"Brasil: os frutos da guerra", por Neill Lochery

sábado, janeiro 14, 2023 Sidney Puterman


Como estamos carecas de saber (uns mais, outros menos), a narrativa histórica é um conflito permanente entre fatos e versões. Cada um puxa a brasa pra sua sardinha. A história geralmente é a vítima e as versões se põem a serviço de manipulações criativas (não raro com objetivos escusos).

Já os curiosos, esses chatos, querem se livrar dos intermediários da verdade, mergulharem na História e viajarem até lá para ver o que se passou. Obstinados inofensivos, só querem entender os "desdobramentos". Céticos à caça da natureza crua dos fatos.

Gosto desses últimos.

Cresci ouvindo estórias da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Dois tios meus lutaram nela. Um deles, Werther, gostava de me contar que sua epopeia bélica foi um grande cruzeiro turístico patrocinado pelo governo brasileiro. Bateu foto no Coliseu, esnobou bebendo vinho na temperatura ambiente e se divertiu com as locais.

Já meu tio Felipe não falava da guerra. Sua experiência foi traumática. Era encarregado da instalação de explosivos, ação tática para o avanço da tropa. Nunca lidou bem com o fato de suas tarefas terem provocado a morte de inocentes - italianos civis. Um fardo difícil de carregar vida afora.

Ou seja, ambos estiveram no mesmo front, mas lutaram guerras diferentes e foram impactados também de forma diferente por esta mesma guerra. Assim, a distorção na narrativa nem sempre advém de má fé; um ângulo menos privilegiado pode pavimentar uma convicção equivocada.

Mas isso nunca acontece quando a política está no meio. Nela ninguém erra por ingenuidade.

Isto posto, precisamos ter clareza de que a adesão do Brasil aos países Aliados não foi provocada por razões militares (nem pela indignação cívica frente aos nossos navios afundados pelos U-boats nazistas). Despachamos 25.000 brasileiros para trocar chumbo na Itália para dar suporte às aspirações políticas de um ditador populista.

A propósito, a Itália como destino militar foi uma mudança de plano encetada pelo governo no último minuto - e isso pouca gente sabe. O General Mann, navio ancorado no cais do porto no Rio de Janeiro, recebeu a bordo milhares de recrutas brasileiros, com destino a Argel, na África. Mas, quando partiu, sua tripulação foi comunicada de uma súbita mudança de rota.

Os pracinhas iriam desembarcar em Nápoles e se juntar a uma ofensiva na Itália. 

É que, quando enfim chegou o momento da partida brasileira, após muita protelação, o território africano já estava pacificado e livre de nazistas. Ir à guerra em um continente sem inimigos não era a propaganda sonhada por Getúlio Vargas e seus ministros - repetindo, para os incautos, que a presença do Brasil era pela simbologia, pelas fotografias; e não um genuíno corpo operacional.

Em miúdos, o Brasil estava indo como ajudante de p... nenhuma. Ninguém precisava do Brasil para ganhar a guerra (que em 1944 já estava ganha, faltava só o arremate). E se precisasse, estavam f... O inapto  contingente brasileiro só se prestaria para figuração de filme da Metro. 

Dessa forma, a Itália se impôs como um destino emblemático e seguro. Um teatro de operações secundário, mas ainda ativo e que permitiria a visibilidade necessária às nossas pretensões.

Vale dizer que o Reino Unido foi desde o início resistente à participação brasileira. E não à toa.

Vejamos: o Brasil não tinha tradição, experiência, capacidade, conhecimento, treinamento, material - nada. A única razão para estarmos sendo aceitos como um "aliado" militar era a cessão das bases em Natal para pouso e decolagem da força aérea americana, com a finalidade exclusiva de abastecimento das aeronaves.

Os ingleses não tinham vantagens logísticas com o acordo e fizeram o possível para melá-lo.

Decerto não faltavam razões para quererem nos manter à distância. Em tudo o Brasil era um pedinte. Antes de embarcar, o exército brasileiro queria armas, sob o pretexto de tornarem os recrutas aptos a guerrear na Europa - mas este mesmo material bélico era requerido pelos países que combatiam de verdade Hitler: os russos, na frente oriental, que eram quem na realidade morriam e matavam alemães; os americanos e ingleses, na frente ocidental, que desembarcaram no Canal da Mancha para retomar a França; e os franceses livres, que enfrentavam os nazistas na França ocupada.

Eram muitos os candidatos a beneficiários deste arma-família, o lend-lease norte-americano. E, cá entre nós, as armas para o Brasil eram bem mais importantes para o país se sentir fortalecido perante os argentinos do que para lutar contra alemães na velha bota.

Em suma, a FEB só foi equipada quando enfim desembarcou na Europa. Não só foi armada, como também vestida, pois o uniforme dos pracinhas brasileiros era totalmente inadequado para o inverno europeu.

A esta altura, convém salientar que o livro de Neill Lochery não é sobre a presença militar brasileira na WWII. Não obstante, traz um alto volume de informações sobre a nossa irrelevância no conflito, o que torna inevitável, para mim, bordejarmos a questão.

O fato é que, até hoje, a participação do Exército brasileiro na Segunda Guerra Mundial é controversa. Da mesma forma que, à época, a ação foi um instrumento político, as correntes de opinião atuais também vêm a reboque de um discurso politicamente manipulado.

Os que querem valorizar a presença brasileira gostam de destacar os 500 brasileiros mortos em chão italiano. Mas esquecem que o número de óbitos não é sinônimo de mérito, como os mais de 600.000 brasileiros mortos pela Covid-19 não nos transformam em heróis contra o vírus. Somos vítimas.

Os pracinhas brasileiros que morreram na Itália combateram com coragem - mas sem perícia, sem razão e nem propósito. A cúpula militar brasileira ou ficou aqui ou foi à Europa flanar. Não lideraram, nem foram ao front. E ainda se regozijaram com os quinhentos mortos.

Já os cadáveres nacionais deram legitimidade ao discurso da participação heroica do Brasil. Para o discurso varguista, se todos tivessem voltados vivos a narrativa governista e militar teria sido esvaziada.

Mas, voltando ao livro de Lochery, este nem é o ponto fulcral do texto, como já disse, nem sequer ocupa muito espaço. O viés do autor são as tratativas políticas de Getúlio Vargas, à frente do governo brasileiro, com o governo de Franklin Roosevelt.

Confesso que senti uma certa forçação de barra na composição da obra. A matéria prima me pareceu espichada e os pontos debatidos me soaram menos substanciosos do que queria fazer crer o inglês. Fiquei com a impressão de um autor em busca de um tema. Gostaria de ouvir outras opiniões, para me certificar que não estou sendo severo demais com o jornalista.

Mas fora de dúvida de que o panorama aberto pelo brasilianista procede e é bem fundamentado. 

"Na época da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Brasil desfrutava de uma relação razoavelmente forte - e muito lucrativa - com a Alemanha", explana Lochery. "Enquanto isso, os Estados Unidos se preparavam para entrar na guerra contra a Alemanha e tramavam incluir o Brasil no grupo dos Aliados. Os americanos acreditavam que o Brasil era o parceiro local mais confiável na missão de deter o crescimento da influência nazista na região".

Os americanos decidiram investir na conquista da adesão brasileira. E, como enfatiza o autor, Vargas, "com cautela, tentou maximizar os ganhos do Brasil com a guerra". É em torno desta aproximação e da concretização do acordo que o livro se desenrola.

Não vou me estender aqui na negociação bem-sucedida (e arrastada) que levou Vargas a obter para o Brasil o polo siderúrgico de Volta Redonda, a CSN. Afora o detalhamento, que toma dezenas de páginas da obra, foi mesmo o que parece: Getúlio obteve a siderúrgica em troca do aluguel de Natal.

Não teve muita emoção no fato, nem na narrativa. Aliás, fora a abertura, falta emoção no livro.

Como já é tradição na atual produção editorial de História, Lochery abre seu texto com um evento específico - a tentativa de invasão do Palácio do Catete, para depor Getúlio. O atentado era liderado pelos integralistas e pelos militares, mas foi um fiasco e ninguém o assumiu (ontem, hoje e sempre ninguém quer ser pai de filho feio). 

Para nós, brasileiros, o preâmbulo foi interessante. Sabemos pouco sobre este atentado ao ditador, raramente mencionado. Getúlio de revólver, ao lado da filha, na janela do palácio parece cena de filme. 

Mas ficou só no trailer. Não deu em nada.

Vale contextualizar que, à época, o Brasil ainda era extremamente subdesenvolvido. Em 1940, dois terços dos brasileiros eram analfabetos e quase 70% da população vivia em áreas rurais. E, sob a perspectiva geopolítica, o governo geria essa imensidão territorial com permanente medo da Argentina.

O historiador reproduz um relatório dos serviços de inteligência americanos da década de 30, que afirmava que "os brasileiros manifestam preocupação com as pretensões argentinas com relação ao seu território", destacando que "a Argentina era considerada a mais poderosa das nações latino-americanas. O vasto e subdesenvolvido interior do Brasil e sua população heterogênea eram considerados uma fonte de fraqueza, e não de força".

A inversão de forças, noventa anos depois, vale uma reflexão (noves fora o Messi). Mas não é assunto para agora. Interessante saber que nuestros hermanos del sud eram considerados uma ameaça à nossa soberania há tão pouco tempo atrás.

"A Argentina era mais rica", continua o relatório. "Seus centros populacionais e de produção eram mais compactos e imbricados; e seus habitantes, predominantemente brancos, desfrutavam de um padrão de vida melhor do que o da maioria dos brasileiros. Muitos observadores consideravam suas forças armadas as melhores da América do Sul".

Pior de tudo é que a Argentina, com toda a sua prevalência, tendia inequivocamente para a Alemanha nazista. Aos olhos dos Estados Unidos, isso fazia do Brasil o fiel da balança, e aumentava muito o nosso preço de capa.

Um outro relatório, do secretário de Estado norte-americano Cordell Hull, comparava o cenário atual da América Latina com aquele que experimentara um pouco antes.

"A América Latina que visitei naquela viagem diferia da América Latina que vi apenas três anos atrás", asseverou Hull, "porque a penetração do Eixo fizera um progresso alarmante e veloz sob vários aspectos". Atribuía "esforços intensivos" não só à Alemanha nazista, mas também à Itália e ao Japão.

No que tange ao envolvimento do Brasil na Segunda Guerra, estas eram as circunstâncias ao redor das quais giravam os principais players, atrelados cada qual ao seu conjunto de influências. Os norte-americanos, sob a liderança de Roosevelt, estavam mais coesos, ainda que não imunes às dissensões em aspectos isolados; já o governo brasileiro hesitava e refluía em torno das pressões de atores importantes da ditadura - como os militares, Dutra e Goés Monteiro, pró-Eixo, e Oswaldo Aranha, pró-EUA.

É este cabo-de-guerra (no caso do livro, literalmente) o palco onde Lochery procura suas nuances, apresenta suas pesquisas e defende suas teses.

Apesar de correto, e com muito conteúdo raro - gostei sobretudo da parte sobre o investimento cultural de Rockefeller no Brasil, e toda a estória envolvendo os artistas, Walt Disney e Orson Welles -, achei que o livro contribuiu menos para o esclarecimento histórico do que era minha expectativa.

Praticamente tudo o que é dito nele eu já havia lido em outras publicações - pelo menos, a parte mais robusta. As cercanias periféricas foram abastecidas com dados novos, mas de pouca influência no fluxo dos acontecimentos.

Gostei também das inúmeras citações das idas de Getúlio Vargas a Petrópolis. Pelo que se lê aqui, boa parte das decisões mais importantes do governo (incluindo a de ir à guerra) foram tomadas no Palácio Rio Negro, na Avenida Koeler, a 400 metros aqui de casa. Um bom lugar. A Cidade Imperial sai valorizada deste livro do britânico Neill Lochery.

Porém, mais que tudo, o livro deste professor do University College de Londres - especialista mundialmente reputado na história moderna da Europa - se revela uma fonte preciosa sobre as tratativas da presença da Força Expedicionária Brasileira no teatro de guerra.

Para um tema eivado de oportunismo histórico, como este, uma base sóbria é valiosa para prover de conteúdo os curiosos empedernidos aos quais me referi no início deste texto. Há quem tenha prazer pela História pelo que ela é, e não pelo que ela deveria ser ou pelo que gostaríamos (ou nos conviria) que fosse.

Com a passagem dos anos, a participação brasileira na guerra se viu cada vez mais contaminada por essa matiz nacionalista e ideológica. A cada década, a versão se impunha mais fortemente aos fatos. Por isso, entre outras fontes importantes, o texto de Lochery nos auxilia a entender o momento e os fatores que influenciaram na tomada de decisão dos principais personagens.

Uma obra que, ainda que de forma enviesada, presta um bom serviço aos estudiosos do tema.

Editora Intrínseca, 367 páginas  |  1a edição, 2015  |  Tradução Lourdes Sette  | Copyright 2014

Título original: "Brazil, The Fortunes of War - World War II and the Making of Modern Brazil"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: