novo Mundo. </div><div><br /></div><div>Na verdade, os judeus contribuíram como financiadores e também como colonizadores na experiência tropical holandesa. E, durante alguns anos, o Brasil pareceu aos judeus o paraíso. </div><div><br /></div><div>Ainda que também aqui (onde não?) sua situação fosse controvertida. Aceitos, mas indesejados. Pelo lado holandês, se no início eram parte da viabilização da empreitada, com o passar do tempo a holandesada começou a reclamar do monopólio judeu do comércio. E da riqueza. E do conforto.</div><div><br /></div><div>Nada a que os judeus não estivessem acostumados. Afinal de contas, serem bem-vindos era uma situação rara nos séculos de convivência dos judeus com os <i>gentios</i>. Mas isso não era nada. O problema maior estava do outro lado. Com os portugueses. Os "invadidos".</div><div><br /></div><div>Como seria de imaginar, Portugal queria Pernambuco de volta.</div><div><br /></div><div>Após um longo contencioso, com milhares de mortes de ambos os lados, os holandeses foram expulsos do Brasil. Ops, quase todos. Os holandeses judeus com suposta origem portuguesa eram vistos como traidores da pátria lusitana. Por isso, muitos foram presos e impedidos de partir. </div><div><br /></div><div>Muitos eram filhos de imigrantes portugueses. Outros, não. Os que falharam em comprovar não serem portugueses de nascença foram mandados para Lisboa. Em chegando lá, foram postos a ferros. Como rezava a cartilha católica, foram interrogados e torturados. Parte significativa dos torturados foi condenada e executada.</div><div><br /></div><div>Não era fácil ser judeu. Quase nunca foi.</div><div><br /></div><div>Centenas de judeus, porém, que conseguiram convencer as autoridades portuguesas no Brasil de que não tinham nada a ver com Portugal, que eram nascidos em outros países (França, Holanda, Bélgica, Alemanha etc), ainda que descendentes de portugueses fugidos de Portugal, meio século antes, foram embarcados de volta para a Holanda.</div><div><br /></div><div>Foram distribuídos entre diversos navios. Um destes navios, entretanto, foi colhido por uma tempestade, separado dos demais e atacado por piratas. Os sobreviventes chegaram à Jamaica. Lá, alguns dos passageiros embarcaram em um navio francês, com destino a um porto holandês situado ao norte das Américas, em uma ilha chamada pelos seus ocupantes europeus de "Nova Amsterdam". Ou, no idioma nativo dos índios locais, "Manna-hata".</div><div><br /></div><div>A tal ilha que hoje chamamos Manhattan.</div><div><br /></div><div>Entre estes passageiros havia 23 judeus. A história deles na região insalubre, que viria tempos depois a ser negociada pelos holandeses com os ingleses, é imprecisa. Lira Neto nos trouxe até aqui para nos revelar, no alpendre de casa, que toda esta narrativa é controversa.</div><div><br /></div><div>Parte do que sabemos sobre a chegada dos judeus permanece uma incógnita. Mas é certo, e comprovado, que eles chegaram. Só que já havia judeus lá em Nova Amsterdam. Que, inclusive, os teriam ajudado (ou não). Mas não há prova cabal que ateste que os judeus "brasileiros" permaneceram naquela que se tornou Nova York. Ou que tiveram influência no seu desenvolvimento.</div><div><br /></div><div>Como eu disse acima, o trajeto é divertido, mas o destino é nebuloso.</div><div><br /></div><div>Em 1o de maio de 2012, o então presidente Barack Obama encaminhou, por meio da sua assessoria de imprensa, uma declaração pública, assinada de próprio punho.</div><div><br /></div><div>"Há 358 anos, um grupo de 23 refugiados judeus fugiu do Recife, Brasil, acossado pela intolerância e opressão. Para eles, a fuga marcou o fim de mais um capítulo de perseguição para um povo que vem sendo posto à prova desde o momento em que passou a professar sua fé. Quando esses homens, mulheres e crianças desembarcaram em Nova Amsterdam - hoje a cidade de Nova York -, encontraram não apenas um porto seguro, mas as sementes de uma tradição de liberdade e oportunidade que uniriam para sempre suas histórias à história americana".</div><div><br /></div><div>Não, estes judeus não eram brasileiros, nem fundaram Nova York. Mas a lenda é saborosa.</div><div><br /></div><div>Companhia das Letras, 399 páginas</div><div><br /></div><div><br /></div><div><br /></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-26507229835052771552023-07-07T10:51:00.000-03:002023-07-07T10:51:09.113-03:00"A caixa-preta", por Amós Oz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggbAw7SZjKKn2dZR9_gelXqJoNYVj4rAVjsFe7mSjGNIoMrp5sFcrXQvE9f2iQdRwGLcPWCkvlJwkcsgXPvX8i2PYfdw0iTYlvszPLg5lr86Xo-Z1tiCJPYxM_g9xRAaCnXEljlzbcP-bsSl9JaOnfLj7HZABLboV3Hs_gWBOr_UgXfgp0fQCujP4t/s1024/A%20caixa%20preta.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="636" data-original-width="1024" height="398" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggbAw7SZjKKn2dZR9_gelXqJoNYVj4rAVjsFe7mSjGNIoMrp5sFcrXQvE9f2iQdRwGLcPWCkvlJwkcsgXPvX8i2PYfdw0iTYlvszPLg5lr86Xo-Z1tiCJPYxM_g9xRAaCnXEljlzbcP-bsSl9JaOnfLj7HZABLboV3Hs_gWBOr_UgXfgp0fQCujP4t/w640-h398/A%20caixa%20preta.jpg" width="640" /></a></div><br />O romance do aclamado escritor israelense Amós Oz, lançado em 1987, parte de uma estrutura narrativa original. É um livro sem narrador e sem diálogos. É composto apenas por uma sucessão de correspondências, trocadas entre os quatro protagonistas (Ilana, Alec, Sommo e Boaz) e mais meia-dúzia de personagens, que orbitam ao seu redor.<div><br /></div><div>Eu já havia lido outros títulos de Oz - "Entre amigos" (que narra a convivência dos habitantes de um kibbutz) e "Como curar um fanático" (sobre o extremismo religioso), ambos resenhados aqui no blog. Não à toa me interessei por outros livros do israelense. Me agrada o seu ponto-de-vista ponderado, frente ao tenso compartilhamento do território palestino entre árabes e judeus.</div><div><br /></div><div>Oz se vale dos seus personagens para humanizar e vocalizar o conflito (que, agora, vive novas ondas de violência e volta a sobressaltar o Oriente Médio, com a tenebrosa aliança entre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a extrema-direita). Esta vocalização era, confesso, a isca que me atraía para os seus livros. </div><div><br /></div><div>O que procedia, a propósito. Exemplifico. Em muitos momentos ele destaca o preconceito que divide os dois povos. Como na passagem em que um sionista extremado questiona um rapaz judeu, ignorante e violento: "O que é você? Diga-me. Um árabe? Um cavalo?" </div><div><br /></div><div>Mais à frente, tira proveito do mesmo personagem para evidenciar a postura da população judaica mais radical contra um dos nomes históricos da política israelense:</div><div><br /></div><div>"Yitzhak Rabin, na opinião dele, não é um primeiro-ministro judeu, mas um general americano que por acaso fala um pouco de hebraico truncado e está vendendo o país a Tio Sam", diz o sionista. "Novamente os gentios nos dominam e nós nos aviltamos diante deles".</div><div><br /></div><div>Lembrando que Yitzhak Rabin - hoje considerado um dos principais condutores de uma política conciliatória judaico-palestina - viria a ser tragicamente assassinado por um extremista judeu, em uma aparição pública (crime que aconteceu oito anos após o lançamento do livro).</div><div><br /></div><div>O autor, a seu modo, enaltece o ímpeto judaico, quando seu personagem critica, elogiando: "Os judeus construíram um país. Não é um país correto, mas construíram! É completamente torto, mas eles construíram! Sem Deus - mas construíram! Agora vamos esperar o que Deus diz disso".</div><div><br /></div><div>Faz uma previsão furada, ao comentar "sobre o modo como os exércitos árabes derrotarão Israel na década de 90". Nós, trinta anos depois, sabemos que isso não aconteceu. Pelo contrário - política e militarmente Israel ganhou peso e musculatura no cenário global.</div><div><br /></div><div>Oz, por várias vezes, mete árabes e judeus no mesmo balaio. Aqui ele se vale de Boaz, o adolescente tosco e idealista, que discorre sobre o pai, a mãe e seu segundo marido:</div><div><br /></div><div>"Nenhum dos três sabe o que significa realmente viver, inclusive aquele santo Michael com a turma dele dos territórios", diz à mãe, se referindo ao atual marido. "Vivem da Torá, vivem de política, vivem dos discursos e dos debates em vez de viver da vida. É a mesma coisa com os árabes. Eles aprenderam com os judeus como comer a si próprios e a comer um ao outro e a comer gente em vez de comer comida normal. Não digo que os árabes não sejam filhos da puta. Eles são, são até piores. Mas e daí? Filhos da puta também são gente. Não lixo. É uma pena que morram. No fim os judeus vão acabar com eles ou eles vão acabar com os judeus ou então um vai acabar com o outro e de novo não vai ter mais nada neste país a não ser a Torá e o Corão e raposas e ruínas incendiadas".</div><div><br /></div><div>Apesar do texto agressivo, a mensagem é cordial. Do tipo "se árabes e judeus não arrumarem um jeito de se acertar, vão todos se estrepar". Creio que a ideia dele era essa.<br /><p></p><p>Falando do romance, seu início apresenta os protagonistas debatendo sobre o filho (até então não reconhecido pelo pai), Boaz. Crescido um adolescente problema, o filho rejeita os pais. Michael Sommo, um professor sionista e segundo marido de Ilana, é quem consegue domar o moleque.</p><p>Manfred Zacheim é o advogado de Alec Guideon e um leva-e-traz entre seu cliente e o núcleo familiar da ex-esposa. Já Alec Guideon é um escritor internacionalmente respeitado, e que herdou a fortuna do pai, interditado em um asilo.</p><p>Com base nesta espinha dorsal, o roteiro se desenrola, com a trama avançando lentamente, enquanto o perfil psicológico dos personagens nos é apresentado. As cartas são chumbo trocado. Acusatórias, reivindicatórias. Um barraco postal.</p><p>Passadas algumas dezenas de páginas, porém, a fórmula perde fôlego. As cartas são longas e prolixas. O formato acaba cedendo - diálogos, pretensamente memorizados pelos missivistas, são reproduzidos <i>ipsis literis</i>, o que frauda o propósito original</p><p>Quanto mais o livro avança, mais a originalidade rascunhada na primeira parte do livro é engolida pelo estilo sentimentalóide do autor, que gosta de uma sucessão de reminiscências piegas e frugais. Gasta páginas e páginas enumerando tolices da convivência banal à guisa de mostrar como, por trás da rispidez das cartas, os personagens são humanos e se amam. Me enjoa.</p><p>O romance mal resolvido entre Alec e Ilana é chato, verborrágico. O não reconhecimento do filho seguido do súbito amor desmedido do pai pelo filho é chato, demasiado. As picuinhas entre os personagens se repetem, de forma estereotipada.</p><p>Ou seja, é uma mistura de "O povo na TV" com comercial de margarina.</p><p>Pior ainda é que, quanto mais o texto avança, mais as cartas encorpam (houve uma que tomou vinte e três páginas!) e menos há diferenciação entre elas - à medida em que se estendem, parecem todas escritas pela mesma pessoa. Ok, Pedro Bó. São, né. O autor é um só. A ideia, porém, era serem personalidades diferentes, que se expressassem de forma distinta.</p><p>Você pode entender minhas opiniões como uma crítica pesada. Ou dizer que tenho pouca paciência para o lirismo. Pode ser. Mas minhas expectativas para este título eram maiores.</p><p>Certa vez, notando um livro que eu lia, uma mulher me abordou. Pelo título do livro, ela pressupôs um tema que não tinha nada a ver com o conteúdo em si. Expliquei, mas ela não gostou da resposta e me perguntou: "Então, por que o livro tem esse título?"</p><p>Pensei e respondi: "sei lá". Ela me olhou com desdém, como se eu fosse analfabeto. Confesso que eu nunca tinha achado importante saber porque este ou aquele livro tem o nome <i>x</i> ou <i>y</i>. Sempre achei que era que nem nome de cachorro. O dono dá o nome que quer e pronto.</p><p>Mas a dona me traumatizou. Então adianto logo: em uma das cartas trocadas, a personagem mulher Ilana diz que o personagem homem Alec falou certa vez: "Como depois de um desastre de avião, deciframos juntos, por correspondência, a caixa-preta de nossas vidas".</p><p>Em seguida, ela mesma comenta: "Não deciframos nada, Alec. Apenas trocamos dardos envenenados". Pois é. Era isso. Viu? Xôxo. Eu disse que o livro era meio assim-assim. Agora se a tal dona aparecer e me perguntar o porque do livro se chamar "A caixa preta", a explicação taí.</p><p>Ao menos dessa eu escapei.</p><p>Companhia das Letras, 301 páginas</p><p><i>P.S.: "De amor e trevas" e "O mesmo mar", também de Oz, já aguardam pela leitura na prateleira. Os adquiri há tempos. Hummmm... mas acho que vão ficar mais um pouquinho por lá. </i></p></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-12318413528378939492023-06-21T20:41:00.001-03:002023-06-22T11:28:41.095-03:00"Sérgio Cabral, o homem que queria ser rei", por Hudson Corrêa<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgljGny0cbLU8rzJbu8aIhY3nzuKMZjwov0LDfbcEDpES-zOXxKojvoJNIty7ji91N9kctYF1m1Ud_Wp9RQ6glLorO23kVljbbEKJKotd14o9ijV-YohljicEia4tLgY-jTghFxW_3DVo6TH9pJ5s_NXwsTpg5DwL0m0RL02aCu5uTpveINoi2lo1q_/s1008/Sergio%20Cabral%20capa.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="718" data-original-width="1008" height="456" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgljGny0cbLU8rzJbu8aIhY3nzuKMZjwov0LDfbcEDpES-zOXxKojvoJNIty7ji91N9kctYF1m1Ud_Wp9RQ6glLorO23kVljbbEKJKotd14o9ijV-YohljicEia4tLgY-jTghFxW_3DVo6TH9pJ5s_NXwsTpg5DwL0m0RL02aCu5uTpveINoi2lo1q_/w640-h456/Sergio%20Cabral%20capa.jpg" width="640" /></a></div><br />Livre, leve e solto.<div><br /></div><div>Volto a um personagem já recorrente aqui no blog. E adianto que não tenho nenhuma predileção especial pelo cara, apesar de já ter lido duas outras publicações dedicadas a este cidadão - "A farra dos guardanapos", por Silvio Barsetti, e "Se não fosse o Cabral", por Tom Cardoso.<div><br /></div><div>Achei que já era leitura suficiente sobre o tipo. Qualquer outra coisa seria mais do mesmo.<br /><p></p><p>Porém, como eu tinha comprado esta edição há um longo tempo e nunca tive disposição para abri-la - pelo acima exposto -, alguns meses atrás me senti compelido a repensar. A volta às ruas de um ex-agente público condenado a 436 anos de prisão meio que me intimou a lê-lo. Seria agora ou nunca.</p><p>Reservei as horas seguintes para fazê-lo. E digeri-lo.</p><p>O livro tem uma redação fluida e uma divisão arejada. O texto de Corrêa é mais escorreito do que o dos seus colegas que versaram sobre o mesmo assunto anteriormente. A leitura não chega a ser agradável, por conta do tema, mas desce sem engasgar.</p><p>Corrêa seleciona de forma criteriosa os pontos importantes da trajetória do biografado - mas talvez não traga novidades em relação às outras edições. Ainda assim, mesmo dispondo de um mesmo conteúdo, a maneira direta como Hudson o apresenta é um diferencial a seu favor.</p><p>"O governo paralelo montado pela quadrilha de Sérgio Cabral arrecadava propina como se fosse imposto. Em troca do suborno, entregava de bandeja as obras públicas para as maiores construtoras do país. Cabral recebia mesada de 350 mil a 500 mil reais das empreiteiras, exigia também 5% sobre o valor dos contratos e até joias aceitava em pagamento".</p><p>Há que se louvar a capacidade de síntese do autor. Que se estende um pouco mais na abertura:</p><p>"Boa parte do dinheiro para as obras vinha do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, aliado político e companheiro de afagos ao ego um do outro. Em abril de 2018, Lula também foi preso na Lava Jato, condenado no caso do triplex do Guarujá, no litoral paulista, por ter recebido o apartamento de presente da empreiteira OAS, favorecida em contratos com a Petrobras".</p><p>(Lembrando que, à época em que o livro foi publicado, tanto Lula quanto Cabral estavam presos.)</p><p>Corrêa já na introdução aponta suas baterias na direção do biografado, dando o tom com o qual o livro será escrito. </p><p>"Sem esconder as extravagâncias, o governador se dava às farras em Paris, na mira das câmeras de celular, que registraram seus assessores numa dancinha de guardanapo na cabeça". Foi uma festa tresloucada, promovida por um governador de estado em viagem ao exterior. Talvez nunca antes. A efeméride mereceu um livro só para ela, como mencionei acima e resenhei aqui no blog.</p><p>"Cabral usava os helicópteros do estado para levar a mulher, os filhos, os amigos e até o cachorro à casa de praia nos fins de semana e feriados", enumera o autor. "Comprava joias em dinheiro vivo, investia em diamantes guardados num cofre na Suíça e engordava uma rede de contas bancárias secretas em vários países. Segundo a Procuradoria da República, Sérgio Cabral chegava a gastar 4 milhões de reais por mês (valores da época)".</p><p>Joias eram o "presente" que o governador mais gostava de dar à sua nova e jovem esposa. Caprichava no mimo. Passeando em Paris com a mulher e mais alguns empreiteiros, Cabral pegou pelo braço o dono da Construtora Delta, Fernando Cavendish, e entrou com ele na joalheria Van Cleef & Arpels. Lá já estava reservado um anel de ouro branco com brilhante. O governador mandou a letra para o empreiteiro: "Estou presenteando a minha esposa, gostaria que você pagasse".</p><p>Segundo Cavendish depôs à Justiça Federal, "pagou no cartão de crédito a joia de 220 mil euros". Ressaltou que "nunca tinha feito nada acima de dois dígitos nem pra mim, não tenho esse costume".</p><p>Quando da reforma do Maracanã (sexta? sétima?), a Odebrecht ficou com 70% da obra. A construtora baiana estranhou que a Delta tivesse abocanhado os outros 30%, reclamando que a parceira "nem tinha capacidade técnica". Mas, como disse o autor, a queixa foi "sem saber da força do anel".</p><p>O governador era generoso com a família na distribuição do dinheiro público desviado. Segundo Carlos Miranda (que recebia a propina e a repassava aos Cabral) confessou à justiça, ele "entregava dinheiro vivo aos pais de Serginho, Magaly e Sérgio Cabral". Deu os valores, dizendo que "a mesada chegaria a R$ 100 mil reais em 2013 e 2014. A irmã do governador recebia 25 mil. O filho mais velho, João Pedro, 10 mil, e o mais novo, com 18 anos, 5 mil. O irmão ganhou 240 mil de presente".</p><p>Cabral já praticava o "vamos cuidar das pessoas", futuro slogan do bispo Marcello Crivella (genro do Bispo Macedo), hoje condenado por corrupção. Segundo o autor, uma das empreiteiras que repassavam propina, a FW, gastou mais com a reforma dos apartamentos da família do que com a reforma do hospital Rocha Faria, "unidade de emergência com 198 leitos e que teve o atendimento limitado, entre outros motivos, por causa da presença de moscas no centro de terapia intensiva".</p><p>A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro era mesmo uma mina de dinheiro (daí infere-se o porquê da briga acirrada pelo Ministério da Saúde, em qualquer governo). Segundo o autor, o secretário Sérgio Côrtes "cobrava 10% de propina nos contratos da Secretaria, o dobro do praticado pelo esquema do governador com as empreiteiras".</p><p>Hudson destrincha o número avantajado, explicando que os 5% do Sergio Cabral já estavam incluídos nesse bem-bolado de 10%. "Côrtes ficava com 2% para ele; 1% para Cesar Romero, o seu braço direito; 5% para o governador; 1% para o Tribunal de Contas do Estado, que deveria fiscalizar os gastos públicos; e 1% para custear a operação de toda a falcatrua".</p><p>Como Corrêa informa que em sete anos o esquema faturou 16,2 milhões, e 1% desse valor seriam 162 mil, fico me perguntando como gastar essa baba custeando "a operação de toda a falcatrua".</p><p>O presidente da Andrade Gutierrez, Rogério Nora de Sá, então há 5 anos no cargo e com 30 anos de carreira na construtora, revelou à Justiça sua surpresa quando "Sérgio Cabral prometeu contratos milionários, mas antes queria propina adiantada". Segundo o executivo, "o governador exigia repasse mensal de 350 mil reais, uma mesada, adiantamento para a organização criminosa que se formava. Quando o esquema começasse a funcionar, o governo cobraria 5% sobre o faturamento das obras."</p><p>O acordo não deu muito certo. A Andrade Gutierrez pagou 4,5 milhões de reais ao longo de doze meses, mas ficou no prejuízo, segundo Sá.</p><p>Um depoimento dele sobre o pagamento de propina no contrato de construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj, foi importante para elucidar o que havia por trás do projeto bilionário da estatal. A Andrade Gutierrez, a Odebrecht e a Queiroz Galvão (o, por assim dizer, primeiro time da propina) assinaram um contrato de 1,17 bilhão de reais.</p><p>Vale contextualizar. O então presidente Luis Inácio Lula da Silva discursou, em 31 de março de 2008, aniversário do golpe militar de 1964. Côrrea reproduz alguns trechos da fala presidencial.</p><p>"Quando você decide fazer um empreendimento desses, precisa arrumar parceiros privados para fazer parceria", destacou Lula, emendando: "E foi isso que a Petrobras fez". O presidente, envergando a jaqueta branca com o brasão da República, prosseguiu. "Segundo, você precisa contar com a boa vontade do governador local para não criar dificuldades e se colocar à disposição para ajudar o empreendimento a sair".</p><p>Acho que ninguém tem dúvidas no quanto o "governador local", Sérgio Cabral, se empenhou para o "empreendimento sair". O próprio Lula reconheceu o esforço: "Foi isso que o nosso querido Sérgio Cabral fez", acrescentou, para em seguida agradecer: "Muito obrigado, Sérgio, pelo comportamento republicano de fazer as coisas acontecerem".</p><p>Segundo o depoimento de Nora de Sá, além da fatia a ser paga ao governo federal, "o governador cobrou propina de 1% sobre as obras de terraplanagem da Comperj". Sá procurou o gestor da propina do governo federal dentro da Petrobras, o então diretor de abastecimento da estatal, Paulo Roberto Costa, que confirmou o acordo e respondeu: "Vocês vão ter que honrar".</p><p>Aqui constatamos o sentido mais amplo que esse pessoal dava às palavras "republicano" e "honra".</p><p>No capítulo "Propina depositada no exterior", menção honrosa para a Lei de Repatriação de Recursos. A lei, sancionada em janeiro de 2016 pela então presidente Dilma Rousseff, "permitia aos titulares de contas ilegais trazerem o dinheiro de volta ao Brasil sem punição, apenas com pagamento de 15% de imposto e mais 15% de multa". Um dos doleiros contratados por Eike, para repasse de suborno a Sérgio Cabral, sacou lá fora 16,5 milhões de dólares para "repatriamento".</p><p>Imagino que você tenha achado muito dinheiro, né? Veja este outro trecho do livro, que comenta a devolução de recursos feita por um grupo de doleiros, em acordo de delação celebrado com a Lava Jato: "Após a posse do governador, em 2007, o volume de propina começou a crescer até chegar aos 100 milhões de dólares, que os irmãos resolveram devolver".</p><p>Corrêa registrou também o período passado no presídio pelo governador e pela primeira-dama. Descreve as regalias e também o infortúnio da inspetora carcerária Amanda Dutra e Silva, que se recusava a dar tratamento privilegiado à presidiária ilustre. Moral da história, a prisioneira Adriana Ancelmo acabou solta, para "cuidar dos filhos", e a inspetora foi transferida, como punição.</p><p>Era muita gente graúda na cadeia, um povo acostumado à alimentação sofisticada e que não costumava olhar o valor da conta. Reuniram a politicada toda na galeria C. Abro espaço ao autor.</p><p>"Enquanto nas galerias A e B entram apenas as quentinhas, fornecidas no almoço e no jantar, a C recebe várias sacolas, sacos de gelo e carrinhos de supermercado abastecidos na cantina. Nessa galeria, a liberdade é tanta que só dá para diferenciar preso de inspetor por causa do uniforme".</p><p>Dá para termos um recorte dos que frequentavam a galeria C, pela descrição feita por Corrêa. "Ex-secretário de Saúde, Sérgio Côrtes dividia a cela C6 com o deputado Paulo Melo, presidente da Assembleia Legislativa de 2011 a 2015, acusado de receber propina das empresas de ônibus junto com o colega parlamentar Edson Albertassi, recolhido na C5".</p><p>"Mais adiante, na C8", continua esmiuçando o autor, "seu sucessor na presidência da Alerj, Jorge Picciani, repartia o espaço com o filho, Felipe, suspeito de lavar dinheiro da corrupção com a compra de gado". A galeria era comprida. "A C2 abrigava o homem da mala de dinheiro, Carlos Miranda, e o ex-secretário de Obras Hudson Braga, acusado de cobrar propina de 1% das empreiteira, a chamada <i>taxa de oxigênio</i>".</p><p>O ex-governador também residia nesta galeria, devidamente protegido, pois cadeia é um lugar perigoso. "Sérgio Cabral e o ex-secretário de Governo Wilson Carlos ficaram na C9. Ali também dormia o ex-policial Flávio Mello dos Santos, que acompanhava o ex-governador desde Bangu e atuava como seu guarda-costas".</p><p>Pelo anel de 220 mil euros, pelos 100 milhões de dólares devolvidos pelos doleiros, pela mesada de 350 mil paga por uma das empreiteiras "parceiras", a gente vê que não tinha amador no ramo da corrupção. Agora o que não tem é Lava Jato. Os políticos corruptos foram todos para a rua (e para Brasília) e hoje quem periga ser preso são os que caçaram os corruptos. Isso aqui é Brasil.</p><p>Sérgio Cabral foi o último a ser solto. Sua própria mãe se indignava na mídia, questionando porque "somente o filho dela continuava preso". Agora não mais.</p><p>Serginho flana pelo Rio. Que ninguém pense que ele tenta se esconder, envergonhado, ou que algum contribuinte espoliado o ameace. Nada. Tudo de boa. Ele está inclusive tentando se reposicionar no mercado. De vez em quando, alguém implica.</p><p>Esta semana ele foi com a família almoçar no Centro do Rio, no restaurante Casa Porto - segundo o jornal, um tradicional reduto esquerdista -, e, após sua saída, o gerente mandou lavar o restaurante com sal grosso. Que indelicadeza.</p><p>Pelo que li algumas semanas atrás, em uma coluna de amenidades da política, sob o título "Cabral e Bretas disputam seguidores e se arriscam como influencers", assinada por Bernardo Mello Franco, o ex-governador posta no Instagram indicações de séries de TV.</p><p>Rapaz, provável que o Sérgio Cabral tenha se tornado um crítico responsa. Nos seus seis anos de prisão, deve ter maratonado todas as séries, mais de uma vez. Suspeito (sem trocadilho) que valha a pena conferir as dicas.</p><p>Editora Primeira Pessoa, 223 páginas</p></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-42112127752653118962023-06-14T19:34:00.000-03:002023-06-14T19:34:44.616-03:00"A grande luta", por Adriano Wilkson<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhoi3x2XSrYTAAvfhLSK5yefO_KQEJjfCCwhqq8vptzMDjOVd-QNXXDBfBBD-2W9QNDyDxW6EJg6aQkqSc5UHcfsbqjuqnsPuHOrJRmFDGQdLaq_X851mIpx8Oq3tX-An2SYtW1LsUJUp59oJ1JcWnbo3E4GFFCPwgoqFQN0kB8fs3FLv0WMwyHW4rJ/s3729/A%20grande%20luta.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2445" data-original-width="3729" height="420" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhoi3x2XSrYTAAvfhLSK5yefO_KQEJjfCCwhqq8vptzMDjOVd-QNXXDBfBBD-2W9QNDyDxW6EJg6aQkqSc5UHcfsbqjuqnsPuHOrJRmFDGQdLaq_X851mIpx8Oq3tX-An2SYtW1LsUJUp59oJ1JcWnbo3E4GFFCPwgoqFQN0kB8fs3FLv0WMwyHW4rJ/w640-h420/A%20grande%20luta.jpg" width="640" /></a></div><br />O que o público acompanha, na maioria dos esportes, são os atletas de elite. As grandes competições. Os astros e seu glamour. As habilidades extraordinárias e personalíssimas que fazem deles os campeões que são. Ali. Sampras. Phelps. Senna. Messi.<p></p><p>No MMA (nos primórdios chamado carinhosamente de "vale-tudo") não é diferente. No Brasil a massa se habituou a vibrar com estrelas do calibre de Anderson Silva, Minotauro, José Aldo, Charles do Bronx, Vanderlei Silva, Amanda Nunes. Campeões consagrados.</p><p>Mas a particularidade, aqui, em "A grande luta", é que o foco não está nos ídolos da luta. O autor decidiu acompanhar, in loco, os atletas que ainda penam em busca de um lugar ao sol. Praticamente desconhecidos, disputam os pequenos torneios, quase sem plateia. Trabalham em dupla jornada, dividindo empregos "normais" com os treinos diários.</p><p>Se esforçam tanto (ou mais) que os grandes nomes. Só que simplesmente não chegam lá.</p><p>Ficam pelo meio do caminho. Desistem. Ou, melhor dizendo, a carreira desiste deles.</p><p>O meio-médio paulistano Acácio Pequeno é o protagonista do livro de Wilkson. O lutador é a encarnação do típico aspirante a lutador do UFC. Seu colega de treino, Mohamed Said, é outro. O treinador de ambos (e também árbitro e promotor de eventos), Magno Wilson, sonha em ver os seus pupilos voarem alto.</p><p>A mesma história de tantos outros <i>guerreiros</i> que vão sendo enfileirados pelo autor: Flávio Rogério (o Legionário), Carlos Lokeira ("Sangue nos Olhos"), Gustavo Oliveira ("Pata Voadora"), Robson Negão, Thiago Pará, Clécio Bruto. Há também algumas exceções, que chegaram lá - mas não ficaram, como Markus Maluko, ou que superaram todos os obstáculos, como o mineiro Paulo Costa, o Borrachinha, que atravessou o breu dos eventos mal iluminados e foi brilhar no UFC - onde virou estrela midiática.</p><p>Wilkson não se limita a narrar o trajeto enviezado e cheio de frustrações dos candidatos ao Olimpo. Conta também como ele foi construído, por quem e de que forma. Assim, ele faz uma digressão à família Gracie, ao desenvolvimento do jiu-jitsu brasileiro, à criação do Pride e do UFC.</p><p>Insere também uma narrativa pessoal, relatando seus próprios esforços para treinar e, pasme, protagonizar uma luta real de MMA. Fez do propósito absurdo um gancho para denunciar como os pequenos eventos aceitam qualquer um - até mesmo ele - para lutar, sem fazer uma checagem do histórico do lutador e suas reais habilidades para entrar no ringue contra um outro sujeito disposto a desacordá-lo debaixo de pancada.</p><p>Um conteúdo pra lá de interessante - principalmente para aqueles que não conhecem nada do tema - e escrito com técnica e delicadeza. O autor é do ofício e se revela mais maduro do que sua idade permitiria supor. Mas o livro reserva "surpresas" bem maiores que esta.</p><p>Em um ambiente tão hostil e competitivo como o do vale-tudo, paradoxal que seu principal protagonista (a silhueta de contorno africano que estampa a capa) mescle doçura e resignação. São características antagônicas às esperadas para um lutador, que depende da agressividade e da ambição para sobressair.</p><p>Mas, ainda que doce e resignado, Acácio dos Santos prosseguiu em perseguição ao sonho dourado, mesmo depois do livro acabar (personagens reais são assim, ignoram o fim do livro). Até porque ser lutador sempre foi o melhor emprego à disposição.</p><p>O grande problema é que o MMA é um esporte muito difícil. Com carradas de imprevisibilidade, pois o duro universo das lutas não é ciência matemática. Não é também como um jogo de vôlei, um esporte coletivo, em que equipes tecnicamente desniveladas vão ter sempre um mesmo resultado, nem que joguem cem vezes. A melhor sempre vence a mais fraca.</p><p>Joguinho chato, a propósito...</p><p>Mas, numa luta, num mau dia um lutador completo pode perder para um adversário limitado. Uma mão que entra pode nocautear o favorito nas bolsas. Juízes num mau dia (dias ruins que geralmente são vários no mês) podem inverter um resultado. Querem um exemplo deste samba do <i>uppercut </i>doido? Vejam o que aconteceu depois que Wilkson pôs o ponto final no seu livro. </p><p>Na primeira luta descrita no livro, Acácio Pequeno tinha vencido Quemuel Ottoni. Este mesmo Quemuel tinha finalizado dois anos antes o brasileiro (então desconhecido no mundo do MMA) Alex Pereira. Mas o destino dos três foi muito diferente. Pereira - hoje famoso com o codinome "Poatan" -, que perdeu para Quemuel, que perdeu para Acácio, entrou no UFC e se tornou campeão mundial pela organização.</p><p>Com enoooorme mérito, diga-se de passagem.</p><p>Acácio, dublê de segurança e lutador, como eu disse acima, não abandonou a meta de se tornar um lutador <i>full time</i>. Que pudesse viver somente da luta. Apesar da baixa frequência no <i>cage</i>, continuou lutando - e vencendo - após a publicação do livro.</p><p>Venceu quatro lutas em sequência, de 2018 a 2021 (todas na decisão dos juízes, sendo três por unanimidade e uma em decisão dividida). Na quinta luta acontar daí perdeu para Marcos Brigagão em setembro de 2021; mas foi à forra em abril do ano seguinte.</p><p>Foi aí que surgiu a tão ansiada chance de uma vida (a dele, né), quando participou, em julho de 2022, do evento criado para revelar promessas para o UFC, o "Dana White Contender Series", o DWCS. Pequeno enfrentou o sueco Anton Turkalj, numa luta amarrada. Eu vi. Acácio perdeu na decisão dos juízes, por 30x27, 29x28 e 29x28.</p><p>Foi a oitava vitória consecutiva de Turkalj, que tinha o cartel perfeito de oito vitórias e nenhuma derrota. O sueco - que aparentava desdém e arrogância nas entrevistas pré-luta -, após derrotar Acácio, conseguiu o almejado contrato com o UFC. Desde então, fez duas lutas, ambas contra brasileiros. Foi finalizado com um mata-leão pelo baiano Jaílton Almeida, o Malhadinho (ou <i>Malhagomedov</i>, na troça pelo seu alto nível na luta agarrada, à altura dos daguestaneses), e perdeu por decisão unânime para o invicto mineiro Vitor Petrino, o Cabuloso.</p><p>Petrino, 8-0, também conseguiu acesso ao UFC através do DWCS, ao nocautear (pela segunda vez) o brasileiro Rodolfo Bellato (eles já haviam lutado em um evento anterior). Pois este mesmo Bellato foi o último adversário de Acácio Pequeno, no mês passado, pelo LFA. De acordo com a papeleta dos juízes, Acácio foi derrotado, por decisão unânime.</p><p>É ou não é uma uma dança das cadeiras?</p><p>Quer ver? O Malhadinho, atual sensação do UFC, já com luta marcada contra o top 5 da organização, o americano Curtis Blaydes, tem o cartel de 19-2, tendo vencido as últimas quatorze lutas. As únicas duas vezes em que Jaílton saiu do <i>cage</i> derrotado foram em 2018, contra Bruno Assis, por decisão dos juízes, e em 2017, nocauteado aos 16 segundos de luta pelo cearense Tyago Moreira, o Buda.</p><p>Buda, o selvagem nocauteador de uma das maiores promessas atuais do UFC, o temido Jailton Almeida, foi derrotado em dezembro de 2020 por... Acácio Pequeno dos Santos.</p><p>Tem vezes que parece bingo. Mas é MMA.</p><p>Intrínseca, 189 páginas</p><p><i>PS.: Notei agora que o autor, o jovem jornalista Adriano Wilkson, é um dos que estão à frente da apuração da máfia das apostas, mais um crime descoberto no âmbito do futebol profissional. Este, quanto mais mexe, mais fede. Dezenas de jogadores das séries A e B do futebol brasileiro foram subornados. Alguns, julgados, já foram eliminados do esporte. Outros receberam penas leves. Sabe-se lá quantas centenas jamais serão descobertos. Reitero minhas reverências ao autor.</i></p><p><i>Ilustração: capa do livro tendo ao fundo um outdoor, às margens da BR 242 (a rodovia Milton Santos, na altura de Itaberaba, Bahia), divulgando investimento no esporte. O estado tem forte tradição no mundo da luta. Li o livro na estrada, aboletado num semi-leito da Real Expresso.</i></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-25095126346350711192023-06-07T13:23:00.000-03:002023-06-09T13:24:07.035-03:00"Latim em pó", por Caetano Galindo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigE6ZoQHfgcrTwt3ZyB5sd_OUblg5p88ZnkgHM9eb68mEKIqWPX42mrJ_Y0JhTAP9JC3tsoMt_UW84tRaatwaKQeNnGOWTVO4j3naRododgo9PTHEp4XYs4sZyMwiSQAsQEDUtPvzcZkXxgsiHOEXUy9-XdtSzk06tPVpKQG9TWYi5_z_qCZaimpuI/s3872/Latim%20em%20p%C3%B3.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2464" data-original-width="3872" height="408" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigE6ZoQHfgcrTwt3ZyB5sd_OUblg5p88ZnkgHM9eb68mEKIqWPX42mrJ_Y0JhTAP9JC3tsoMt_UW84tRaatwaKQeNnGOWTVO4j3naRododgo9PTHEp4XYs4sZyMwiSQAsQEDUtPvzcZkXxgsiHOEXUy9-XdtSzk06tPVpKQG9TWYi5_z_qCZaimpuI/w640-h408/Latim%20em%20p%C3%B3.jpg" width="640" /></a></div><br />Uma breve e interessante excursão pela história da linguagem e dos idiomas - descendo rios, cruzando mares e desaguando no nosso português. Para quem gosta do tema, um pitéu (apesar, temo, da abordagem superficial). Os mais exigentes talvez digam que o recheio lembre mais um pastel de vento. Gostosinho, mas com mais lero-lero do que conteúdo.<div><br /></div><div>Oito ou oitenta? Talvez a questão nem esteja aí. De bom é que somos apresentados a uma série de exemplos curiosos da evolução das línguas, priorizando as origens do latim e seus desdobramentos. Certamente temos aí a parte mais instigante do texto de Galindo.</div><div><br /></div><div>Eu, que além de ignorante no geral sou leigo no específico, adorei saber um monte de <i>coisa</i> (a propósito, essa ausência do "s" praticada pelo populacho em uma palavra que o vernáculo determina ser posta no plural também é defendida pelo autor; ele pretende, aliás, um uso bem mais concessivo, se deliciando com "os menino caiu"; eu, mais conservador, acho que aí já é demais).</div><div><br /></div><div>O bom é que ele volta bastante no tempo. Cata fósseis. Entre outras, conta ele que em <i>archi</i>, língua falada no Daguestão, um verbo pode assumir "mais de um milhão de formas diferentes em situações reais de uso". E eu, bobinho, achando que a maior virtude dos daguestaneses era o sambô.</div><div><br /></div><div>E também que acredita-se hoje que o sânscrito é irmão do grego e do latim, e não seu antepassado.</div><div><br /></div><div>Mais: nos recorda que "soer" (costumar) caiu em desuso. Verdade. E - complemento eu - como sói acontecer às melhores tradições d'outrora...</div><div><br /></div><div>Outro <i>tour</i> linguístico proposto por Galindo é o leque de variações de uma mesma palavra com raiz no latim, e que foi adaptada em cada região europeia de fala românica com o acento peculiar da população local. As derivações, aponta o autor, costumam seguir um padrão reiterado.</div><div><br /></div><div>É o caso do <i>octo</i> (latim), que virou <i>oito</i> (português), <i>ocho</i> (espanhol), <i>huit</i> (francês), <i>otto</i> (italiano) e <i>opt</i> (romeno). Ou <i>lacte</i>, que virou <i>leite</i> (português), <i>leche</i> (espanhol), <i>lait</i> (francês), <i>latte</i> (italiano) e <i>lapt</i> (romeno).</div><div><br /></div><div>Legal. Os genuinamente apaixonados pelo latim desfrutaram até 2019 de uma rádio que transmitia diariamente as principais notícias do planeta exclusivamente em língua de missa, a <i>Nuntii Latini</i>, uma emissora da... Finlândia. Não escutou? perdeu.</div><div><br /></div><div>Eu não sei você, mas algumas expressões sempre me deixaram encafifado. Como a tal "a última flor do Lácio". Ok, vem do poema do Bilac, mas o que o Lácio tem a ver com as calças? Não sabia o burrinho aqui, até o Galindo me contar, que Lácio é a forma aportuguesada de Lazio, região italiana que abriga Roma e que é o berço do latim (a propósito, "lácio" em latim é "latium"). Aí ficou fácil.</div><div><br /></div><div>A Lazio, time de futebol da<i> bota</i>, eu conhecia. O Lácio, só de ouvir (o Bilac) falar...</div><div><br /></div><div>Vale mencionar que o latim que pariu essa cacetada de idioma - português, romeno, francês, italiano, calabrês, espanhol, catalão, sardo, dalmático, vêneto e o escambau - não era a língua douta, falada nos ambientes cultos de Roma, e sim a praticada pelo <i>vulgus</i>. O povão. Vulgo o zé povinho (como também ensina Galindo, <i>vulgus</i> nada mais é que "povo").</div><div><br /></div><div>Ainda assim, para que este idioma praticado pelo populacho atravessasse as épocas, precisava ser registrado por escrito. <i>Verba volant, scripta manent</i>, como qualquer tabelião sabe. "As palavras ditas voam, as escritas permanecem". Mas só no século IV uma espécie de gramática - na verdade, uma lista de como se devia escrever e como não se devia escrever - surgiu, o <i>Appendix Probi</i>. </div><div><br /></div><div>A zorra total que era a grafia começou a ganhar limites. Regras eram delineadas (tipo você deve escrever "todos" e não "todes"). Mas, como é praxe na vida comum, com o passar do tempo boa parte das regras foi para o vinagre - enquanto outras, mais azeitadas pela prática popular, ganharam seu lugar na salada geral.</div><div><br /></div><div>O português do qual nos orgulhamos hoje foi gestado mais ou menos por esta época, num vatapá (opa, essa palavrinha preta chegou mais de mil e duzentos anos depois) que embolava esse latim vulgar - exportado Europa afora pela invasão romana - com a linguagem dos falantes celtibéricos.</div><div><br /></div><div>Mas não ficava só nisso aí, não. Vieram para a Península os bárbaros, no caso os vândalos, os alanos e os suevos, no intuito de aporrinhar os romanos e tascarem um pedaço do território, detonando a - mui alardeada nos filmes da Metro - famosíssima <i>pax romana</i>.</div><div><br /></div><div>Nestas ondas bárbaras, os suevos foram os que privilegiaram (um eufemismo para "atacaram") os lusitanos, e sua presença demorada deixou marcas no idioma galego-português, como, por exemplo, com a queda das consoantes <i>n</i> e <i>l</i> em ambientes intervocálicos. Chique, né?</div><div><br /></div><div>Traduzindo essa bagaça em miúdos, a tal queda significa a supressão que especificamente o português fez de certas sílabas, presentes, não obstante, no latim e nas outras línguas românicas dele originárias. Confundi? Os exemplos permitem a gente entender melhor. </div><div><br /></div><div>O latim vulgar <i>colore</i> virou <i>color</i> em espanhol, <i>couleur</i> em francês, <i>colore</i> em italiano e <i>culoare</i> em romeno. Mas em português esse <i>l</i> entre as vogais (daí o intervocálico) foi limado, ficando <i>cor</i> em português. A mesma coisa com <i>dolor</i> (para nós,<i> dor</i>), <i>caliente</i> (para nós, <i>quente</i>) et cetera - ó o latim aí.</div><div><br /></div><div>Curioso é que as palavras de uso mais sofisticado derivadas desses substantivos mantiveram em português o "l" de nascença latina, como um marcador genético: <i>colorido, dolorido, caloroso</i>. A beleza dos idiomas é que eles deixam pistas claras como um pé deixa uma pegada no barro.</div><div><br /></div><div>(Se você está achando complicado, a culpa é minha - garanto que o Caetano faz parecer simples.)</div><div><br /></div><div>O livro é rico nestas pequenas descobertas agradáveis sobre a língua que praticamos todos os dias, desde que aprendemos a falar (põe tempo nisso). E não discrimina os proprietários da norma culta, os eruditos, daqueles que falam apenas a língua das ruas, os tidos por ignorantes.</div><div><br /></div><div>Como vemos no texto, aliás, o ignorante pode até fundar a sua própria língua. O autor nos traz o conceito do "idioleto", que considera que cada falante "fala uma versão singular do próprio idioma", sendo, segundo Caetano, "o idioma de apenas um usuário".</div><div><br /></div><div>Talvez eu mesclar <i>putz</i> com <i>cáspite</i> seja um sintoma disso. É o meu hilário idioma particular, uma farofa que inclui centenas de palavras herdadas de índios, pretos, turcos e galegos. Tenho inclusive minhas prediletas por origem, como saudade, dengo e jururu. Ou almanaque, cafuné e curumim.</div><div><br /></div><div>Mas palavras são palavras - cantava Bethânia - e um idioma é muito mais complexo que isso. E, para explicar seu funcionamento, o autor não tem como fugir a um desenrolar mais acadêmico do tema. A partir do momento em que o português está estabelecido e oficializado como a língua pátria lusitana, Caetano se debruça sobre o desenvolvimento do idioma no Brasil.</div><div><br /></div><div>No meu modesto entendimento, porém, é a partir daí que ele dá uma pisada na bola, puxando a brasa pra sua sardinha de teórico e nos caitituando para abraçar a perspectiva que ele, Galindo, criou sobre a formação do nosso português atual.</div><div><br /></div><div>Falando da influência dos diversos idiomas que conviveram, no Brasil, com o português do colonizador, ele defende - grosso modo - que os idiomas indígenas perderam a prevalência e um eventual monopólio futuro da linguagem brasileira, por conta da presença dos escravos africanos.</div><div><br /></div><div>Tese ousada e original. E como ela se aplica, na visão do autor? </div><div><br /></div><div>Em resumo, o português teria sido a língua comum com que a elite portuguesa se comunicava com a população escrava. Essa mesma população negra precisava do português para se entender entre si, já que vinham de tribos e regiões diferentes da África. Ou seja, os escravos não se entendiam uns com os outros em "africanês" e precisavam do português para interagir e integrar a cadeia produtiva (produtiva para o branco, e cadeia para o negro, troço eu).</div><div><br /></div><div>Avançando na tese de Caetano Galindo, o idioma português somente teria se disseminado Brasil afora porque os escravos eram o motor da economia nacional e foram distribuídos do Oiapoque ao Chuí - e a língua de uso comum entre brancos e pretos era o português. Disse o autor:</div><div><br /></div><div>"Se é para pensarmos no português brasileiro como algo que se encontra num caldeirão, é preciso reconhecer quanto o conteúdo desse caldeirão teve que ser mexido e remexido para produzir a nossa atual paisagem linguística. E é preciso reconhecer também que os primeiros e mais importantes desses movimentos foram determinados pela grande massa de falantes africanos que iam carregando e <i>modificando</i> essa língua durante todo o processo" (os itálicos são meus). "<i>Refundado</i> e recaracterizado por eles", conclui.</div><div><br /></div><div>Todo respeito ao autor e à sua intenção de transformar seu livro - de uma simpática coleção de curiosidades sobre a evolução do idioma ao patamar de uma tese linguística inovadora. Mas não vejo a situação da mesma forma que ele vê.</div><div><br /></div><div>A mim parece que seu ponto de vista está distorcido por um viés que hoje denominamos<i> identitário -</i> no caso, ele visa atribuir à uma fatia étnica (a preta) uma propriedade que ela não possui (por mais que ela tenha incontáveis méritos, que não estão aqui em questão ou em análise).</div><div><br /></div><div>Galindo se estende, frisando que "apesar das adversidades, foi a língua falada por negros e mestiços que dominou o Brasil. Somos um país que fala português como fruto direto da presença negra". O autor se entusiasma com a própria tese e chega mesmo a poetizar em cima do tema: "O português brasileiro foi um broto africano, flor de Luanda".</div><div><br /></div><div>Eu diria que Caetano superestimou a contribuição escrava neste quesito. Mas ele vai além. </div><div><br /></div><div>"Talvez não vejamos nosso 'português negro' não porque ele não esteja aqui, mas por estarmos o tempo todo imersos nele. No Brasil, o pretoguês é (...) o único português real".</div><div><br /></div><div>Sem nenhuma desconsideração pessoal com o autor, julgo a afirmação descabida e pretensiosa.</div><div><br /></div><div>Fosse real o que propõe o neologismo de Galindo, os portugueses de Portugal, não sujeitos a estes quatro séculos de influência africana, não entenderiam o português <i>refundado</i>, o tal <i>pretoguês</i>. Mas parece que eles não têm problema nenhum em entender o idioma. E nem nós o idioma deles. Afinal de contas, ambos - brasileiros e portugueses - falamos o mesmíssimo idioma: o português.</div><div><br /></div><div>Não preciso ir longe. Quem acompanha futebol já se familiarizou com a avalanche de técnicos portugueses dirigindo as principais equipes do país. Abel Ferreira, um português multicampeão treinando o clube paulistano Palmeiras, dá entrevistas coletivas semanais e discute acaloradamente com os árbitros locais. Suas entrevistas não têm legenda e os repórteres brasileiros entendem em minúcias cada coice verbal do gajo. Os árbitros já deram a ele 50 (cinquenta) cartões, entre amarelos e vermelhos, pelas barbaridades que ele diz à beira do campo.</div><div><br /></div><div>Parece que todo mundo entende bem o português do português. </div><div><br /></div><div>É inegável que é mais bem falado que o nosso, não porque tenhamos qualquer complexo de inferioridade diante do domínio do idioma por parte do "colonizador", mas porque o discurso dos técnicos portugueses tem mais ideias, mais conteúdo, mais clareza, mais conceitos e abstrações do que o discurso repleto de clichês temáticos e verbais oferecido pelos treinadores brasileiros.</div><div><br /></div><div>No caso, a diferença não está no idioma, mas no grau de conhecimento e na capacidade de expressão.</div><div><br /></div><div>O próprio autor nos traz a teoria por trás deste uso: é a <i>diastrática</i>, a variação que o idioma apresenta dentro das diferentes camadas sociais. É como se o português praticado pelo palestrante nativo de Portugal pertencesse a uma camada social superior, advinda de uma bagagem acadêmica superior.</div><div><br /></div><div>Galindo inclusive se enrola quando faz alusões preconceituosas ao português paulistano, que só teria absorvido formas mais populares da língua quando "transportadas" pelo imigrante italiano, pois antes o <i>quatrocentão</i> se recusaria a absorver o idioma popular, contaminado pelos negros. Creio eu que a contaminação é a pauta identitária, não o processo natural de evolução do idioma. </div><div><br /></div><div><div>Afinal, Galindo diz no início que "as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes do que o coletivo de seus usuários. Se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isso aponta para a necessidade, sim de alterar a regra e fazer com que ela expresse mais adequadamente os os usos da língua na sociedade."</div><div><br /></div><div>Com isso estou totalmente de acordo. Mas ele se contradiz, ao final, quando afirma que "a narrativa desse embate entre o português brasileiro real e a norma escolar ainda está muito longe de ser resolvida e, nas últimas décadas, assumiu definitivamente o aspecto de um confronto entre os mundos rural e urbano".</div><div><br /></div><div>Ora, ou a evolução do idioma é orgânica, e determinada pelo seu coletivo, ou ela é um confronto das ruas com a academia. O que acha, na verdade, o autor? Em se tratando do idioma, vale a voz do povo ou o regramento imposto pelos estudiosos? (normatização que, muitas vezes, é uma tentativa elitista de apropriação da língua, em prol de um determinado grupo de interesses em comum).</div><div><br /></div></div><div>Se o latim que está no DNA do português que falamos hoje vem do vulgo, e não do latim culto, a tese que o teórico Caetano Galindo defende é a visão culta (a dele, de linguista acadêmico) de uma pretensa particularidade popular, em prejuízo da evolução natural da língua. </div><div><br /></div><div>A língua é o uso coletivo dos seus usuários. Estou com ele neste axioma (palavrinha que não vem do latim, e sim importada do grego <i>axios</i>). E, mais, acho que os estudos podem nos contar o passado das línguas, mas não podem modificar o seu presente, nem determinar o seu futuro.</div><div><br /></div><div>A língua é o que o povo fala, e o povo é todo mundo. Senão, nem tinha serventia a tal da <i>diastrática</i>.</div><div><br /></div><div>Companhia das Letras, 227 páginas</div><div><br /></div><div><i>Obs.: A editora costuma ter uma revisão caprichosa. Não foi o caso dessa pequena edição. O "momumento" na página 21 e o "bossa bronquice" na página 30 não poderiam ter passado em branco (aproveitando que - por enquanto - a expressão ainda não foi cancelada pelo azedume identitário).</i></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-49183104431333082232023-05-21T16:40:00.000-03:002023-05-26T16:59:42.363-03:00"Hanns & Rudolf", por Thomas Harding<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjgdrSlS8OhLVSJtBkNPbWyLNFvmo_Fy0gMqX0kAjG1nLsm06KEpJzCRGhLJy-9rFx2jwGy3Etp3wiMjQvwHFH8igMwXElGg4rBTABnRmbE4bVFK9qW7ma0-j1exQIjkirbbZGomsi9RwR3SJe-1sD_3Mg2K9N0-JSzxWTXQUOQ49b68sgjQxRuY4tn=s3024" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1800" data-original-width="3024" height="380" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjgdrSlS8OhLVSJtBkNPbWyLNFvmo_Fy0gMqX0kAjG1nLsm06KEpJzCRGhLJy-9rFx2jwGy3Etp3wiMjQvwHFH8igMwXElGg4rBTABnRmbE4bVFK9qW7ma0-j1exQIjkirbbZGomsi9RwR3SJe-1sD_3Mg2K9N0-JSzxWTXQUOQ49b68sgjQxRuY4tn=w640-h380" width="640" /></a></div><br /><div>Apenas como exercício de imaginação, suponha que você é um jornalista que descobre que seu tio-avô participou da Segunda Guerra Mundial. Como intérprete do Exército britânico. </div><div><br /></div><div>Mais: que ele foi um dos primeiros militares aliados a interrogar os criminosos de guerra - e obteve confissões dos responsáveis pelos campos de concentração e de extermínio. Uau.</div><div><br /></div><div>E não só: que sua investigação foi decisiva para localizar, prender e condenar Rudolf Höss, o comandante-em-chefe de Auschwitz. E que, uma vez preso, o meganha confessou ter dado cabo de dois milhões e meio de civis inocentes, entre homens, mulheres e crianças.</div><div><p></p><p>E descobrir tudo isso assim do nada, na bucha. É de fazer o sujeito cair para trás, né?</p><p>Pois foi justo o que aconteceu com o jornalista Thomas Harding. E ele descobriu a pontinha do iceberg de toda essa trama em pleno funeral do tio, em 2006. Sessenta anos após o fim da guerra.</p><p>O segredo durou seis décadas. O tio, enquanto vivo, sempre se recusara a falar. Mas, com a revelação súbita em pleno sepultamento, Harding se sentiu intimado pelo parentesco e se pôs a pesquisar (ainda sem uma noção real do que seu velho tio havia feito). Certamente o irmão do avô cumprira um papel burocrático, traduzindo documentos, pensou. Mas, à medida em que puxava o fio da meada, constatou que tinha um peixe graúdo pela frente. Ou melhor, dois.</p><p>Foi aí que Harding escolheu "Hanns & Rudolf" para título do livro.</p><p>E pelo título o leitor já tem uma boa pista sobre a forma que Thomas adotou para contar sua estória. O autor optou por dar peso igual à trajetória dos dois personagens, percorrendo lentamente as origens familiares e o desenvolvimento pessoal, profissional e militar de cada um. Hanns, pelo Império Britânico, Rudolf pelo Terceiro Reich.</p><p>A estória é para lá de instigante. Ainda que atrapalhada pela opção do autor de intercalar os capítulos entre os dois personagens, com os pares para Hanns, e os ímpares para Höss, fazendo um certo jogo de amarelinha (com o leitor pulando de um para o outro). O formato deixou um tanto arrastado o desenrolo inicial. Só mesmo a partir do capítulo 15, quando o caçador encontra a presa, eles enfim compartilham a narrativa e a estória se torna uma só.</p><p>Bem, a parte boa é que a esta altura o ritmo é outro, já não há mais pachorra, e o leitor está absolutamente mesmerizado, como um sapo cozinhado em água morna (assim diz a lenda).</p><p>O relato de famílias judias endinheiradas e patrióticas sendo expulsas de seu país natal pelo nazismo nos remete a "A lebre dos olhos de âmbar", de Edmund de Waal. Pena que o estilo de Harding não seja páreo para o texto elegante de Waal. Mas ambos nos oferecem uma perspectiva valiosa da rotina de uma família judaica de posses, renome e influência no momento da ascensão nazista.</p><p>Se no supracitado "A lebre..." os protagonistas estão em Viena e Paris, em "Hanns & Rudolf" os principais atores estão no epicentro do regime, em plena Berlim. Ao descrever, por exemplo, o <i>bar mitzvá</i> dos dois irmãos gêmeos - Hanns e Paul -, Harding nos permite um flagrante de uma rica familia judia no inicio dos anos 30, no coração da Alemanha.</p><p>"A família foi conduzida pelo motorista à Neue Synagogue, na Oranienburgerstrasse, a maior da cidade, com capacidade para mais de três mil pessoas sentadas. O enorme domo dourado da sinagoga era dois andares mais alto que os edifícios ao lado. Localizada no centro da área comercial, era o coração da vida judaica em Berlim."</p><p>O início do livro revela assim a infância super confortável do avô e do tio-avô, irmãos gêmeos.</p><p>Estavam em maio de 1930. Faltava ainda dois anos e meio para o poder cair no colo de Hitler. A vida para um médico bem-sucedido era, então, generosa. Iria chorar de emoção na cerimônia dos filhos. Nem de longe o célebre doutor judeu poderia imaginar que em poucos anos estaria exilado. Muito menos que estaria entre a pequena fração de judeus europeus que escapariam do Holocausto. </p><p>Com a nomeação de Hitler e a escalada das leis raciais, os Alexander vendem tudo - a um preço irrisório, na bacia das almas - e emigram para a Inglaterra. Lá os gêmeos irão crescer, estudar e se alistar. Como sabemos, um deles, Hanns, viria a caçar e capturar Rudolf, o comandante de Auschwitz.</p><p>Didático e meticuloso, Harding faz um paralelo destes dois alemães, o detetive judeu e o genocida nazista, de trajetórias opostas. Personagens antagônicos e com biografias desproporcionais. Hanns, até o fim da guerra, era um mero jovem imigrante. Já Höss fez da guerra uma galopante ascensão.</p><p>Soldado destemido, após a Primeira Guerra Mundial Höss esteve envolvido em um misterioso assassinato. Estudiosos dos primeiros anos do nazismo dizem que Höss matou a mando de Martin Bormann, que viria a se tornar homem forte do regime.</p><p>E que não esqueceu o amigo dos velhos tempos.</p><p>Embora com poucas credenciais e muitas limitações - e sempre desejoso de ir para a linha de frente -, o apadrinhado Höss acabou por ganhar a confiança também de Himmler e assumiu a direção de Auschwitz. O maior e mais famoso campo de matança da história.</p><p>Com um detalhe peculiar: Rudolf Höss morava em uma casa anexa ao campo, com sua mulher e cinco crianças (dois meninos e três meninas). Prisioneiros judeus eram seus empregados domésticos. O aroma permanente era o dos crematórios. Dizem que as crianças brincavam de polícia e escravo. Chegaram até a recortar uma estrela amarela e pregar no peito do <i>escravo da vez</i>.</p><p>Foi um período feliz para os Höss, mas que não durou para sempre. Com o fim da guerra, após matar e incinerar dois milhões e meio de judeus, Rudolf mandou a mulher e os filhos para o interior da Alemanha e conseguiu papéis falsos. Arrumou emprego em uma fazenda, onde cuidava dos animais.</p><p>Enquanto isso, Hanns era transferido para lá e para cá durante os esforços da organização aliada no pós guerra. Logo seu perfeito domínio do idioma alemão lhe asseguraria atribuições relevantes.</p><p>O mundo, até então, tinha uma noção imprecisa, mal documentada, do que havia acontecido com os judeus durante o curto e sanguinário império nazista. Nas primeiras semanas após a rendição alemã, a prioridade era o rastreio dos criminosos de guerra, "diluídos" em meio à população civil.</p><p>Aos poucos, porém, vieram à tona os pormenores sigilosos do genocídio. Oficiais SS se tornaram caçados. A partir daí, quando capturados, eram rapidamente condenados, em julgamentos tendenciosos e politizados, sob constante pressão soviética. O mundo já estava dividido por uma Guerra Fria incipiente.</p><p>Percebendo a dimensão do crime praticado nos campos de extermínio, os aliados deixaram os bagres de lado e foram atrás dos medalhões. Rudolf Höss era um deles. </p><p>Neste momento, Hanns, que fora promovido a capitão e investigador do exército inglês, recém mostrara suas qualidades ao rastrear e capturar o ex-poderoso <i>gauleiter</i> de Luxemburgo, Gustav Simon. Três anos anos e meio antes, em 17 de outubro de 1941, Simon havia sido o primeiro <i>gauleiter</i> a anunciar que sua região estava <i>judenfrei</i> - ou seja, com todos os judeus mortos ou evacuados.</p><p>Com a chegada dos norte-americanos, Simon desapareceu. E teria morrido incógnito não fosse o tenente-coronel Thomas Tilling convocar Hanns Alexander à sua presença e incumbi-lo de "caçar e prender Gustav Simon". Caso fosse bem-sucedido, aquele seria o projeto-piloto de uma operação em que investigadores iriam procurar por criminosos específicos em meio a população alemã.</p><p>Hanns faria o trabalho sozinho.</p><p>A narrativa da caça ao nazista de Luxemburgo toma menos de dez páginas - mas foi uma saga que valeria um livro. Hanns cruzou a Alemanha de um lado a outro, totalizando mais de 2.400 quilômetros ao longo de 17 dias, seguindo as mais variadas pistas. </p><p>Pulando de cidade em cidade (Wiesbaden, Belsen, Koblenz, Hermeskeil, Friedwald, Marburg, Dessel, Plettenberg etc), soube que ele trocara de nome, passando a usar o nome da mulher, Henning. As sobrinhas de Gustav deram a Hanns informações obsoletas, fazendo com que ele perdesse o rumo. Foram presas. Acabou por achar o filho de Simon,... Adolf. O filho também mentiu e acabou preso.</p><p>Retomou a pista do fugitivo em um hotel, onde estivera com o nome de Hans Woffler. Teria partido para Einbeck, onde trabalhava como jardineiro. Foi lá que Hanns finalmente o capturou, algemou-o e o levou de volta a Luxemburgo.</p><p>O sucesso lhe credenciou perante Tilling e ele recebeu a incumbência de ir atrás do paradeiro de um <i>tubarão</i> nazista, o comandante de Auschwitz, que pistas preliminares indicavam que permanecia vivo, em algum lugar da Alemanha.</p><p>Não por acaso, a operação se chamava "Agulha no Palheiro".</p><p>A localização e a prisão da mulher e do filho mais velho de Rudolf Höss, Klaus, lhe dão o trunfo que precisava para obter a confissão de Hedwit, a esposa, sobre o esconderijo do marido. Depois de ter sido a Rainha de Auschwitz, Hedwit Höss dá com a língua nos dentes e revela a fazenda próxima onde Rudolf zelava pela saúde de vacas e porcos (aos quais, caridoso, não matava).</p><p>O grupo conseguiu encontrar onde Höss estava acoitado antes que ele pudesse ser avisado e fugisse. A notícia da prisão correu o mundo. </p><p>"Em 17 de março de 1946, o The News York Times noticiou que, após uma busca de nove meses, agentes britânicos tinham capturado Rudolf Höss, 'provavelmente o maior assassino individual da história do mundo'."</p><p>Preso, negou ser quem era. Desmascarado, negou ter feito o que fez. Confrontado com a verdade, fez o que nenhum dos outros <i>capos</i> nazistas fez: admitiu a própria culpa e contou seus crimes. Mas, ressalve-se, sempre agindo<i> sob ordens</i>, claro. Nada do que fez fôra por vontade própria.</p><p>Jornais ingleses estamparam nas manchetes: "Dois milhões de pessoas mortas por gás! O Kommandant de Auschwitz confessa!"</p><p>Após meras três semanas de cativeiro inglês, o prisioneiro Rudolf Höss apresentava "olhos vermelhos, as faces encovadas, barba crescida e o corpo frágil". Foi entrevistado por Whitney Harris, jovem promotor nos Julgamentos de Nuremberg.</p><p>"Fiquei surpreso com a aparência de Rudolf", Harris revelou depois aos repórteres. "Esperava encontrar um homem grande, alguém que transmitisse poder e brutalidade, alguém com carisma. Em vez disso, ele me pareceu um sujeito muito comum, assim como um 'vendedor de mercearia', a quem não daria um segundo olhar se passasse por ele na rua".</p><p>Um dos maiores genocidas da história era um sujeito vulgar (veja na foto), de personalidade inexpressiva. Teria fugido e se mantido impune, não fosse o esforço de uma pequena equipe em seguir suas pegadas Alemanha adentro. Integrando esta equipe anônima, o capitão do exército inglês Hanns Alexander foi decisivo para a localização e a obtenção da confissão do criminoso.</p><p>Que história.</p><p>Judeu alemão, Hanns por toda a sua vida se recusou a falar da guerra - e do seu papel nela. Apenas na sua morte teve o seu segredo revelado.</p><p>Sorte nossa que seu sobrinho era escritor.</p><p>Rocco, 302 páginas (1a edição) 2014 | Tradução Angela Lobo | Copyright 2013</p><p>Título original: "<i>Hanns & Rudolf: the German Jew and the Hunt for the Kommandant of Auschwitz</i>"</p><p><i>P.S.: Na imagem que ilustra o post, a foto de Rudolf Höss algemado e o fac-simile da página 248 do livro sobre uma das fotos que eu tirei em Auschwitz, em abril de 2019, exatamente do local em que o criminoso foi enforcado. Era um lindo dia de sol. O sol brilhar em um lugar como esse é, no mínimo, paradoxal.</i></p></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-61300911815122151832023-05-07T10:50:00.001-03:002023-05-07T10:50:51.114-03:00"Entre anjos e cangaceiros", por Frederico Pernambucano de Mello<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjC5bQYu2-F2TL3iFoI-u1-7mKLcl1PuRqt0jv3oxIKCQPqFLMhPtWTgD_OxpoNn_PeV7Yc6TKES3olPDpl0-X9GeN7tILMQprOfnzu9JEsxN1ENLKG-h41Soqsx7Cud9NMRoKpHsfvWoSxfoU5XPPuOEOM6cKrAzlBCBUDwr6yxxITj_1Ni8DWI8h_/s3876/Benjamin%20Entre%20anjos%20e%20cangaceiros.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2748" data-original-width="3876" height="454" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjC5bQYu2-F2TL3iFoI-u1-7mKLcl1PuRqt0jv3oxIKCQPqFLMhPtWTgD_OxpoNn_PeV7Yc6TKES3olPDpl0-X9GeN7tILMQprOfnzu9JEsxN1ENLKG-h41Soqsx7Cud9NMRoKpHsfvWoSxfoU5XPPuOEOM6cKrAzlBCBUDwr6yxxITj_1Ni8DWI8h_/w640-h454/Benjamin%20Entre%20anjos%20e%20cangaceiros.jpg" width="640" /></a></div><br />Houve uma vez um gringo que seguiu sozinho o rastro dos piores bandidos do sertão. Filmou e fotografou os facínoras. Fez postais dos cabras para vender na feira. Ganhou fama. Acabou morto com quarenta e duas facadas. Mais de meio século depois, virou filme e mereceu biografia.<div><br /></div><div>É desta que trato.<div><br /></div><div>Frederico Pernambucano de Mello, o famoso biógrafo do cangaço, chamou esta tarefa para si. E começa sua estória lá nos ermos do Oriente Médio. Uma estória pra lá de inusitada.</div><div><br /></div><div>Diante do alistamento compulsório para defender o exército turco na Primeira Guerra Mundial, o adolescente libanês Benjamim Abrahão Calil Botto deu no pé. Desembarcou no Recife em 1915.<p></p><p>Era oficialmente sírio - porque o Líbano àquela época havia sido incorporado à Grande Síria -, mas dizia a todos ter nascido em Jerusalém e ser conterrâneo de Jesus. Já o pessoal aqui da terra, desde o início, chamava ele de <i>turco</i>, mesmo.</p><p>Parentes e amigos da família o receberam em Pernambuco. Deram a ele casa, comida e emprego - atrás de um balcão. Inquieto, resolveu ganhar a vida como caixeiro-viajante e foi dar nos costados do Ceará, mais precisamente em Juazeiro, terra do Padre Cícero, tido mais por santo do que por padre.</p><p>Conseguiu cativar o santo homem, que o acolheu na própria casa, e, imprevidente, fez do gringo contador e tesoureiro. Benjamim, que de santo não tinha nada, logo começou a fazer suas contas tortas na jogatina local (sem contar seus métodos heterodoxos de contabilidade).</p><p>Metido no jogo e no comércio, se fiando nas costas quentes do padrinho - o tal <i>padim padi Ciço</i> de Zeca Diabo -, deu um passo maior que as pernas e foi jurado pelo principal coronel local, Floro Bartolomeu. Por respeito ao padre, o <i>turco</i> foi humilhado, mas não foi passado no fio da navalha.</p><p>O avanço da coluna Prestes fez de Floro comandante do Exército, que, por sua vez, convocou Lampião e fez dele capitão. O apoio não valeu de grande coisa, porém. A coluna recuou, Lampião debandou e Floro foi à capital da República cobrar o dinheiro das provisões, que não chegava.</p><p>Nunca voltou. Floro caiu doente no Rio de Janeiro e morreu por lá mesmo. Benjamin pôde enfim repor suas manguinhas de fora e retornar ao cargo de assistente pessoal do Padre Cícero, que santamente o recebeu de braços abertos. </p><p>Ardiloso - ou <i>picareta</i>, para alguns -, fez espalhar aos quatro cantos que o padre estaria por dar sua "última benção". Romeiros de todo o Nordeste afluíram para Juazeiro, enriquecendo a lojinha de artigos sacros recém aberta por Benjamin Abrahão.</p><p>O movimento estimulou o <i>Diário de Pernambuco</i>, o maior jornal do Brasil fora do Sul-Sudeste do país, a enviar um repórter para registrar a romaria. Recebido na própria casa paroquial, o jornalista Otacílio Alecrim se surpreendeu com o padre de pantufas, escutando música em uma vitrola de corda, com uma corneta dourada, e assessorado por um secretário estrangeiro.</p><p>O artigo, intitulado "O desencanto de Macunaíma", não saiu lá muito laudatório: "Francamente, com um turco e uma vitrola, não há messias que possa ser levado a sério..."</p><p>A foto de capa do livro mostra o célebre Padre Cícero de Juazeiro, sentado em uma marquesa de palhinha, tendo ao lado Benjamin Abrahão, que segurava uma edição do jornal "O Globo", do Rio de Janeiro. É que o comerciante e faz-tudo, que não dava ponto sem nó, estava cavando uma boquinha para se tornar correspondente da imprensa do Sul; com a foto, conseguiu.</p><p>Faturou também com a morte do próprio padrinho, que se deu pouco depois. Fotografou o cortejo e vendeu o santo defunto em cartões postais. Filmou o cadáver e cortou mechas do seu cabelo, que foram comercializadas, em saquinhos, vendidas para centenas de devotos. Como se houvesse tal quantidade de cabelo na cabeça do padre, que era santo, mas não era Sansão. </p><p>Com a partida do ícone, porém, Abrahão se viu desprotegido e foi atrás de novas fontes de renda. Com a chegada da Zeiss alemã ao Ceará, na esteira da febre mundial pela pela produção de imagens fotográficas e cinematográficas, Benjamin se apresentou, propondo fazer o que ninguém até então havia feito: documentar e fotografar o bando de Virgolino Ferreira da Silva. O famigerado Lampião.</p><p>A audácia de se meter sozinho na caatinga, atrás do líder cangaceiro, sujeito temido, sanguinário e impiedoso, não era de todo desmiolada e desprovida de chance de sucesso. Abrahão e o capitão Lampião haviam se conhecido dez anos antes, quando do combate à coluna Prestes.</p><p>Nem por isso não era um excesso de ousadia e confiança do<i> turco</i>, que partiu de Fortaleza em 10 de maio de 1935, como representante da Aba-Film. Por quase um ano vagou de vilarejo em vilarejo atrás do bandido. Em março de 1936, nas "caatingas alagoanas da ribeira do Capiá, soltas bravias do Canapi, então do município de Mata Grande, no limite entre as fazendas Lajeito Alto e Poço do Boi", Benjamin foi detido pelos cangaceiros Juriti e Marreca, "que o tinham prendido e escoltado até o chefe para ser morto".</p><p>Lampião, já a esta altura um chefe ponderado, sabedor do seu poder, foi condescendente na saudação ao fotógrafo: "Não sei como você veio bater aqui com vida, cabra velho".</p><p>Só troçou. Na condição de ex-secretário particular do Padre Cícero, o turco foi bem recebido. E mais: o próprio Virgolino se entusiasmou com as possibilidades do registro. Posou para dezenas de fotos, organizou o grupo para simulações de combate e às vezes chamou para si a função de cineasta.</p><p>Mandou mensagens aos chefes dos subgrupos do cangaço para virem participar das tomadas. Foram convocados os bandos de Salamanta, de Corisco, de Moderno, de Zé Sereno, de Mané Moreno, de Labareda, de Pancada, de Gato, de Canário. Lampião parecia o Orson Welles do sertão.</p><p>"Lampião estava pronto para confirmar sua presença na História através da linguagem moderna do cinema", assinala Mello. "Somente a ocorrência dessa troca de postos", diz o autor, se referindo ao gosto de Virgolino pela direção, "explica o número de cenas que irá se obter nos cerca de quinze minutos de película e cerca de noventa fotografias que se salvaram para a história".</p><p>A cabroeira desempenhou com gosto o papel de figurantes das próprias vidas. O único arredio foi Moreno, que alertou o chefe: "Capitão, o senhor é o cangaceiro mais velho, o chefe de todos os cangaceiros, mas anda facilitando". Zeloso, arrematou: "Vou ficar com o galego na pontaria, capitão. Fique sossegado. Qualquer coisa, atiro nele e na máquina. Estouro tudo!".</p><p>Moreno <i>atirou</i> no que viu e acertou no que não viu. As fotografias e filmagens do grupo foram um sucesso jornalístico imediato, assim foram publicadas, mas geraram uma forte reação do novo governo que se instalara no país - o Estado Novo.</p><p>O registro da bandidagem serelepe, que as autoridades há décadas não conseguiam conter, mas que se auto-promoviam como se fossem estrelas de Hollywood, foi um tapa na cara das forças policiais e dos governos locais. Significou o ponto de partida para um esforço concentrado pela captura e aniquilamento do bando.</p><p>Aqui Pernambucano de Mello abre um interessante capítulo sobre as relações escusas entre o cangaço e a polícia, que parecem uma reprodução do eterno cotidiano carioca. Corrupção e violência policial se igualam. Conta do arrego recebido pelas volantes e da selvageria praticada pelos <i>macacos</i> contra a população - crimes cometidos justo por aqueles que deveriam defendê-la.</p><p>A reação das autoridades constituídas ao histórico trabalho documental de Benjamin Abrahão fez do registro o canto de cisne do cangaço. E também o seu próprio: impedido de vender o resultado do serviço e com uma coleção considerável de inimizades caatinga afora, o <i>turco</i> acabou morto a facadas - quarenta e duas, para ser mais exato - em uma circunstância que jamais foi bem esclarecida.</p><p>Lembrando a bizarra morte de PC Farias, tesoureiro e guardião de segredos inconvenientes do governo Collor - morte atribuída aos ciúmes da sua namoradinha, que matou o velho e depois teria se matado de amor -, Abrahão foi esfaqueado e estripado por um aleijado que não andava. Um certo marido traído. Versão inconvincente. No mínimo.</p><p>Aqui se encerra a trajetória do sírio que veio adolescente para o Brasil e produziu o que nenhum nativo foi capaz de produzir. O imigrante enriqueceu a narrativa do cangaço. E, graças ao trabalho dedicado do pesquisador Frederico Pernambucano de Mello, sua picaresca biografia fica aqui preservada para a posteridade.</p><p>O livro abre também diversas janelas sobre a cultura nordestina e seu tradicional universo político. Ressalvo, porém, que o rico texto do autor é idiossincrático. Muito do que é trazido de bandeja se torna de difícil digestão, temperado pela prosa engalanada de Mello. Mas que tem lá seu sabor.</p><p>Destaco também o delicado projeto gráfico, que fez do belo alfabeto árabe a vinheta da edição.</p><p>Por fim, vale frisar que o autor não afirma, mas dá margem para supormos que a morte de Benjamin, em 7 de maio de 1938, tenha se dado a mando do próprio Lampião - ainda que Mello compreenda outras hipóteses. Vá saber.</p><p>E o próprio rei do cangaço foi emboscado pouco mais de dez semanas depois. A 28 de julho, em Angico, nos grotões do Sergipe. Ao amanhecer.</p><p>Até hoje muitas versões cercam a morte de Lampião e Maria Bonita - mas a caçada feroz que precedeu sua morte teria sido estimulada pelos ares de celebridade do cangaceiro, cujas fotos, estampadas na capa dos grandes jornais do país, enfim atiçaram a sanha do governo e das polícias.</p><p>O <i>turco, </i>na sua inocência aventureira,<i> </i>ilustrou e pôs o ponto final na história do cangaço.</p><p>Editora Escrituras, 351 páginas | 1a edição, 2012</p></div></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-90173045189738164672023-04-28T11:13:00.003-03:002023-04-30T10:30:52.281-03:00"A longa estrada para casa", por Ben Shephard<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQXMlHhRdOR8xPCd34e5jO2x19nXCAYkvhuv84AyCH4XkSwcQ8xvBg_6R40Hj6RJEjpKzJSX5COxVyiF-OPYVjUYpjLJ918U26HvOARvps7EslOJKw9QWxq61tkpJkTg9LUavkaTRfwsJ3zZ-oxLpK5UPmi60WBy3aXzzDHV3vY9bsqvis-fTK3FZJ/s4032/A%20longa%20estrada%20para%20casa.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2700" data-original-width="4032" height="428" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQXMlHhRdOR8xPCd34e5jO2x19nXCAYkvhuv84AyCH4XkSwcQ8xvBg_6R40Hj6RJEjpKzJSX5COxVyiF-OPYVjUYpjLJ918U26HvOARvps7EslOJKw9QWxq61tkpJkTg9LUavkaTRfwsJ3zZ-oxLpK5UPmi60WBy3aXzzDHV3vY9bsqvis-fTK3FZJ/w640-h428/A%20longa%20estrada%20para%20casa.jpg" width="640" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div>Dar um destino aos refugiados de guerra permanece na agenda do dia. Há hoje no planeta diversos conflitos em andamento - e onde há guerra, há gente desalojada. Na tentativa de acolhê-las, entidades internacionais, subvencionadas pelos países ricos, fornecem auxílio humanitário.<div><br /></div><div>Neste mundo desigual, com ricos e pobres em suas respectivas extremidades, a tecnologia encurta distâncias. Celulares com acesso às redes sociais conectam os extremos e possibilitam imagens em tempo real - o que constrange, mas não é suficiente para dar um basta às tragédias.<div><br /></div><div>E, se a violência é onipresente agora, imagine há 80 anos atrás - em 1943. A Europa em guerra e em destroços. A Alemanha nazista ocupando quase todo o continente: da França à União Soviética, da Grécia à Noruega. Neste cenário simiesco, os alemães escravizaram as populações locais, despachando-as para a Alemanha, para trabalharem pelo <i>Reich</i>.</div><div><br /></div><div>Este domínio imperial protagonizado pela <i>Wehrmacht</i> e pela SS durou pouco anos, porém. A União Soviética logrou reagir à invasão nazista, financiada a fundo perdido pelos Estados Unidos. Os próprios norte-americanos desembarcaram na Normandia. Os nazistas recuaram.</div><div><br /></div><div>E, com a retomada gradativa de espaços pelos Aliados, à medida em que os alemães iam sendo empurrados de volta para o seu país, milhões de estrangeiros, retidos na Alemanha, se viram livres da escravidão, mas apartados da sua terra natal. A guerra na Europa acabou; mas não para eles.</div><div><br /></div><div>Estes ex-escravos, sem pátria ou lar, são o tema do livro. É aí que a narrativa tem início.</div><div><br /></div><div>De pronto faz uma interessante contextualização sobre o trabalho escravo em território alemão. De como, com a consequente derrota alemã, o continente foi dividido entre a União Soviética e o Ocidente, gerando uma intrincada logística: os milhões de antigos escravos e prisioneiros que ocupavam a Alemanha precisavam, antes de mais nada, serem tratados, desinfetados e alimentados.</div><div><br /></div><div>E, depois, precisavam ser mandados de volta. O "para onde" é que se tornou o grande problema.</div><div><br /></div><div>Os judeus sobreviventes não tinham para onde ir. Ucranianos idem. Os russos tinham a Rússia, mas preferiam se suicidar - e o faziam - a voltar para a terra natal. Não era capricho. Sabiam como Stalin tratava os retornados.</div><div><br /></div><div>Instituições como a Unrra, o Shaef, a Cruz Vermelha e os exércitos americano e britânico tentavam administrar o caos. Como bem conta Shepard, não conseguiam. A estrutura era pífia, o transporte era nenhum, as provisões eram insuficientes e mais da metade destas acabava roubada.</div><div><br /></div><div>O trabalho de Shephard nos permite observar este momento crítico do pós-guerra imediato. </div><div><br /></div><div>O enorme contingente de poloneses foi reunido em grandes campos para PDs - a denominação técnica para os refugiados, "Pessoas Deslocadas", ou "Displaced Persons", no original -, gerando contínuas crises com a administração americana.</div><div><br /></div><div>O livro narra o lento e intrincado repatriamento de seiscentos mil poloneses, que resistiam a retornar - seja porque o pedaço da Polônia de onde eram originários agora se tornara território soviético, seja pela falta de emprego, seja pelo temor que contrastava com a segurança oferecida pela vida nos campos polacos (segundo os americanos, os mais sujos e corruptos).</div><div><br /></div><div>O mesmo aconteceu com os judeus. Os sobreviventes dos campos de extermínio e os duzentos mil judeus vindos da União Soviética se tornaram um baita problema a resolver. Os britânicos queriam que eles retornassem aos seus países de origem, mas os judeus sabiam que não seriam bem-vindos: os que retornaram à Polônia foram comumente alvo de <i>pogroms </i>e da recusa dos poloneses em lhes devolver as antigas posses e moradias.</div><div><br /></div><div>Os americanos eram favoráveis à ida dos judeus para a Palestina - uma opinião de peso. Nesta questão ninguém era mais capaz que os Estados Unidos de fazer a balança pender para um determinado lado. Eles praticamente financiavam tudo, do trabalho humanitário à reconstrução dos países. Grã-Bretanha incluída. Mas remeter os judeus para o Oriente Médio era uma <i>solução</i> mal vista por boa parte do planeta.</div><div><br /></div><div>Principalmente pelos árabes que habitavam a Palestina.</div><div><br /></div><div>O governo americano investiu nesta opção. O povo norte-americano, que não queria se tornar o destino dos judeus, pressionava por ela. David Ben Gurion, o líder sionista, atuava firmemente para que os judeus reunidos na Alemanha imigrassem para a Palestina.</div><div><br /></div><div>Mas, reitero, o problema é que já havia um povo na Palestina.</div><div><br /></div><div>Um comitê internacional foi criado no início de 1946 para discutir a questão. Com uma primeira reunião de 16 dias em Washington, uma outra logo em seguida em Londres, e mais duas em abril, na Alemanha e na Suíça, o que foi debatido neles até hoje influi na geopolítica mundial.</div><div><br /></div><div>Decidiu-se pelo envio de 100.000 PDs judias para a Palestina. A proposta era a divisão da Palestina em duas metades, uma sob controle judaico, outra sob controle árabe. A Grã-Bretanha era contra o envio e também contra a divisão. O acadêmico libanês Albert Hourani advertiu: "Qualquer tentativa de trazer mais judeus para a Palestina inevitavelmente acabará em guerra".</div><div><br /></div><div>"A questão não é entre o certo e o errado, e sim entre a menor e a maior injustiça", opinou Richard Crossman, político inglês que integrava a comissão e se notabilizou por sua atuação pró-sionismo."A injustiça é inevitável e temos de decidir se é melhor ser injusto com os árabes da Palestina ou com os judeus".</div><div><br /></div><div>Há quem defenda que, se naquele momento o Reino Unido tivesse se proposto a receber 25.000 PDs judias, poderia pressionar para que os Estados Unidos aceitassem outras 50.000 PDs judias e a manifestação internacional pró-movimento sionista teria sido esvaziada. O que certamente acarretaria na não-existência do Estado de Israel. É uma hipótese válida. Mas o "se" não vale.</div></div><div><br /></div><div>Passos decisivos para a criação do Estado de Israel foram gestados nesta Europa em crise.</div><div><br /></div><div>Para tentar reduzir esta catástrofe humanitária que paralisava os esforços pela normalização, a Grã-Bretanha resolvera quebrar as promessas feitas aos poloneses e se esforçava para repatriá-los todos, inclusive o Exército de Anders, que reunia 100.000 poloneses em solo italiano e mais 60.000 ex-combatentes no próprio Reino Unido. Seu destino seria a Polônia satélite comunista.</div><div><br /></div><div>Os bálticos eram um outro problema de solução delicada: em sua quase totalidade, letões, estonianos e lituanos tinham vindo para a Alemanha voluntariamente. Muitos ocuparam altas funções na SS. Mas, com o fim da guerra e a derrota alemã, sua <i>narrativa</i> mudou. Viraram a casaca.</div><div><br /></div><div>Para evitar serem tratados como os cidadãos alemães em que se transformaram, os bálticos alegaram terem sido obrigados a vir para a Alemanha. Isto os qualificava a serem considerados PDs - e também evitava o repatriamento para um Báltico agora totalmente soviético.</div><div><br /></div><div>Ou seja, todos tinham um ponto em comum: ninguém queria ir para a União Soviética.</div><div><br /></div><div>Se era essencial o esforço humanitário, se a Unrra foi uma entidade fundamental para dar abrigo, alimento e organizar o repatriamento das PDs, súbito tornou-se politica e economicamente essencial que a Unrra encerrasse suas atividades. O <i>momento</i> político.</div><div><br /></div><div>Em meados de 1946, um ano após o fim da guerra, a Unrra administrava quase trezentos campos, com mais de 750 mil pessoas, em um território que ia da Áustria a Dinamarca. Embora a ideia dominante no exterior fosse de que os refugiados eram em sua maioria judeus, os números reais contavam 420 mil poloneses, 190 mil bálticos, 100 mil judeus e 20 mil iugoslavos.</div><div><br /></div><div>O contexto geopolítico mudara de eixo. A derrotada Alemanha já não era ameaça e a "aliada" União Soviética passou a ocupar o posto de "a grande inimiga". Os campos estavam tomados de informantes, numa feira internacional de contra-espionagem. Dizia-se que a intenção norte-americana era criar exércitos poloneses e bálticos com as PDs. </div><div><br /></div><div>Ira Hirschmann, enviado especial à Europa por Fiorello LaGuardia - ex-prefeito de New York e futuro diretor geral (desmontador) da Unrra - para avaliar a situação nos campos, se impressionou negativamente com o que viu, particularmente pelo contraste entre os campos para as PDs bálticas e aqueles para as PDs judias.</div><div><br /></div><div>"Bem-cuidados pela Unrra, os bálticos tinham estabelecido uma vida comunitária em que faltava a tensão típica de um campo judeu", avaliou, surpreso com as instalações para os bálticos, que incluíam uma salão para recreação e concertos. "Os bálticos faziam o papel de vítimas da guerra e exploravam a caridade da Unrra", observou.</div><div><br /></div><div>"Os campos para judeus estavam superlotados e sujos", constatou, "repletos de judeus que vinham da Polônia em uma proporção de 2 mil por dia". Grupos chegavam a pé, exaustos, da Cracóvia e da Silésia polonesa, a 450 quilômetros do campo para refugiados.</div><div><br /></div><div>Horrorizado, Hirschmann encontrou 1.800 homens e mulheres "amontoados como gado em matadouro, e para essas pessoas só havia três banheiros". O exército americano parecia confortável com a situação e dava prioridade ao atendimento às necessidades da própria população alemã (em oposição às diretrizes do presidente Ike Eisenhower).</div><div><br /></div><div>Para motivar os poloneses a voltar para o seu país, LaGuardia criou a <i>Operação Cenoura</i> - oferta de uma cesta básica estimada para 60 dias de duração, com 43 quilos de comida por pessoa - e financiou ações de marketing publicitário que incluíam filmes, como <i>The</i> <i>Road Home</i>, e panfletos didáticos.</div><div><br /></div><div>O texto ia direto na jugular, no estilo perguntas e respostas. "Eu serei bem vindo tendo adiado a minha volta por tanto tempo? Haverá qualquer discriminação contra mim por esse motivo?" O próprio impresso respondia: "A Polônia dá boas vindas a todos os poloneses que irão trabalhar para a reconstrução do país".</div><div><br /></div><div>Só faltou colocar no pé do texto: "Assinado, Stalin".</div><div><br /></div><div>Seja graças ao suborno alimentar, seja graças à ingenuidade coletiva, o plano deu certo por algum tempo. Os próprios funcionários da Unrra se envergonhavam, e comparavam a estratégia a "uma isca para fazer os poloneses morderem o anzol".</div><div><br /></div><div>Milhares de poloneses, porém, não caíram no truque. No ano seguinte, a Unrra se renderia e deixaria que eles seguissem sua vida na própria Alemanha ou em outros países mundo afora.</div><div><br /></div><div>Com a passagem do tempo e a alteração gradativa da política internacional, o objetivo principal deixou de ser o repatriamento das PDs e sim seu reassentamento em outros países, carentes de mão-de-obra. A Unrra foi desmontadada e em seu lugar foi criada a IRO - <i>International Refugees Organisation</i>.</div><div><br /></div><div>A Guerra Fria era o novo contexto geopolítico. A maior parte dos refugiados queria apenas estar o mais longe possível da União Soviética. Mas tinham que passar pelo crivo dos critérios de imigração de cada país - e nem todos, ou melhor, a maioria das PDs não era lá muito desejada.</div><div><br /></div><div>O sonho de consumo dos países candidatos a receber imigrantes eram as PDs bálticas - louras, de olhos azuis, cujos campos eram "limpos e organizados". Grã-Bretanha, Canadá e Australia fizeram o possível para arrebanhar o maior número possível delas. </div><div><br /></div><div>Húngaros, techecos, eslovacos e iugoslavos eram aceitos, sem euforia. Mas poloneses, lituanos, ucranianos e judeus eram evitados - estes últimos, até pelo Brasil, que, segundo Shephard, recebeu 29 mil PDS, com a única exigência que não fossem judeus ou asiáticos e que viessem sem dependentes. Os argentinos receberam 50 mil, incluindo 17.500 poloneses.</div><div><br /></div><div>A nova conjuntura internacional incluía também o debate sobre a questão judaica na Palestina. Apesar de rechaçados pelos britânicos, que tinham o mandato na região, os judeus continuavam a afluir para o Oriente Médio, na esperança de fundarem um Estado Judeu na sua terra de origem, ocupada nos últimos séculos pelos palestinos.</div><div><br /></div><div>O autor relata o esforço sionista e dá detalhes da frustrada travessia do <i>Exodus</i>, o icônico navio que partiu da França com 4.500 judeus europeus sobreviventes do Holocausto e que foi impedido por uma frota de oito vasos-de-guerra britânicos de aportar na Palestina, tendo que voltar para o porto francês de Séte e daí para Hamburgo.</div><div><br /></div><div>Estas PDs judias forneceram uma narrativa determinante para a vitória do sionismo e a criação do Estado de Israel - cujo grande eleitor foi os Estados Unidos. Mas elas mesmas tiveram enorme dificuldade para se assentarem em Israel, que, na prática, também facilitou muito pouco a absorção deste contingente europeu de sobreviventes da guerra.</div><div><br /></div><div>Uma boa parte dos judeus emigrou para os Estados Unidos, que se tornaram o principal destino das PDs remanescentes - principalmente bálticos e alemães. Como se veio a descobrir no fim da década de 50, uma quantidade enorme de criminosos de guerra nazistas se estabeleceu no país, em um período onde a principal exigência era a posse de um passado anticomunista.</div><div><br /></div><div>Na década de 60, com o julgamento em Tel Aviv de Adolf Eichmann, figurão da máquina de extermínio nazista, houve um novo olhar sobre a matança industrializada de judeus pela Alemanha. Criou-se o nome e o conceito do Holocausto, quase vinte anos após o fim da guerra.</div><div><br /></div><div>Também a partir daí ganharam forma os movimentos internacionais exigindo à Alemanha reparação financeira pelo trabalho escravo imposto a milhões de cidadãos estrangeiros. O país tentou se furtar aos pagamentos, alegando que seria a repetição de Versalhes e da República de Weimar.</div><div><br /></div><div>Durante décadas, o Estado Alemão rejeitou todas as ações individuais e, dependendo do governo e dos interesses político-econômicos, fez acordos pontuais indenizando instituições representativas de vítimas da guerra, principalmente poloneses.</div><div><br /></div><div>Apenas nos anos 90, com a queda do Muro de Berlim, algumas ações individuais foram exitosas, ainda que a duras penas. Novos acordos foram feitos, mas a exigência de comprovação imposta aos postulantes, que precisariam provar que foram <i>obrigados</i> a ir para a Alemanha, dificultava as reparações. Toda a documentação do período havia sido destruída.</div><div><br /></div><div>E, pior, cinquenta anos após o fim da guerra, os sobreviventes se esvaíam a uma taxa de duzentas mortes por dia. Em pouco tempo já não haveria a quem pagar. As grandes indústrias alemãs, principais beneficiárias do trabalho escravo, contrataram historiadores para recontar a História.</div><div><br /></div><div>A maioria das PDs criou raízes no seu novo país, ainda que tentando manter sua identidade étnica. Mas este vínculo nacionalista foi rejeitado pelas novas gerações. O eventual retorno das PDs aos seus países de origem não era bem recebido pelos que lá ficaram - principalmente quando quem retornava tinha pretensões de reclamar o que lhe pertencera no passado.</div><div><br /></div><div>Ao ler o título e ver a foto de capa*, com um casal carregando um par de malas e um estrado de molas, em meio a uma cidade em ruínas, a ideia que formamos é que, após a guerra, cada um pegou seus trapos e foi achar um lugar para morar, ou retornaram vagarosamente aos seus lares abandonados.</div><div><br /></div><div>Mas "A longa estrada para casa" não leva ninguém para casa nenhuma. É o relato de milhões de sobreviventes, ex-escravos e ex-prisioneiros, que não tinham para onde ir ou casa para voltar. Seus países foram destruídos, sua soberania perdida e seus parentes foram mortos.</div><div><br /></div><div>Como bem encerra Shephard, "quando o imigrante tenta manter sua identidade abraçando o velho país, aquela identidade fica idealizada. Ao voltar para ela, ele vê a princípio só aquilo que quer ver; na segunda ou terceira visita ele pode ver aquilo para o qual não está preparado; pode perceber que seu país ideal nunca existiu ou deixou de existir".</div><div><br /></div><div>Editora Paz & Terra, 614 páginas | 1a edição, 2012 | Tradução Vera Joscelyne | Copyright 2010</div><div><br /></div><div>Título original: "<i>The long road home</i>"</div><div><br /></div><div>* <i>A foto escolhida para a capa da edição da Paz & Terra induz a erro e foi um equívoco da editora. A ficha técnica do livro, negligentemente, é omissa e não contribui para elucidar. As edições em inglês (uma pela Pengoin e outra pela Anchor) e a edição em francês ("Le long retour 1945-1952: L'histoire tragique des déplacés d'après-guerre") utilizam imagens de civis em meio às ruínas. A capa da Anchor traz várias fotos - incluindo distribuição de alimentos e ex-prisioneiros perfilados, ainda de uniforme, segurando a bandeira de Israel - e é a mais representativa.</i></div>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-53996629673743693872023-04-18T20:12:00.000-03:002023-04-18T20:12:43.352-03:00"O fim do Terceiro Reich" por Ian Kershaw<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7OtxY148_bXIqo4NRcUsp8D7uuW5CTQP0vEYuROUfvrE8dJWne_rVZ0kRDRctRYWETVbti2K7_Etgh0eiA3DJr8OKQNoKr1HdOYniRJDOJkTqaozVCKGliEon3IEhvZ3ryJCGx4_zpbgELA1x8KXtcJ9UWQ_QN9I-quvTK6SAR3CjgrUh5LTkCX-Y/s1536/O%20fim%20do%20III%20reich.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="910" data-original-width="1536" height="380" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7OtxY148_bXIqo4NRcUsp8D7uuW5CTQP0vEYuROUfvrE8dJWne_rVZ0kRDRctRYWETVbti2K7_Etgh0eiA3DJr8OKQNoKr1HdOYniRJDOJkTqaozVCKGliEon3IEhvZ3ryJCGx4_zpbgELA1x8KXtcJ9UWQ_QN9I-quvTK6SAR3CjgrUh5LTkCX-Y/w640-h380/O%20fim%20do%20III%20reich.jpg" width="640" /></a></div><br />"Enquanto a derrota fragorosa se aproximava, no começo de 1945, escutavam-se às vezes os alemães dizendo que, para eles, seria preferível 'um fim com horror a um horror sem fim".<p></p><p>Eu, a título de hipótese, cogitaria que "um fim com horror" talvez fosse uma referência ao Leste e suas hordas de soldados soviéticos, pilhando, estuprando e matando alemães.</p><p>Um "horror sem fim" já denominaria melhor os bombardeios diários sobre as cidades do Oeste alemão - em concomitância com a tirania nazista na caçada paranoica ao próprio povo (as <i>Volkssturm</i> enforcavam os que não morriam defendendo o regime).</p><p>Seja como for, Kershaw conclui que "um 'fim com horror', certamente, foi o que eles experimentaram, de um modo e em dimensões sem precedentes na história."</p><p>O autor, a propósito, abre seu livro sobre o fim do Terceiro Reich deixando claro que seu foco não está nas batalhas, e sim na cadeia de comando nazista durante a fase final da guerra. Como ela conseguiu se sustentar, íntegra, enquanto o país desmoronava - invadido a leste e a oeste, bombardeado no centro e recuando em todas as frentes.</p><p>Sabemos que a situação-limite enfrentada pela Alemanha era o ponto em que comumente as nações se rendem. Quando a derrota militar se afigura inevitável, a liderança política negocia com os vencedores um acordo. Com isso, poupa-se o país, sua infraestrutura e sua população de perdas crescentes. Diante do irreversível, evita-se mais sangue derramado. É o que dita o bom-senso.</p><p>Pois este bom-senso nem de longe ocorreu à Hitler, obcecado pela ideia de que o país deveria lutar até o último homem (a rendição da Alemanha em 1918 seria sempre seu maior fantasma). Sua determinação, porém, por mais obstinada que tenha sido, não é suficiente para explicar como toda uma nação o seguiu até o fim previsível e catastrófico. É esta explicação que Kershaw busca.</p><p>"Minha intenção inicial era abordar o problema examinando as estruturas de comando na Alemanha nazista durante esta fase final", esclarece, mas ressalva que "logo ficou claro para mim que uma simples análise estrutural não seria suficiente, e que minha prospecção deveria estender-se às mentalidades - em diferentes níveis - que sustentaram o funcionamento ininterrupto do regime".</p><p>Para que tenhamos uma noção mais clara do <i>approach</i> do historiador, uma passagem nas páginas iniciais do livro é ilustrativa. Fala do rapazola Robert Limpert, de Ansbach, uma pequena cidade alemã, na linha de avanço do exército aliado. Como dias antes uma outra pequena cidade próxima, Würzburg, havia sido destruída, com todo o seu patrimônio histórico bombardeado, Limpert - heroicamente idealista - queria salvar sua cidadezinha.</p><p>Já que os comandantes nazistas da cidade se recusavam à rendição, ocorreu ao garoto alemão, naquele 18 de abril de 1945, a singela ideia de cortar os fios telegráficos da prefeitura, achando que com isso impediria o gestor local de receber ordens. Mas dois gurizotes pertencentes à Juventude Hitlerista viram o "atentado" e denunciaram o rapaz, que foi preso e levado ao comandante.</p><p>O menino foi conduzido à praça local e espancado pela guarda, para que a população reunida pudesse assistir como os traidores da pátria eram exemplados. Enforcaram Robert Limpert, de 19 anos. Meras quatro horas depois, o exército americano invadiu a cidade, sem dar um único tiro, e cortou a corda onde pendia o corpo do adolescente. O comandante militar fugiu de bicicleta.</p><p>O trágico e o gratuito deste assassinato oficial expõem como até nos estertores da guerra os militares, as autoridades e a população aceitavam bovinamente a submissão ao conceito de <i>guerra total</i> e a subordinação incondicional ao partido nazista. </p><p>Cronologicamente, o ponto de partida de Kershaw é o atentado mal-sucedido contra Hitler, praticado pelo tenente-coronel Claus von Stauffenberg, em 20 de julho de 1944. A partir daí, o quadriunvirato formado por Martin Bormann, Heirich Himmler, Joseph Goebbels e Albert Speer - menos o último e mais os três primeiros - assume as rédeas do governo nazista.</p><p>O conceito de guerra total, acima mencionado, que já vinha sendo defendido por Goebbels, foi enfim autorizado por Hitler, que justificou: "O povo quer uma guerra total, e, a longo prazo, não podemos ir contra a vontade do povo".</p><p>Na prática, a "guerra total" significou a radicalização do governo e o recrutamento de mais um milhão e meio de soldados alemães para o front, com o desvio de operários, funcionários civis, idosos, mulheres e crianças. Bucha de canhão. Prolongou a guerra sem alterar seu resultado.</p><p>Na esteira do atentado, a Wehrmacht - origem dos autores - foi expurgada e ultra-nazificada. O general Alfred Jodl, também ferido pela bomba, disse que "o dia 20 de julho foi a data mais negra na história da Alemanha", endossando seu apoio a Hitler: "Mesmo que a sorte esteja contra nós, devemos nos manter unidos ao Führer até o fim, para que possamos nos justificar perante a posteridade".</p><p>A propósito, ele teve a oportunidade de se "justificar" no julgamento de Nuremberg, após a guerra. Em vão. Condenado à morte por crime contra a humanidade, entre outros crimes, pediu para ser fuzilado - o consolo de uma morte "digna". Não teve. Foi enforcado como os demais.</p><p>Os pronunciamentos de Hitler, Göring e Dönitz na noite do atentado foram lidos para a tropa. Dizia que "todo soldado precisava estar ciente de que qualquer sinal de insubordinação seria punido com a morte", afirmando que "a Alemanha nacional-socialista saberia como impedir uma repetição da 'punhalada nas costas' de 1918 ou qualquer ato semelhante à 'vergonhosa traição na Itália' (a queda de Mussolini em julho de 1943)".</p><p>Não faltou no discurso, naturalmente, a manifestação de fé: "Apenas um homem seria capaz de salvar a Alemanha do bolchevismo e da destruição, 'nosso Führer, Adolf Hitler".</p><p>Após o atentado, o <i>salvador </i>ficara mais paranoico do que já era. Desconfiava de traição de todos os lados. Atribuía o seu crescente fracasso militar à fraqueza dos que o rodeavam. Não transigiria. "Qualquer um que vier me falar de paz sem vitória perderá a cabeça, seja quem for e esteja na posição que estiver".</p><p>Curioso é que, na cadeia, em Londres, o tenente Freiherr von Richthofen teve um conversa interceptada em que se declarava satisfeito com o fracasso do atentado. Segundo ele, se tivesse sido bem-sucedido, a Alemanha teria uma nova lenda da "punhalada nas costas". Para ele, era necessário que a nação "descesse até o amargo fim".</p><p>O <i>amargo fim</i> poderia ter como data simbólica de "inauguração" o dia 11 de setembro de 1944, quando os americanos tomaram a primeira cidade alemã, a histórica Aachen. Sintomático é que, ainda que fosse o início do fim para os alemães, sua máquina de execução se mantinha em funcionamento e ainda assassinaria centenas de milhares de judeus.</p><p>A queda de Aachen, em meio à fuga desordenada e ordens desencontradas, motivou uma série de declarações que dão, melhor que tudo, o tom de <i>barata voa</i> da liderança e da soldadesca. O partido havia deixado a cidade, em fuga, e reinava o caos. Muitos moradores se recusavam a partir.</p><p>"Retratos do Führer foram arrancados e lençóis brancos pendurados nas janelas em sinal de rendição", conta Kershaw, que complementa que "o partido ficou desmoralizado com a fuga de seus funcionários". Diz ainda que as ferrovias deixaram de operar por falta de ferroviários e a administração civil havia destruído instalações essenciais antes de correrem. Prisioneiros russos tinham sido libertados e vagavam nas cercanias. </p><p>"A guerra está perdida!", registra o diário do tenente Julius Dufner. "Queremos construir uma nova Europa", filosofou. "Nós, os jovens, enfrentando os velhos! mas como estamos? Famintos, exaustos, nossas energias sendo sugadas por loucos. Pobres e cansados, esgotados e com os nervos à flor da pele. Não, não, não! Já não adianta mais nada".</p><p>O tenente alemão se queixa também das "armas miraculosas": "Tudo havia sido um blefe. É isso que acontece quando o chefe da propaganda (referindo-se a Hitler) torna-se o comandante supremo da Wehrmacht". Continua, exaltado, que "toda aquela conversa sobre a Nova Europa, sobre povos jovens e decrépitos, liderança alemã, zelo revolucionário, era tudo conversa fiada, fraude".</p><p>No entanto, "Dufner não teria dito essas coisas em voz alta", opina o historiador.</p><p>A situação em Aachen provocou o envolvimento do comando alemão na tentativa de reorganizar as defesas da cidade. Goebbels, em Berlim, disse que "o fato de nossos imbecis da retaguarda fugirem em disparada, morrendo de medo, só pode ser explicado pela falta de disciplina adequada e porque durante o longo período de ocupação da França eles passaram o tempo com champanhe e mulheres francesas em vez de se dedicar a exercícios militares".</p><p>O general Reinecke, chefe da liderança nacional-socialista do Exército, escreveu em seu informe que "durante quatro anos, os militares situados atrás das linha de retaguarda ficaram vivendo a leite e mel", concluindo que eram uma "tropa de gentinha fujona".</p><p>Para frear o desespero, o Gauleiter da Francônia, Karl Holz, sugeriu o envio de inspetores gerais que fossem "nacionais-socialistas enérgicos e brutais". O marechal de campo Keitel advogou pela "brutalidade extrema", o que incluía a instalação de cortes sumárias com execuções imediatas à vista das tropas. Mais de cem soldados foram fuzilados nas semanas seguintes.</p><p>O marechal-de-campo Von Rundstedt deu ordens para uma resistência "até a última bala e a completa destruição". Hitler afirmava que era necessário "fanatizar" o esforço de guerra: "Cada bunker, cada quarteirão de residências de toda cidade alemã, de todo vilarejo alemão, deve tornar-se uma fortificação diante da qual o inimigo sangrará até a morte ou seus ocupantes serão sepultados depois de um combate homem a homem".</p><p>Falar nem sempre era igual a fazer. O coronel Gerhard Wilck, comandante das forças em Aachen, diversas vezes reiterou sua intenção de combater até a última granada. Só que não. Após a capitulação da cidade, em 21 de outubro, se transformou em um comportado prisioneiro dos ingleses.</p><p>Uma conversa sua na prisão, criticando a mentalidade de "última trincheira" do Alto-Comando, foi grampeada: "O sacrifício de 3 mil homens apenas para manter a posse de um monte de cascalho por mais dois ou três dias era um desperdício inútil".</p><p>O país já vinha se preparando para esta nova guerra, a ser travada em solo alemão. A partir de 10 de setembro, sob a supervisão do cada vez mais poderoso Martin Bormann, a "população da fronteira" começaria a cavar trincheiras ao longo da <i>Westwall</i> - uma série de 14 mil bunkers, que se estendiam por 630 quilômetros.</p><p>A força de trabalho era composta por 211 mil trabalhadores - mulheres, jovens e idosos - , ao lado de 137 unidades da Frente de Trabalho do Reich e da Juventude Hitlerista. Como disse o<i> National Zeitung</i>, era uma tropa armada com pás e picaretas, dedicada à tarefa de "assegurar a liberdade de nossa pátria".</p><p>Enquanto isso, a população da outra fronteira, ao leste, estava apavorada com o avanço do Exército Vermelho. Sabiam das atrocidades cometidas pelos alemães em território soviético e os mais velhos lembravam bem das hordas invasoras russas na Primeira Guerra Mundial.</p><p>O temor não fora em vão. Se a propaganda nazista visava à resistência fanática ao invasor, era contraposta pela propaganda soviética, que inflava seus soldados a serem bestiais.</p><p>"Vinguem-se sem piedade desses fascistas, assassinos de crianças e carrascos; façam com que eles paguem na mesma moeda pelo sangue e pelas lágrimas das mães e das crianças soviéticas", dizia uma proclamação típica em outubro de 1944. "Matem. Não há nada de que os alemães não sejam culpados", exortava uma outra. </p><p>A conclamação à selvageria fez efeito. De acordo com um relato feito nove anos depois, por um integrante da <i>Volkssturm</i>, após o ataque russo ele encontrou "várias mulheres nuas presas pelas mãos às portas de um celeiro, em posição de crucifixo; uma mulher idosa cuja cabeça fora cortada em duas partes por um machado ou uma pá; e 72 mulheres e crianças selvagemente assassinadas pelo Exército Vermelho". Todas as mulheres foram estupradas.</p><p>"A Alemanha encolhia", assinala Kershaw, "com as regiões a leste tomada pelo inimigo, as fronteiras a oeste correndo perigo e a população sujeita a ameaças de invasão, além dos constantes bombardeios. Os moradores das cidades passavam por severas privações, já que o fornecimento de gás e eletricidade estava sujeito a cortes, só se encontrava água nos hidrantes das ruas e a comida ficava cada vez mais racionada".</p><p>O cidadão comum, a esta altura, já tinha uma visão bastante crítica dos nazistas, que oprimiam o povo alemão cada vez mais, com vigilância e ameaças. Um cabo em Courland disse que os funcionários do partido "seriam capazes de sacrificar tudo sem piedade para não servir no front".</p><p>Quanto ao front, em si, se retraía cada vez mais em direção ao interior do país. Com a <i>Wehrmacht </i>em fuga, a própria população, que também fugia dos soviéticos, se tornava um estorvo para os militares. O coronel-general Georg-Hans Reinhardt, comandante em chefe do Grupo de Exércitos Centro, foi explícito, diante das filas de refugiados nas estradas cobertas de gelo que eram um empecilho à retirada para o oeste:</p><p>"Refugiados que atrapalhem os movimentos das tropas nas estradas principais", ordenou ele em 22 de janeiro de 1945, "devem ser retirados dessas estradas (...). É doloroso, sem dúvida, mas a situação exige".</p><p>População em fuga, exércitos em retirada, contingentes cercados, Alemanha invadida. Este era o contexto nas primeiras semanas de 1945. A premissa do início do livro, e com a qual também abri este comentário, permanecia: qual a expectativa do comando nazista com o prosseguimento da guerra?</p><p>"Agora, a situação consiste em resistir no oeste e, no leste, recorrer a um combate de <i>partisans</i>", declarou um coronel. Como o autor assinala, a única esperança numa luta até a morte "ainda não definia qual seria o grande objetivo final, e de todo modo era um objetivo rapidamente superado pelos fatos".</p><p>Estrelas poderosas do regime nazista, os <i>Gauleiter</i> - uma espécie de governadores - conduziam com mão de ferro suas respectivas jurisdições. Boa parte deles homens da confiança pessoal de Hitler, eram os responsáveis por manter a ordem e a moral em meio à população e reprimir qualquer manifestação de derrotismo. </p><p>Os <i>Gauleiter</i> tinham um argumento forte em mãos. A condenação sumária à morte. Ela foi aplicada centenas de vezes, à menor demonstração contrária à liderança nazista. Estes <i>capos</i> locais do nazismo não permitiam a evacuação do povo, apavorado com o Exército Vermelho às portas da cidade. Resistência fanática era a palavra de ordem.</p><p>Dois dos <i>gauleiter</i> da mais estrita confiança de HiItler eram Erich Koch,<i> gauleiter </i>da Prússia Oriental, e Karl Hanke, <i>gauleiter</i> da Baixa Silésia - este último condecorado, por sua resistência ao invasor, com a Cruz de Ouro da Ordem Alemã, a mais elevada honraria do partido e da nação. Hanke recebeu uma carta do próprio Speer, louvando-o pela defesa da cidade de Breslau, por meio da qual ele foi capaz de "dar muito para a Alemanha de hoje".</p><p>"Seu exemplo", escreveu Albert Speer, ministro dos Armamentos e da Produção de Guerra do Reich, "que ainda será reconhecido em toda a sua grandeza, futuramente terá um valor inestimável para o povo, alcançado por poucos heróis na história da Alemanha".</p><p>Ao contrário do que esperavam HItler e Speer, entretanto, o "herói" que condenou Breslau a uma destruição quase completa não pretendia desaparecer com ela. Horas antes da capitulação da cidade, "Hanke fugiu num Fieseler Storch", que, como assinala Kershaw, "foi provavelmente a única aeronave a alçar voo na improvisada pista de decolagem da cidade".</p><p>O <i>gauleiter</i> Erich Koch, a propósito, empreendeu uma fuga ainda mais espetaculosa. Se em abril ele ainda fazia disseminar entre a população os seus slogans de resistência - "A vitória é nossa - Königsberg será o túmulo dos bolcheviques" -, ele sorrateiramente se enfiou dentro de um avião com toda a sua família, <i>baldeação</i> para deixar o país a bordo do navio quebra-gelo <i>Ostpreussen</i> (no qual fez embarcar sua Mercedes), em direção à Dinamarca.</p><p>Acredito já termos visto o suficiente do que o livro nos traz, para termos a certeza de que é o livro a ser lido, para os interessados na dissolução final do Terceiro Reich. Para não deixar a narrativa pela metade, entretanto, podemos sintetizar o que se passou a partir daí em poucos parágrafos.</p><p>O processo de rendição alemã foi extremamente tumultuado - uma palavra mais elegante para denominar o bumba-meu-boi que Kershaw meticulosamente detalhou. Para que o leitor menos familiarizado com os fatos do fim da guerra possa ter uma noção, vou resumi-los, de afogadilho. De maneira um tanto tosca, mas funcional. Recapitulemos, antes de avançar.</p><p>A Alemanha estava imprensada entre duas forças, que a espremiam cada vez mais. A oeste, americanos e britânicos (com uma pitada de franceses, vá lá); a leste, os soviéticos. Os primeiros não sofreram os horrores da ocupação nazista, e não tinham o que vingar. Por isso, os alemães achavam legal a ideia de se renderem aos anglo-saxões.</p><p>O problema é que os russos eram animais com sede de vingança. Como já vimos mais acima, vinham para sangrar, dizimar, estraçalhar. Se render a eles seria o mesmo que se oferecer a um leão ferido e faminto. </p><p>A questão é que americanos e ingleses não aceitavam a ideia de uma rendição parcial. Os termos eram rendição incondicional, em todas as frentes, ou nada - ou melhor, mais guerra. Que, a esta altura, significava apenas invasão, morte e destruição. </p><p>A ideia de uma rendição no front ocidental, vale dizer, não era em hipótese alguma admitida por Hitler, que permaneceu até o último instante como o líder inconteste dos alemães e da Wehrmacht. Mas, à medida que Berlim era encurralada e que o próprio Hitler já não dava um passo fora do buraco em que se enterrara - o famoso bunker de Hitler, sob a Chancelaria do Reich -, os personagens mais graúdos da cúpula do regime ensaiavam um vôo solo.</p><p>Göring foi o primeiro deles e foi logo preso, a mando de Hitler. Himmler chegou a tentar negociar uma inimaginável barganha envolvendo judeus ainda vivos em troca de reconhecimento internacional em uma Alemanha pós-Hitler. O führer soube e mandou destituí-lo. Diversos marechais e generais que cogitaram depor as armas, retiradas ou planos defensivos eram defenestrados. </p><p>Alguns eram defenestrados da própria existência terrestre, fuzilados ou enforcados a mando de Hitler.</p><p>O cerco foi se fechando, com os soviéticos já duelando nas esquinas de Berlim, quando Adolf Hitler deu o seu primeiro e último tiro na guerra, acertando deliberadamente a própria cabeça. Era 30 de abril de 1945. Seu gesto foi um decreto de alforria para os oficiais alemães. Em uma semana os termos da rendição incondicional estavam costurados.</p><p>A Alemanha perdia novamente. No rastro de mais uma derrota monumental, deixou um saldo de sessenta milhões de pessoas a menos na humanidade, sendo quarenta milhões no continente europeu - muitas delas exterminadas da maneira mais vil e cruel que se possa imaginar.</p><p>A derrocada total não deixou de ter seus lances de pantomima. Na assinatura da rendição, os comandantes alemães brindaram com os comandantes aliados. Durante quinze dias houve uma "continuidade" do governo alemão, com Dönitz, nomeado por Hitler, prosaicamente se reunindo com seu gabinete numa modesta sala de escola, todo dia, às dez da manhã.</p><p>O grande-almirante Dönitz percorria os 500 metros do seu apartamento até a escola dentro da limusine Mercedes que pertencera a Hitler. Cada um levava sua própria xícara. Alfred Jodl, chefe do Estado-Maior, foi condecorado com Folhas de Carvalho três dias após a rendição alemã. O resíduo da cúpula alemã que não fugiu, nem se matou, cria que "governava" o país.</p><p>No dia 23 de maio, quinze dias após a rendição, Dönitz e Jodl foram chamados ao quartel-general aliado. Foram nas suas limusines e trajando seus uniformes completos, com Dönitz empunhando o seu bastão dourado de comando. Foram informados de que o governo alemão fora dissolvido e receberam voz de prisão. As limusines voltaram vazias.</p><p>Ian Kershaw elaborou o seu livro para nos explicar como toda uma rede de comando, com milhares de líderes, caminhou de braços dados até a morte e dissolução do país. Como o fascínio hipnótico exercido por Hitler se impôs até o último exalar da nação - que perdeu mais de seis milhões de cidadãos, seu território, suas riquezas, sua soberania e sua independência.</p><p>Tudo isso guiado pela visão distorcida de um psicopata carismático. O guerreiro charlatão.</p><p>Na sua mediocridade de reles mensageiro e na sua visão estreita de debatedor de botequim, o cabo austríaco jamais digeriu que o governo alemão tivesse negociado em 1918 os termos de uma rendição, aceita, em Versalhes, no intuito de evitar uma invasão inimiga e a catástrofe para o país. O paranoico Adolf achava que, se a Primeira Guerra Mundial tivesse continuado, os alemães teriam vencido.</p><p>Hitler então criou a própria guerra para provar que estava errado. E a Alemanha foi destruída.</p><p>A pseudo-religião inventada pelos nazistas manteve sua pantomima até os estertores da guerra. Himmler, pouco antes de fugir e se suicidar, comunicou a seus principais assessores que todos os anos, em maio, ele decidiria com qual livro presentearia os mais altos líderes da SS. Era a <i>Julfest</i>, a versão, no ritual pagão da SS, da festa natalina. Himmler comunicou que seus auxiliares tinham até 30 de abril de 1945 para informar os livros que queriam ganhar.</p><p>Se me permitem, eu tenho uma sugestão. Este livro aqui mesmo. "O fim do Terceiro Reich".</p><p>Cia das Letras, 596 páginas | 1a edição, 2015 | Tradução Jairo Arco e Flexa | Copyright 2011</p><p>Título original: <i>"The End: The Defiance and Destruction of Hitler's Germany, 1944-1945"</i></p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5944401202346560186.post-18591318937041805422023-04-11T20:43:00.000-03:002023-04-11T20:43:09.052-03:00"Vermelho Brasil", por Jean-Christophe Rufin<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixcbSHGihq8TmKPGt-3AjfLR4Lscsp_zzDIiHxpKZs8nwtS5bKTo9WQuLTkRNEJ3ty3zItYFJvCKBpQmfWKINgbP7SN4iuoURCLMm7E9c_WTXAmcTWyd1zHZVGLYR5INFPqNxsTYLQN-wsAP-M1gOHg0bV-E4uxviYSEsyZ7NoLJb4yqDrR57WxuHE/s3416/Vermelho%20Brasil.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2224" data-original-width="3416" height="416" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixcbSHGihq8TmKPGt-3AjfLR4Lscsp_zzDIiHxpKZs8nwtS5bKTo9WQuLTkRNEJ3ty3zItYFJvCKBpQmfWKINgbP7SN4iuoURCLMm7E9c_WTXAmcTWyd1zHZVGLYR5INFPqNxsTYLQN-wsAP-M1gOHg0bV-E4uxviYSEsyZ7NoLJb4yqDrR57WxuHE/w640-h416/Vermelho%20Brasil.jpg" width="640" /></a></div><br />O livro é uma narrativa romanceada sobre a pretensão - fracassada - do navegante francês Nicolas Durand de Villegagnon de fundar a França Antártica no Rio de Janeiro, nos idos do século XVI.<p></p><p>Villegagnon é quase um desconhecido na França. Sua tentativa colonizatória deu em nada. Se lá, porém, não sabem quem ele é (em Provins, sua cidade natal, há uma plaquinha homenageando o cidadão "ilustre"), aqui não caiu no esquecimento. Virou referência geográfica. A pequena Seregipe, uma ilhota na Baía de Guanabara, se tornou desde então a Ilha de Villegagnon.</p><p>Sem o charme de uma ilha, porém. Na descaracterização sofrida pela baía com seus sucessivos aterros, visualmente a antiga ilha se tornou no século XX um apêndice do Aeroporto Santos Dumont.</p><p>Na ilhota funciona a Escola Naval, que mantém em seu interior uma área chamada Forte Coligny - em homenagem a Gaspar de Coligny, financiador da expedição francesa seiscentista (nome dado por Villegagnon ao forte que construiu, e que foi arrasado pelos portugueses três anos depois).</p><p>Já o livro dá asas à imaginação. Afora algumas linhas gerais, muito pouco da verdadeira História é respeitada pelo autor. Deu certo. Sua fantasia foi condecorada em 2001 com o disputado Prix Goncourt, a mais importante premiação literária da França.</p><p>Não tenho como contestar as habilidades literárias do dr. Rufin. Polivalente, faz bem muitas coisas, entre elas escrever - mas prezando por um estilo conservador. Seu texto tem a estrutura dos livros de um século atrás (o que não é demérito, escrevia-se muito e bem, há cem anos). É consistente, os personagens são bem construídos e os capítulos terminam em suspense.</p><p>A estória começa com a cooptação de um casal de irmãos pré-adolescentes, Just e Colombe, por um dos homens de confiança de Villegagnon. A ideia é que as crianças se tornassem úteis como trugimães, ou seja, tradutores da linguagem indígena local (desde aquela época já se sabia que crianças aprendem línguas estrangeiras muito mais rapidamente do que os adultos). </p><p>Assim foi feito. Com a descoberta posterior de que as crianças eram filhas de um nobre morto, antigo companheiro de armas de Villegagnon, logo ganharam um lugar privilegiado junto ao chefe da expedição. Este é o núcleo da narrativa romanceada.</p><p>O roteiro segue mal e porcamente os fatos históricos, produzindo uma versão que não é nem uma coisa, nem outra. O ambiente criado tem os pés bem plantados na irrealidade, como a existência de um soberano alternativo, um tal "Pay-Lo", um europeu que se transforma em um sábio venerado pelos indígenas, e que vive encarapitado em uma mansão ecológica na Tijuca.</p><p>Rufin entendeu que o melhor tempero para a sua novela seria o confronto entre Villegagnon e Du Pont - um papista ardoroso contra um enviado de Calvino. A rixa, que começou conceitual, acabou chegando às vias de fato, com os protestantes franceses enxotados da ilha.</p><p>Aí o autor nos oferece uma muqueca ao suíngue do tupinambá doido, com anabatistas assassinos, católicos defensores da hóstia como o corpo vivo do Cristo, calvinistas casamenteiros e um solitário riponga renascentista, pregador do amor livre, comendo e catequisando as índias (ou catequisando e comendo, a ordem dos fatores não alterava a conversão).</p><p>Por trás disso tudo rola um autêntico roteiro de capa-e-espada, com lances à la Dumas, onde um dos trombadinhas que veio a bordo como candidato a trugimão, Martin, foge, se torna líder dos franceses expatriados e de diversas facções indígenas e vive nababescamente em uma paliçada-gourmet aos pés do Pão de Açúcar.</p><p>Não ficou só nisso. A ex-criança de rua dos portos franceses se torna o cacique dos caciques e negocia com os emissários portugueses de Mem de Sá a sabotagem e o ataque ao Forte Coligny. Chega, né? Essas e outras mais você encontra na novela (bem) escrita por Rufin.</p><p>Não entendo muito dos critérios do Goncourt. Nem é o primeiro vencedor do prêmio que eu leio (já li outros de qualidade aquém da esperada, como "Vou embora", do ótimo Jean Echenoz, e outros despudoramente brilhantes, como "As benevolentes", do Jonathan Littell). Mas parece que nem sempre o pessoal acha fácil pra quem dar o prêmio. Tem que dar uma procurada.</p><p>Me entreti e passei bons momentos com o romance de Jean-Christophe Rufin. Na minha condição de carioca de nascença, apaixonado pela história do Rio de Janeiro, ler uma estória ambientada nos primórdios da cidade, antes dela própria existir, me fascina e seduz. </p><p>Mas, apesar da ação transcorrida boa parte do tempo na Baía de Guanabara e no que viria ser a praia do Flamengo, o estilo do autor decididamente não é minha praia.</p><p>Vai que é a sua. Se for, vai se divertir. O texto é bem costurado.</p><p>Uma professora de história me abordou na rua, há duas semanas, ao me ver com o exemplar de "Vermelho Brasil". Perguntou-me a desinibida senhora se o livro na minha mão tinha alguma coisa a ver com o comunismo. Contei a ela que não, e expliquei que a trama se passava alguns séculos antes da Revolução Russa. Ela me cobrou, encafifada: "Então por que se chama <i>Vermelho Brasil</i>?"</p><p>"Não sei", eu disse, e ela me olhou com certo desdém, como se eu fosse analfabeto.</p><p>Fica a pergunta aí pro Rufin, para, ao menos, limpar a barra deste leitor ignorante.</p><p>Suma de Letras (Objetiva), 406 páginas | 2a edição (2015) | Copyright Editions Gallimard 2001</p><p>Tradução Adalgisa Campos da Silva | Título original: "<i>Rouge Brésil</i>"</p>Sidney Putermanhttp://www.blogger.com/profile/02647319753592862265noreply@blogger.com0