"O Hitler da história", por John Lukacs

segunda-feira, janeiro 30, 2023 Sidney Puterman


Lukacs não se propõe a analisar a trajetória histórica de Adolf Hitler - e sim a dissecar como dezenas de historiadores o analisaram, em cada das suas etapas. Debate sobre onde e quando (em Munique, ou ainda antes, em Viena) se localizou o cerne da sua formação política. As múltiplas interpretações da sua personalidade, das suas crenças e do seu conhecimento; sua obsessão pelos judeus. 

Encerra na busca pelo verdadeiro lugar na história reservado a Hitler.

A proposta, ambiciosa, se fundamenta no raciocínio ágil do autor, que recorre à contribuição dos estudiosos de sua preferência; mas, seja na forma ou no conteúdo, não raro sua narrativa se revela fragmentada e descontínua.

E não só: a expansiva erudição de Lukacs é aqui e acolá contaminada pela forma superestimada com que o autor vislumbra a persona histórica de Hitler - às vezes, para meu desgosto pessoal, com incontida admiração ("o tipo de homem extraordinário que ele foi", comenta ele, à página 64).

Nem tudo são pedras. O autor, não obstante e mal-estar à parte, é um pensador a se respeitar, ainda que não seja de fácil digestão. Tem peixe fresco na barraca do Lukacs, como, já para dar uma palhinha, uma interessante definição do século XX.

"O século XX - historicamente falando - foi curto. Enquanto o século XVIII histórico durou 126 anos (de 1688 a 1815), caracterizado por guerras mundiais, principalmente entre a Inglaterra e a França, e o século XIX durou noventa e nove anos (de 1815 a 1914), distinguindo-se pela ausência de guerras mundiais, o século XX durou setenta e cinco anos (de 1914 a 1989), marcado pelas duas guerras mundiais e suas consequências - a denominada Guerra Fria entre a América e Rússia. E terminou em 1989, com a retirada russa da Europa Oriental e a reunificação da Alemanha."

O contexto entre as duas guerras mundiais, de 1920 a 1945, prevalece, aos seus olhos, sobre todos os demais momentos do século.

"Durante este período - mais uma vez contrário à impressão popular e equivocada sobre a importância da Revolução Russa em 1917 - a história do mundo foi marcada pela existência e a competição de um triângulo de forças. Houve democracia parlamentar", circunscreve Lukacs, "representada principalmente por nações de língua inglesa, pelos países da Europa ocidental e a Escandinávia. Houve comunismo, representado exclusivamente pela Rússia soviética, incapaz de assumir o poder em qualquer outro país. E houve o nacional-socialismo na Alemanha após 1933, personificados por Hitler e o Terceiro Reich, que se revelou tão poderoso que foi preciso a aliança antinatural e temporária da democracia liberal com o comunismo russo, dos impérios de língua inglesa e russa para derrotá-lo. Nenhum dos dois lados poderia fazer isto sozinho."

Tiro o chapéu para a habilidade e concisão do autor. Mas antecipo também que deixo o meu chapéu na cabeça em muitas outras páginas do livro.

Em seu jogo de temas, subtemas, citações e referências, não é fácil acompanhar as elocubrações empoladas de Lukacs, que conduz seus leitores de forma enviesada. Se ele escreve sobre o que os historiadores escreveram, boa parte do tempo a impressão que se tem é que ele escreve também para se exibir para os historiadores. Sua linguagem, aqui e acolá hermética, nem sempre deixa clara sua ideia do seu principal personagem. 

"Não havia nobreza na constituição física, mental e espiritual de Hitler - nem em seus atos. Mas a rejeição fácil de Hitler, ridicularizando-o, é um completo absurdo. É comprida a lista de pessoas - pensadores, escritores, artistas - que o consideraram um gênio."

Ponderação válida. Talvez seja o propósito central da obra. Mas não só seu livro não a responde, como temo que não seja sequer respondível (como dissociar o sujeito do genocida?). E, além desta hipotética impossibilidade, a forma como seu conteúdo é oferecido não favorece o fluxo das ideias.

O primeiro grande problema do ensaio de John Lukacs é estrutural. Seu texto, dividido em nove capítulos, se vale em excesso de notas complementares ao corpo original da obra. Para cada duas páginas dissertativas, temos o equivalente a uma página em notas adicionais, contendo transcrições, análises, remissões - em corpo 7.

Isso faz da leitura não só um cansativo e aborrecido vai-e-volta, como desnuda a incapacidade do autor de construir um bloco coeso que fundamente suas teses. A absorção das suas ideias se torna tão episódica e pulverizada, com cada parágrafo interrompido por um sem-fim de referências, que seu discurso mais nos enfastia que enriquece.

Não que as questões que aborda não sejam pertinentes; em sua maioria, elas o são. Mas aí, paripassu com a fragmentação do seu texto, temos que lidar frequentemente com sua visão maximizada da estatura de Hitler como estadista e como personagem da História.

O autor, a propósito, publicando seu texto justo meio século após o suicídio do seu personagem, cria ter decorrido tempo suficiente para que toda informação pertinente e verificável sobre Hitler já tivesse sido obtida e divulgada. Ledo engano. Os anos seguintes trariam material novo e também novas perspectivas.

E aqui abro um parênteses importante. Escrita no final do século passado, em 1995, a obra de Lukacs não pôde incluir, entre outros, o ótimo trabalho de pesquisa e investigação empreendido por Thomas Weber, publicado quase vinte anos depois (refiro-me a "Tornando-se Hitler", que você encontra aqui no blog).

A apuração de Weber sobre os anos menos conhecidos da vida de Hitler, que vão de 1918 a 1920, é determinante para uma compreensão mais aprofundada de como aquele que viria a se tornar o líder alemão se formou - conceitual e politicamente.

Sem acesso ao novo panorama aberto por Weber, Lukacs patina em uma versão obsoleta da construção da personalidade do futuro führer alemão, e atribui a ele virtudes, visões e motivações que o bilioso Adolf, na verdade, nunca chegou perto de possuir.


Causa espécie também - e corrobora o viés distorcido do estudioso - o espaço concedido ao caricatural negacionista David Irving, autor inglês apologista de Adolf Hitler. Ainda que ressalte que as teses de Irving careciam de provas, que suas afirmações eram consideradas levianas por muitos historiadores sérios, Irving foi uma citação recorrente ao longo das páginas do livro de Lukacs.

"Alguns dos achados de Irving não podem ser ignorados", diz ele, à página 101; "diferentes foram as interpretações de David Irving em seu maciço Hitler's War", adjetiva Lukacs, à página 129;  "como acontecia frequentemente com Irving, nenhuma fonte foi dada, mas talvez estas palavras não sejam implausíveis", contemporiza, à página 217. Ainda mais afirmativa, e conclusiva, é a observação à página 130: "Irving não deve ser ignorado. Ele tem defeitos, mas é um dos melhores conhecedores de fontes... e contribuiu muito para as pesquisas".

Será mesmo? Jogando um pouco de luz em David Irving, para quem não está ligando o focinho ao cachorro, ele causou polêmica nos anos 70, ao tentar reabilitar Adolf Hitler e defender que Hitler não sabia do extermínio de judeus - argumentando que o Holocausto "havia sido planejado por Himmler,  Heydrich e outros, sem conhecimento de Hitler e contra seus propósitos". 

O estardalhaço disseminado na Europa pelas declarações de Irving trouxeram à tona falsificações grosseiras que ele havia feito de pretensos documentos de Hitler e uma infinidade de afirmações sem qualquer respaldo histórico. David Irving e seu maciço Hitler's War foram para a lata de lixo da história.

Assim, ainda que frequentemente ressalte a impropriedade dos argumentos de Irving, previamente minimizando o poder de suas teses, somente o fato de citá-lo amiúde nos leva a questionar os critérios de Lukacs sobre quais historiadores poderiam contribuir para o debate sobre Hitler.

Ou uma outra, de Karl Dietrich Erdmann, que me leva a crer seja uma das melhores definições que a obra traz sobre o funcionamento mental do objeto do ensaio. "As paixões que governavam a mente de Hitler eram ignóbeis: ódio, ressentimento, o desejo ardente de dominar e, nos casos em que não podia dominar, destruir".

Erudito, habilidoso, aborrecido, tendencioso, embolado. Muito pode ser dito sobre este texto de Lukacs. Mas se há algo que ele realmente não faz é jogar luz sobre o estudo da presença de Hitler na história. Só se a luz em questão for a estroboscópica.

Para encerrar, escolho duas frases do escritor e pensador católico Reinhold Schneider, em 1946 (ainda sob a poeira do caos), apud Lukacs: "Nossa acareação com Adolf Hitler não terminou ainda e não pode ser concluída. De certa maneira, estaremos ligados a ele para sempre", avalia.

Pior é que Schneider vai além: "O povo alemão, pouco importa como esta lista possa parecer grotesca, é o povo de Martin Lutero, de Karl Marx, de Friedrich Engels e também de Adolf Hitler". 

Quem quiser que discorde.

Jorge Zahar Editor | 1a edição (1998) | Tradução de Ruy Jungmann | Copyright 1997

Título original: "The Hitler of History"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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