"O lugar", por Annie Ernaux

sábado, janeiro 07, 2023 Sidney Puterman


Prêmio Nobel de Literatura em 2022, a octagenária escritora francesa segue badalada mundo afora, desde sua premiação pela academia sueca. Já seu ápice tupiniquim se deu na edição da Flip de novembro do ano passado, em Paraty, onde Mme Ernaux foi a principal homenageada.

Segundo li nos jornais, ao longo de prolífico meio século de carreira literária, a autora havia vendido dez mil exemplares no Brasil. Mas só nos últimos dois meses foram quinze mil - observou um site literário. Ou 35 mil, comemorou uma colunista. Um baita aumento exponencial.

Bem, talvez não seja muito. A escritora mineira Carla Madeira vendeu 50 mil exemplares de seu livro "Tudo é Rio", que eu, por sinal, não li e nunca tinha ouvido falar. Nem do livro, nem da autora. Pois é.

Voltemos à francesa. Como convém a um tempo identitário, em Paraty seu sucesso global foi celebrado como uma vitória particular das mulheres. Ok. Ernaux, née Duchesne, tornou, assim, o nome do marido famoso. Já o pai, em seu livro "O lugar" - que também poderia ser intitulado "O pai", "A origem", "O café", mantendo seu estilo nominativo - é chamado só pelas iniciais: A... D...

A própria Annie, ao longo de toda a sua carreira, investiu fortemente no discurso feminista. Tinha suas razões - que são difíceis de serem avaliadas aqui e agora, nestes conflagrados trópicos mezzo lulistas, mezzo bolsonaristas (50,5% - 49,5%), no ano da graça de 2023. É inadequado traçar um paralelo entre o feminismo raiz da intelectual francesa e a retórica feminista atual.

Fato é que vivemos tempos estranhos, onde a simbologia superficial sequestrou o espaço antes tradicionalmente dominado pelo conteúdo. Já ela, Annie, vem de um outro tempo, cultura e lugar. Por isso, o feminismo que ela defende tem outro peso, que não julgo. Se quiser, julgue você.

"O lugar" foi seu segundo livro. É um depoimento pessoal sobre as origens camponesas e operárias da sua família. É um compilado de anotações sobre o seu pai. Compõe uma narrativa de gerações, cerzida com propriedade e um agudo senso de observação.

O lugar que sua família ocupava no universo social francês; o lugar que era a residência dual (meio casa, meio loja) em que Annie cresceu; o lugar que era a pequenina cidade de Yvetot, onde moravam, que a escritora denominava apenas por Y...

O título original da obra é "La place" e a tradução escolhida pelo editor brasileiro foi  "O lugar". Correta. Nada a opor. Mas, ao falarmos do livro, gera certa confusão, porque o vocábulo "lugar" em português é bem mais recorrente do que "place" em francês, que é mais particular.

Este "O lugar" no nosso idioma é um conflito permanente entre condição e localização. Não sei se você no meu lugar pensaria de forma diferente.

Ernaux escreveu este seu livro em 1983, dezesseis anos após a morte do pai. No ano seguinte a obra recebeu o prêmio Renaudot. Não sei se já disse, seu livro é autobiográfico, mas seu significado e suas referências vão muito além. Ela fala sobre a França, sobre divisão de classes, sobre sexismo, sobre exclusão e sobre a inevitável distância entre gerações.

"Uma professora minha disse certa vez que a nossa casa era bonita, 'uma verdadeira casa normanda", conta Annie. "Meu pai achou que ela só estava querendo ser educada. Aqueles que admiravam as nossas coisas velhas, a bomba d'água no pátio, as casas normandas com viga de madeira aparente, certamente queriam nos impedir de ter o que eles já tinham, eles que eram tão modernos, com água na torneira e uma casa branca".

No futuro seria diferente. O lento e pequeno sucesso do pai como comerciante permitiu que ele modernizasse a aparência do imóvel. Mas era uma modernidade que vinha na contramão.

"Agora que o café do meu pai tinha, enfim, a fachada toda pintada de branco e o letreiro em neon", lamenta ela, "os proprietários dos cafés com certo faro comercial estavam voltando para as fachadas normandas, com vigas falsas e lâmpadas antigas."

O que era raiz era pobre, e depois virou cult, para quem não era pobre. Dilema constante.

"O patoá foi a única língua dos meus avós", ressalta, dizendo que "há quem aprecie o aspecto pitoresco do patoá e do francês popular". Mas destaca que para o pai "o patoá era uma coisa antiquada e feia, um traço de inferioridade. Ele se orgulhava por ter, em parte, conseguido se livrar dele. Ainda que seu francês não fosse bom, pelo menos era francês".

Ela fala também do ceticismo político do pai, que havia votado em Pierre-Marie Poujade "sem convicção, achando que ele era uma farsa, 'muito blá-blá-blá". O dito cujo era um populista que liderou protestos de direita na França dos anos 50. Segundo diz em nota de rodapé o editor do livro, "seu discurso anti-intelectual, xénofobo e colonialista deu origem ao Poujadisme".

O partido do poujadisme era o UDCA, que elegeu 56 membro para a Assembleia em 1956, cujo parlamentar mais jovem entre os eleitos era Jean-Marie Le Pen - hoje símbolo da direita xenófoba europeia e pai de Marine Le Pen, que carrega, em pleno 2022, a bandeira do pai.

Saindo da política e indo para o picaresco, a autora alimenta a versão do pouco apreço dos franceses pelo banho, ao dizer que "domingo era dia de tomar um bom banho, ir à missa (...)". Não fica claro se bom banho significa um banho melhor do que o tomado nos outros dias ou se, porque era o único da semana, era bom, ou, ainda, bom que este único banho fosse enfim tomado. Fica a seu critério.

Sempre com distanciamento, Annie revela o quão emocionalmente longe ela viveu de um pai fisicamente próximo. Faz isso com substância, ritmo, concisão. E a riqueza com a qual ela descreve esta relação e tudo que a delimitava não tem a ver com gênero. Tem a ver com talento. 

Annie Ernaux, née Duchesne, escreve sobre sua circunstância e escreve excepcionalmente bem.

Editora Fósforo, 69 páginas 1a edição 2021 (4a reimpressão, 2022)  |  Tradução Marília Garcia

Título original: "La place"   |  Copyright 1983

Sidney Puterman

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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