"Garbo, o espião que derrotou Hitler", por Javier Juárez
"Garbo", tido como o "maior espião de todos os tempos", é o careca aí de cima. Figurinha fácil, e incensada, nos documentários europeus e norte-americanos. A foto do documento acima é a dele; o nome Juan Pujol Garcia é mesmo o seu nome de batismo; e a ficha consular brasileira é autêntica.Só que, apesar da ficha, ele nunca colocou os pés no Brasil. Mas antes dele vamos falar do livro.
"Garbo, o espião que derrotou Hitler" começa chato, avança morno e, ô glória, termina ilargável. Reporta uma estória absolutamente desconhecida (para nós, brasileiros, naturalmente muito menos expostos aos eventos e retrospectivas da Segunda Guerra Mundial) e que, passo a passo, ganha um ritmo rocambolesco e cinematográfico.
E que ainda por cima mexe com o charmoso conceito de "espião" que temos desta atividade secreta. Nossos estereótipos têm por berço os bons filmes do 007. Se o Garbo que vimos aqui, porém, foi o maior espião da guerra, dá para ver que ser espião é bem menos glamoroso que pensávamos - e sequer espia alguma coisa.
Na verdade, Garbo espiava, mas de mentirinha. Ele era um contra-espião. Um agente duplo. Que, para os alemães, se chamava Alaric. Para os ingleses, Arabal. Para a fama, Garbo. Mas que não passava deste modesto Juan aí da ficha. Um basco miúdo, que, sem rumo, viveu primeiro de criar galinhas no interior e que, depois, fugiu da Guerra Civil Espanhola, se arrastando pelas montanhas.
Como este sujeito é tido como o maior espião de todos os tempos, ou, ao menos, o que mais influência teve nos rumos da guerra, é difícil de conceber - ao menos, só com estes dados, ou com o seu indigente início de carreira. Mas a gente termina o livro sem a menor sombra de dúvida da sua importância para o sucesso do desembarque aliado na Normandia.
E, para este nosso entendimento, vale a costura precisa com que o autor vai cerzindo, desde o início, a trajetória do espião espanhol - caso único na história de alguém condecorado tanto com a Cruz de Guerra alemã como com a Medalha do Império britânica. Por aí já dá uma medida do que ele fez. Que é o que Javier Juárez nos conta.
A despeito do título sensacionalista - ah, os títulos -, a narrativa de Javier Juárez é sóbria e bem fundamentada. E, apesar de começar pouco promissor, o livro é bom, muito bom. Só que primeiro a gente tem que passar pela rebentação.
"Garbo", aviso, tem um início truncado. A impressão que dá é que não poderia ser mais mal escrito. O autor tem um relacionamento cerimonioso e empolado com o leitor. E a estrutura escolhida parece pouco atrativa: encontra Garbo - para mim, até então, um desconhecido - no seu exílio, incógnito, numa ilhota do Caribe, e daí começa a desfiar as dificuldades de encontrá-lo. Relata como o escritor inglês Nigel West o teria localizado, e aí convencido o espião a narrar suas memórias.
Um pouco contraproducente para a larga parcela do universo leitor que não tem a mínima noção de quem foi o personagem título. Javier prossegue narrando a ida de Juan Pujol Garcia - era este o nome real do agente secreto - ao Reino Unido, onde foi recebido e condecorado pelo Duque de Edinburgh (o príncipe Phillip, marido da rainha Elizabeth). Dali foi para sua Barcelona natal, rever familiares que o tinham por morto há 30 anos.
Então o autor começa a contar a infância de Juan, moradias, colégios, etc. Me pergunto se não teria sido mais adequado circunstanciar o leitor com a dimensão do personagem na esfera de atuação que o consagraria - como já prenuncia o título, ele é apresentado como o espião que "enganou Hitler e tornou possível o desembarque aliado no dia D" - e só então retornado à infância comezinha.
Mas não foi assim que Javier escolheu. Que o leitor brasileiro curioso tenha paciência. Porque, pelo visto, lá fora o gajo é famoso e dispensa introduções.
E, avançando nas páginas, a gente descobre que não à toa. O castelo de cartas que Garbo construiu, composto por uma rede de dezenas de espiões pró-Alemanha infiltrados no Reino Unido, enviando mensagens estratégicas para Berlim, via Madri, foi monumental, para dizer o mínimo.
E o espetacular da estória é que nenhum dos inúmeros espiões da rede Garbo existia.
E foi com base nos relatos minuciosos enviados por cada um destes agentes inexistentes, que o comando da Wehrmatch decidiu não deslocar para Cherbourg, no auge do desembarque aliado, as divisões alemãs estacionadas em Calais. Elas permaneceram onde estavam, com Hitler e seu Estado Maior convictos de que a Normandia era uma ação diversionista e que o verdadeiro desembarque se daria em Calais.
Os alemães demoraram dois dias para mobilizar seus gigantescos efetivos, forças SS inclusive, que ficaram estacionados em um lugar onde não havia inimigo algum. O inimigo em carne e osso já avançara o suficiente e estabelecera as cabeças de ponte necessárias para a partir daí não ser mais desalojado. Doravante, vencer a guerra da Europa se resumia a uma questão de tempo.
Como este engodo foi montado por um homem que começou agindo absolutamente sozinho - sem o apoio ou cumplicidade de nenhum governo ou indivíduo - e que com seu próprio engenho construiu a maior farsa da História, Javier Juárez vai explicar.
Seu detalhismo de relojoeiro mostra a que veio, à medida em que os capítulos se sucedem. Porque somente um jornalista que se propusesse a contar nos mínimos detalhes tudo o que antecedeu a uma ação tão improvável poderia proporcionar a percepção real do desenrolar da operação.
Não que o livro tenha resposta para tudo; não tem. Não que não haja lacunas (há muitas) e contradições (dezenas). Mas é justamente por confessar tudo que não sabe, e apontar todas as incongruências que achou nas dezenas de relatos retrospectivos, que o texto se revela ainda mais crível. E a paciência de Juárez em encaixar cada pequena peça nos guia por um labirinto que somou, ao fim da guerra, um total de 315 cartas enviadas por Alaric aos alemães, além de 1.200 mensagens transmitidas de Londres a Madri e daí repassadas a Berlim.
(Cada carta era uma missão em si: escritas em código, com tinta invisível, exigia um lento processo de produção e secagem, para que depois o agente escrevesse, por cima do texto invisível, o texto fictício de uma carta convencional - já que, durante a guerra, toda a correspondência estava sob censura.)
As razões pelas quais o espanhol Juan Pujol Garcia, cidadão desempregado de um país neutro, resolveu lutar contra os alemães são apenas intuídas: aversão ao nazismo e interesse em dinheiro.
O grande problema é que, de início, Juan era tão espião quanto eu e você. O mais incrível é que ele resolveu se tornar um espião sem que houvesse nenhum vínculo anterior, conhecimento pessoal, traquejo ou aprendizado. Ele simplesmente achou que poderia ser útil e procurou a embaixada britânica em Madri.
O resultado foi zero. Tentou outras vezes, com o mesmo resultado. Resolveu buscar um outro caminho: se oferecer aos alemães. No início, os desdobramentos foram idênticos. Ignoraram suas tentativas de aproximação. Até que, pela insistência, conseguiu um encontro. Nele, foi convincente o suficiente para conseguir um outro. E foi inventando estórias, que se encaixavam e lhe davam credibilidade - a ponto da Abhwer, a rede de inteligência e espionagem nazista, lhe dar crédito e financiar suas atividades, incluindo a viagem para Londres.
Este abuso em cima dos nazistas já era ousadia suficiente, mas Juan fazia a cada vez um movimento mais arriscado. Em breve, seus contatos alemães já acreditavam que ele comandava uma rede de espionagem em território britânico - sem imaginar que Juan permanecia no continente, em Lisboa, não falava uma palavra em inglês e não tinha contato nenhum, que dirá uma rede de agentes.
Seguro da credulidade dos alemães, Pujol voltou aos ingleses, se oferecendo como contra-espião. Os britânicos não lhe deram trela. Então, como eu tinha me comprometido a voltar ao itinerário brasileiro de Juan, foi aí que, em novembro de 1941, desiludido com a falta de avanço nas tratativas com o serviço secreto inglês, decidiu abandonar tudo e emigrar para o Brasil com a família.
Neste momento, quem tomou a iniciativa foi sua esposa, Araceli, que tentou, e conseguiu, um encontro com Rosseau, ajudante do adido naval da embaixada norte-americana em Lisboa. Somente aí, apesar do ceticismo inicial, americanos e ingleses acreditaram na existência e no potencial valor do espião que se oferecia. Bye-bye Brasil. Pujol nunca pisou por aqui, mas foi fundamental para Churchill ganhar a guerra.
Não acreditaram sem antes confirmar: outros espiões ingleses identificaram como o alto comando nazista acolheu como verídicas as informações prestadas por um certo Arabal, sobre um comboio aliado que seguia em direção à Malta, no Mediterrâneo. Os alemães deslocaram uma frota de ataque para interceptar o comboio - que não existia. Juan, ou melhor, Arabal, que havia informado previamente os ingleses do conteúdo das suas comunicações, foi então finalmente reconhecido como um agente valioso, que desfrutava da confiança do governo alemão.
E, detalhe, o deslocamento das forças nazistas para atacar uma força inexistente possibilitou que a verdadeira força se movimentasse sem encontrar resistência. Bingo.
A partir daí, como instrumento cada vez mais decisivo do M15, Arabal vai verdadeiramente para a Inglaterra, ironicamente subsidiado pelos próprios nazistas. Lá começa a lenta construção da sua estratégia - que irá desembocar no magnífico plano de contra-informação que provocará que dezenas de milhares das melhores forças de combate alemãs se mantivessem voluntariamente fora do teatro de guerra em um momento capital do conflito do milênio.
Como ele conseguiu isso? Bem, aí você vai ter que ler o livro.
No capítulo final, no pós-guerra, acompanhamos o ostracismo e os sucessivos empreendimentos fracassados de Juan Garcia - que sobreviveu à guerra, despistou os nazistas, reteve boa parte de um financiamento milionário e perdeu tudo em apostas comerciais equivocadas.
Só no fim da vida de Garbo é que sua família soube quem ele fora. Que história.
Editora Relume-Dumará, 339 páginas 1a edição 2004 | Tradução Luciana Aché | Copyright 2003
Título original: "Juan Pujol, el espia que derrotó a Hitler"
Obs.: Já virou um padrão aqui do blog eu encasquetar com as capas. Mapelamordedeus, neguinho também exagera. Layout horroroso, duplicando duas efígies de Hitler em negativo, com o título na base antecedendo uma seta que aponta para soldados desembarcando na praia. Trash. Mau-gosto, confusão visual, tudo junto. Mal se entende o que se vê. Aí a gente fuça na rede as capas estrangeiras e vê um monte de primor de capa. Pópara, né não? arrego. E vi nos créditos que o autor, Jorge Falstein, vem fazendo sucesso como designer. Nada contra. Mas aqui mandou mal demais.
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