"1962, o ano Mané", por Maurício Neves de Jesus

sábado, janeiro 21, 2023 Sidney Puterman


Ontem milhões de botafoguenses reverenciaram o quadragésimo ano sem Garrincha. Em sua homenagem, li esta semana este pequeno compêndio que conta, dia a dia, o que se deu no ano de 1962, há 61 anos atrás, ano em que Mané se tornou o maior jogador de futebol de todos os tempos.

Não vou discutir se você disser que foi o Pelé, que nos deixou mês passado. Soberbo, soberano. Toda reverência ao Rei. Mas que vou dizer de alguém que, em plena Copa do Chile, substituiu o próprio Pelé, jogou por ele e pelo menino de Três Corações e conquistou "sozinho" o Mundial de 1962?

Isso, lógico, com o auxílio luxuoso do elenco do Botafogo de Futebol e Regatas (Nílton Santos, Didi, Zagalo e Amarildo fechavam o quinteto alvinegro que ganhou o bicampeonato do mundo).

Então, se você acha que Messi, Maradona, Ronaldo Fenômeno, Romário, Mbappé etc ganharam uma Copa by themselves, é porque você não conhece bem a história de Garrincha. O livro do rubro-negro Maurício Neves ajuda a lembrar.

Aí você vai poder avaliar melhor se algum jogador de futebol já fez um dia o que ele fez.

E, de lambuja, além da Copa do Mundo, neste ano da graça de 1962 Mané meteu três gols na final em que o Botafogo venceu o rival Flamengo por 3x0, conquistando o bicampeonato carioca diante de 158.994 pessoas no Maracanã.

Lembrando que naquela época o Campeonato Carioca só era menor que a Copa do Mundo.

Você, apreciador de futebol - botafoguense ou não -, não deixe de comprar o livro, para homenagear em 2023 os 90 anos de Garrincha. Vou dar uma palhinha aqui, só para atiçar a vontade.

O texto já abre com o amistoso entre Botafogo x Santos, em 3 de janeiro de 1962, no Maraca. Chuta aí o público presente (amistoso, início de ano, verãozão). Segura: 102.348 torcedores maravilhados. Um amistoso! O time do Santos veio com Pelé, Coutinho, Pagão, Dorval, Pepe e Zito. O Glorioso veio com Garrincha, Nilton Santos, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo.

Quer mais? Não dá, né. Nem os Globe Trotters. O Botafogo chapoletou o Santos com um 3x0. Ambos elencos estelares, ambos campeões estaduais de 1961. Mas só um tinha um Garrincha.

Mané, a propósito, ganhou antes da partida um Simca-Chambord, o carraço da época, por ter sido votado pelo Jornal dos Sports o jogador mais querido do Rio de Janeiro em 1961, com 300.247 votos. O vice foi o Vasco, com Belini recebendo 245.308 votos e faturando um terreno em Cabo Frio.

Depois do amistoso pós-virada do ano, teve inicio a maratona de torneios América afora. É jogo dia sim, outro também. De Santiago, onde disputou o Torneio Quadrangular do Chile, o time seguiu para a Cidade do México, para o "V Torneo Pentagonal do México", reunindo três times mexicanos, um húngaro (o futebol húngaro tinha prestígio naquele tempo, a Hungria fora vice-campeã do mundo em 1954) e o Botafogo.

O programa impresso do torneio destacava Garrincha: "Uno de los jugadores más emotivos, más brillantes que há conocido México. Vino por primera vez com el Botafogo que participó en el Pentagonal de 1958. Ahora vuelve con el equipo campeón de Rio, reciente vencedor del Santos".

Galera hoje perde a noção do despropósito que era o time do Botafogo em relação aos demais. O Glorioso tinha por formação titular Manga, Joel, Zé Maria, Nílton Santos e Rildo; Pampolini e Didi; Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagalo.

Já ouviu falar desses caras, né?

Já o onze tricolor vinha com Castilho, Jair Marinho, Pinheiro, Clóvis e Altair; Edmilson e Walter Lino; Calazans, Osvaldo, Jaburu e Escurinho. Bando de desconhecidos. Difícil tirar dois.

O Vasco da Gama formava com Ita. Paulinho, Brito, Barbosinha, e Coronel; Nivaldo e Lorico; Sabará, Javan, Vevé e Da Silva. Daí só dá pra tirar um, o Brito em início de carreira.

Como você vê, eram jogadores tão abaixo do plantel do Botafogo que os nomes não passaram para a história. Já a escalação titular do time de General Severiano é até hoje enfileirada por torcedores de qualquer time, em qualquer estádio, mais de meio século depois.

Este era o Botafogo de Garrincha. Por isso o Botafogo é o que é, mesmo após meio século de desditas. Gostem ou não os campeões sem brilho.

O time do Flamengo era bom e era o único, no Rio, a ter em 1962 jogadores que também marcariam a história do clube; mas não do futebol brasileiro, como os do Botafogo. O time que foi goleado pelo Botafogo na final veio com Fernando, Joubert, Vanderlei, Décio Crespo e Jordan; Carlinhos e Nelsinho; Espanhol, Henrique, Dida e Gerson.

Daí dá para tirar os dois últimos: Dida e Gerson. O primeiro começou titular e acabou reserva do Pelé em 58; o segundo, o Canhotinha, tomou um baile do Garrincha nesse jogo e em seguida foi para o Botafogo, onde foi bicampeão carioca, bicampeão do Rio-São Paulo, campeão brasileiro e se consagrou como um dos maiores meio-campistas que o futebol brasileiro já produziu.

A saída do craque da Gávea foi conturbada e o jogador não deixou barato. Certa feita, o próprio Gerson me contou, em off, que durante muito tempo utilizou a camisa do Flamengo como pano de chão na área de serviço do apartamento dele em Niterói. Desculpe a inconfidência, Canhota...

O livro nos ajuda ainda a comparar épocas diferentes e constatar que, às vezes, o que já era ruim no passado continuou ruim no presente. Hoje em dia, volta e meia algum árbitro furreca ameaça algum jogador habilidoso por driblar demais, não é? Pois no 4x1 para cima do América, no Maracanã, o juiz Amílcar Ferreira "ameaçou Garrincha de expulsão caso ele continuasse a driblar sucessivamente os beques americanos".

Outra: no Rio-São Paulo de 1962, depois de terem empatado em dois jogos na fase classificatória para as semifinais e o regulamento prever uma terceira partida como jogo-desempate, Palmeiras e São Paulo decidiram que quem tivesse "o maior acúmulo de rendas" na competição se classificaria em primeiro e não jogaram o terceiro jogo. E isso foi "combinado" já depois dos dois jogos. 

O torneio evidencia que não eram só os times do Rio que tinham elencos que a história esqueceu. O São Paulo derrotado por 2x1 pelo Botafogo na semifinal no Rio-São Paulo foi escalado com Suli, Deleu, De Sordi e Riberto; Roberto Dias e Jurandir; Celio, Prado, Baiano, Benê e Aílton.

Na final a vitória do Botafogo foi mais elástica: 3x1 para cima do Palmeiras. O time do Parque Antártica veio com Valdir de Moraes, Djalma Santos, Valdemar, Aldemar e Jorge; Zequinha e Chinesinho; Gildo, Américo, Vavá e Geraldo II.

Que eu reconheça como jogadores de expressão, vejo De Sordi pelo São Paulo e Djalma Santos e Vavá pelo Palmeiras. Enquanto pelo alvinegro, repitamos, estavam Manga, Nilton Santos, Rildo, Didi, Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagalo...

Como registrou o JB sobre mais um título do Botafogo, "num jogo que a grande figura foi, mais uma vez, o ponteiro direito Garrincha, imarcável e martirizando seu marcador e a defesa adversária".

Em seguida tudo parou no futebol brasileiro, pois haveria a preparação para a Copa do Mundo e, naquela época, nosso escrete treinava junto, concentrado, por mais de dois meses.

Os treinos eram, na grande maioria das vezes, peladas. Reproduziu o autor que "em um treino recreativo e com balizas improvisadas com cadeiras, sem goleiros, o time de Garrincha empatou com o de Pelé em 3x3". Até aí, tudo bem. Mas o pormenor delicioso foi que "o objetivo da partida não parecia ser marcar gols: depois de Garrincha aplicar uma caneta em Pelé, os dois jogadores protagonizaram um duelo de dribles, para diversão dos espectadores".

Diversão é pouco. Deleite, êxtase, fascínio. Imagino que os dois estejam lá em cima agora zoando um com o outro...

Me surpreendeu a notícia do jornal "A Noite" de 7 de maio, relatando que Pelé e Vavá teriam se agredido após o amistoso contra Portugal (o Brasil vencera por 2x1, com os lusos com Eusébio, Coluna e Costa Pereira em campo). Mas ficou por isso mesmo.

Cinco dias depois, em 12 de maio, o Brasil meteu 3x1 no País de Gales, em amistoso no Maracanã. A torcida alvinegra, premonitória, pendurou uma faixa de protesto, em letras garrafais: "AYMORÉ, VOCÊ CONHECE AMARILDO?" (não aceitava que o seu atacante fosse reserva de Vavá). É bom pra quem pensa que o Possesso ter entrado na vaga de Pelé na Copa e se tornado um dos craques e artilheiros do Mundial foi um golpe de sorte.

O Brasil ganhou por 2x0 na estreia da Copa, em 30 de maio, em Viña del Mar, contra o México. O jogo rendeu uma das fotos mais emblemáticas e repetidas de todos os tempos: Garrincha com a bola, marcado por oito adversários.

Ao se machucar no jogo seguinte, 2 de junho, no 0x0 contra a Tchecoslováquia, Pelé mostrou que tinha visto a faixa da torcida botafoguense. Aos repórteres, preconizou: "Quem sabe não foi Deus quem quis assim? A última Copa foi minha, esta talvez seja a de Amarildo".

Os craques entendem do jogo. Puskas, o fora-de-série húngaro da Copa de 1954, defendeu a seleção espanhola que iria enfrentar o Brasil, no Sausalito, em 6 de junho de 1962. Alertou para seus colegas de time que comemoravam a ausência de Pelé: "Não deviam estar comemorando a ausência de Pelé, e sim buscando um meio de parar Garrincha e Amarildo".

As manchetes de 7 de junho deram razão a Pelé e a Puskas. "Amarildo classifica o Brasil: 2 a 1", estampou na capa o JB.

Contra a Inglaterra, só deu Garrincha, que fez dois gols e meio na vitória de 3x1 sobre os inventores do futebol. E quem inventou mesmo foi o 7 alvinegro, que fez gol de cabeça, bateu a falta que deu rebote para o gol de Vavá e fez o terceiro gol de fora da área, de folha seca, no ângulo. Predestinado.

Uma coisa que muita gente não sabe é que Pelé se auto-declarou recuperado e quis jogar a semifinal, que seria contra os donos da casa. Foi vetado. Afinal de contas, o Brasil tinha Garrincha, que guardou dois. Placar final, 4x2 no Chile, rumo à decisão e ao bicampeonato.

Na final contra a Tchecoslováquia, Garrincha, ardendo em febre, mais fez número que qualquer outra coisa.  Os tchecos abriram 1x0 com 15 minutos de jogo. Como descreveu o autor, "logo depois, Amarildo recebeu a bola de um arremesso lateral ao lado da área, pela esquerda, saiu do primeiro marcador em direção ao fundo, passou no meio de dois outros adversários e, quase sem ângulo, chutou entre Schroiff e a trave: golaço!".

O gol da virada também veio de uma jogada de Amarildo, o Possesso, que costurou pela esquerda, cortou o beque e pôs na cabeça de Vavá. O Brasil era bicampeão do mundo e o resto é história.

Mas muita água ainda ia rolar por baixo da ponte para Garrincha e os craques alvinegros, supervalorizados após a conquista do bi. Ficou difícil para o Botafogo segurar os caras. Depois de uma novela arrastada, Garrincha renovou com o clube, em um contrato que incluía três apartamentos no Rio.

Falando assim, parece bom. Mas aonde? de que tamanho? o diabo mora nos detalhes.

E lembrando que nem tudo eram flores. O time começa mal o Estadual e perde para o Vasco por 1x0. A torcida vaia. Mesmo já na reta final do campeonato, com o Flamengo liderando e o Botafogo na segunda colocação, a apenas um ponto de distância, a torcida vaiou o time na magra vitória de 2x1 sobre o Canto do Rio.

Para quem acha que torcedor alvinegro vaiando o time é fenômeno recente. Anotaí, Luís Castro. A torcida vaiava um time que tinha Manga, Rildo, Quarentinha, Amarildo, Zagalo, Nilton Santos e Garrincha. Segura essa.

(Antes do fim do mês, Didi deixaria o clube, para ser técnico no Peru. A torcida pendurou uma faixa na arquibancada de General Severiano: "Didi saiu, displicência sumiu".)

Enquanto o Carioca corria, o time do Botafogo seguia excursionando pela América do Sul. Em Bogotá, Colômbia, meteu 3x1 no Santa Fé, com estreia de Jairzinho, entrando no segundo tempo no lugar de Quarentinha.

Quando o time ia fazer o último jogo na cidade, contra o Milionarios (uma espécie de Real Madrid sul-americano dos anos 60), o jornal El Tiempo se derramou, anunciando a "Despedida de Bogota de Los Maestros del Balompié Brasilero": "Con el fabuloso Garrincha y la revelación del Mundial Amarildo y sus demás figuras estelares".

A propósito, o jogo entre o Botafogo e o Milionarios terminou 6x5 para o Glorioso, em uma das maiores partidas de futebol de todos os tempos. Trinta mil espectadores viram Garrincha fazer dois gols e dar passe para outros dois.

Na volta, pelo Estadual, o Botafogo meteu 3x1 no Flamengo, então líder, de virada. Os gols no Maracanã foram de Garrincha, Arlindo e Amarildo. Na semana seguinte o Botafogo fez um amistoso em Barra do Piraí contra um selecionado local, com a presença obrigatória de Garrincha.

Que dureza.

Se teve faixa contra Didi e vaias gerais dirigidas ao time, sobrou também para Garrincha, acusado de uma vida desregrada. O craque se defendeu: "Eu acho que estou jogando bem. Posso não dar show, mas produzo para o time e corro em campo o tempo todo. Mas se isso não está agradando, domingo vou jogar como todos gostam".

Em 21 e 28 de novembro o Botafogo fez os jogos de ida-e-volta contra o Internacional pelas semifinais da Taça Brasil. Abriu 2x0 em ambas e tomou o 2x2 em ambas, no Maraca e no Olímpico. O jogo desempate foi dois dias depois (!!!), no mesmo Olímpico. Aí foi 2x0 mesmo, com show de Garrincha e Quarentinha.

De volta ao Rio e ao Campeonato Carioca, o time meteu 3x1 no América (um de Garrincha e dois de Quarentinha), 1x0 no Fluminense (Amarildo) e foi para o jogo final contra o Flamengo, que precisava apenas de um empate para ser campeão. O Botafogo precisava ganhar.

Com dez minutos de jogo, Garrincha driblou dois, Jordan e Vanderlei, e inaugurou o placar. É aquele gol que se tornou antológico, com as cenas cult de Garrincha correndo, pulando e rindo, por trás do gol. Aos 34 minutos, ele driblou dois, Jordan e Gerson, e guardou mais um; e no início do segundo tempo Garrincha fechou o hat trick, dando números finais aos 3x0 da conquista do Carioca de 1962.

Na carreata da vitória, uma faixa exaltava que "O maior jogador do mundo é do Botafogo".

Se 1962 foi o último grande ano do Mané, há expectativas de que o 2022 que recém terminou tenha sido o ano da retomada do Botafogo. Se oxalá realmente for, que ninguém esqueça que não haveria esta, nem nenhuma outra retomada, se um dia não houvesse Garrincha levado o time da Estrela Solitária ao Olimpo das lendas.

Os outros clubes são bons. Mas são normais.

Editora Livros de Futebol.com, 148 páginas

P.S.: Obrigado, Mané. Você é o grande responsável pelo passado, pelo presente e pelo futuro do Glorioso.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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