"Serotonina", por Michel Houellebecq

terça-feira, fevereiro 07, 2023 Sidney Puterman


Já é o terceiro livro de Houellebecq que comento por aqui. Nunca escondi meu fascínio pela habilidade com que o autor constrói sua prosa - pervertida, escatológica, límpida. O cara enfia a faca (com gosto) na barriga da sociedade francesa.

Instigante. Advirto, porém que este "Serotonina" aparenta sinais de cansaço da fórmula. O personagem narrador, um cidadão mediano que, vira e mexe, assume algumas posturas repulsivas no confessionário que formam os capítulos, é um sujeito enfastiado e desprezível. Lembrando que o nojo - ainda que metafórico -, é ferramenta frequente na tessitura dos livros do autor.

A estrutura entremeia o flashback com a narrativa linear. O protagonista é um tecnocrata de relativo sucesso no funcionalismo público francês e detentor de uma gorda herança, que virá a financiar seu dolce far niente. Obcecado por sexo, o personagem acompanha o declínio de sua libido enquanto desfia o rol de mulheres da sua vida.

A primeira a ser apresentada - e, em ordem cronológica, a última a ser comida, ou quase -, é a  riquinha japonesa esnobe com quem ele se amasiou. Filha única de um casal de posses, os pais esperam o retorno da filha à Tóquio para que possam casá-la com algum nipônico em grande e tradicional estilo. Não sabem os genitores, e provavelmente o futuro marido também não saberá, que a filhinha se diverte nas tardes parisienses estrelando gang-bangs com negões locais.

Picaresco.

O protagonista - vamos dar seu nome, Florent-Claude - resolve não só abandonar a japinha que o corneia como também desaparecer do universo social. Chuta tudo pro alto: emprego, apartamento, mulher etc. Assim, Florent-Claude opta por sumir e é a história desta tentativa de auto-abdução que Houellebecq nos conta, com seu itinerário sarcástico pelos conflitos e incongruências da França contemporânea, a qual ele não tem em boa conta.

Já o Brasil menos ainda. Neste seu texto, Michel se esbalda, citando a troco de nada o nosso país a cada cinquenta páginas. E a gente nunca está bem na fita, o que não é um demérito específico, porque absolutamente ninguém está bem na fita de Houellebecq.

Tendo sido flagrado traindo uma namorada antiga, Florent se queixa de ter sido sumariamente abandonado pela namorada nova, simplesmente por conta de "uma brasileira imunda que ia me esquecer assim que pusesse os pés de novo em São Paulo".

Divagando sobre as implicações morais de matar um guri de cinco anos, ele já mete um "a bem da verdade, se fosse um macaco do Brasil a questão nem seria levada em conta", além de revelar certo incômodo com o preço do passe do Neymar (o livro foi escrito há coisa de seis anos, quando o menino ney tinha acabado de ser comprado pelo Paris Saint German).

Não é um livro que eu sugeriria ler a quem berra o Hino Nacional na calçada todo dia de manhã.

Mas o pau verbal de Houellebecq canta a torto e a direto, faça-se justiça. "Como um holandês pode ser xenófobo?; por si só é uma contradição em termos, a Holanda não é um país, no máximo é uma empresa". Seu personagem francês, preocupado com o agricultor local, não suporta os vizinhos, nem a concorrência supostamente desleal da carne argentina e do leite brasileiro.

Confesso que gostei quando ele zoou "podia aproveitar para me reinventar, como dizem comicamente nos programas de televisão e nos artigos sobre psicologia humana". Essa zorra do reinventar me irrita, uma frescura que o povo adora repetir, e que jamais imaginei fosse praticada também pelos franceses. Tudo bem que são mesmo frescos.

(Adoraria também se ele tivesse falado dos resilientes. Desde que inventaram a resiliência,ninguém mais é resistente, só resiliente. Afe.)

Não vou avançar no roteiro de Florent país adentro, seu reencontro com um amigo de universidade, sua súbita paixão pelas armas de precisão (opa, aqui talvez o pessoal do Hino Nacional se sinta representado), nem sua obstinação de seguir a tal antiga nova namorada, para não dar spoiler

Mas fato é que, a pretexto dos questionamentos íntimos de mais um deplorável bon vivant houellebcquiano, a divertida metralhadora giratória do autor ataca o sexo, a sociedade de consumo, a França e, por que não, a humanidade.

Foi um pouco mais do mesmo? Pode ser. Mas é um mais do mesmo autoral, com pedigree, simultaneamente sedutor e asqueroso. Argh. Há quem goste do cara. Eu tô nesse time aí .

Editora Alfaguara, 237 páginas  |  1a edição, 2019  | Tradução Ary Roitman e Paulina Watch

Título original: "Sérotonine"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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