"Os desaparecidos", por Daniel Mendelsohn

quinta-feira, dezembro 22, 2022 Sidney Puterman


O autor nasceu em Nova York, no início dos anos 60, descendente de judeus poloneses. Inquieto, teve a vida desde cedo pautada por lembranças de um passado que não pertencia a ele.

Ele conta que, guri, os mais velhos choravam ao vê-lo, face à sua enorme semelhança com um antepassado, morto pelos nazistas. Choravam por Shmiel, seu tio-avô. No embalo, choravam também por sua esposa, Ester, e suas quatro lindas filhas. Todos os seis brutalmente assassinados.

Esta lembrança trágica, presente nos traços do seu rosto e que levava os mais velhos às lágrimas, influenciou-o a tal ponto que ele se sentiu responsável pela gestão da memória dos seus ancestrais. Deu de entrevistar os antigos, tomando notas e compondo perfis de parentes vivos e mortos.

Mais que todos os outros, porém, seu sósia Shmiel, a tia-avó Ester e as quatro meninas eram o seu tema recorrente. Logo reuniu tudo que era possível saber no âmbito familiar; mas não se contentou com o que conseguiu, sempre quis mais. O garoto cresceu e se tornou jornalista - e permaneceu em busca de novas pistas sobre o casal e suas filhas. Até que eles se tornaram um livro. São eles os seis do subtítulo. "A procura de 6 em 6 milhões de vítimas do holocausto".

Estas seis mortes específicas - ou, no jargão de hoje, aleatórias - vão nos contar muito sobre todas as mortes do holocausto, graças ao trabalho assombradamente obstinado de Daniel Mendelsohn.

Diferentemente, porém, da maioria dos milhares dos livros sobre o holocausto, nesta obra o ângulo não será o da metodologia assassina ou o do funcionamento dos campos de concentração e extermínio. O que se passou depois da detenção tem menor peso. O olhar de Daniel se debruça mesmo é sobre a rotina comezinha das vítimas civis, antes de serem capturadas pelas ações nazistas.

Ressalto que estas vítimas do passado, judias, diferem bem pouco de nós mesmos, cristãos, no presente. Da mesma forma que nós, hoje, eram cidadãos confiantes na premissa de que o Estado os protegeria dos criminosos - só que, num átimo, este mesmo Estado, nazista na origem ou assumido pelos nazistas, se tornou o criminoso. O livro nos aproxima desses cidadãos. ("Não me pergunte por quem os sinos dobram", diz o antigo poema de John Donne. "Eles dobram por ti".)

Daniel Mendelsohn nos coloca em uma inesperada intimidade com os mortos. Sua longa e meticulosa investigação da história dos parentes barbaramente executados, há meio século atrás, em uma pequena cidade ucraniana, faz da casa da sua família a antessala do genocídio.

Peraí. Vamos recontar esta história, sob outro prisma, para não perdermos o fio da meada.

O autor era desde pirralho fascinado com as estórias do passado europeu de seu avô materno, contadas em um inglês com forte sotaque iídiche polaco. O avô e a maior parte da família tinham vindo para a América no início do século XX. Com eles vieram também o irmão do seu avô, o alto e belo Schmiel, que, após um ano e meio nos EUA, resolveu voltar à pequena cidade natal, Bolechow.

Voltou para a Ucrânia porque quis. Dizia ele que preferia ser um peixão num laguinho.

O avô não gostava de falar desse irmão que retornara à Europa. Era o que fora morto pelos nazistas, com sua esposa e suas quatro lindas meninas. Mas o escriba Daniel, aos treze anos já nomeado o "historiador" da família, era obcecado por este passado trágico e misterioso.

Uma função que jamais o largou, mesmo após se tornar um jornalista renomado.

Foi investigar in loco. Assumindo sua veia de pesquisador, em 2001, sessenta anos após a chegada dos nazistas, Daniel desembarcou no pequeno vilarejo com seus quatro irmãos, em busca dos vestígios e de eventuais testemunhas ainda vivas do que se passou em Bolechow em 1941.

Sentaram na praça onde os judeus foram despidos e humilhados, entrevistaram antigos moradores, caminharam pela avenida em que a população judia da cidade marchou para a morte. Fotografaram o cemitério. Cogitaram erguer um monumento. Foram peremptoriamente dissuadidos ("qualquer coisa que vocês ergam lá os ucranianos vão roubar").

Era apenas a primeira etapa de uma longa jornada, que os levaria a Sydney, a Tel-Aviv, a Estocolmo, a Copenhagen e a diversos outros pontos do planeta, em busca desta história sofrida, que Daniel narra com delicadeza.

Na Oceania se reuniram com um grupo de bolechowinos, judeus idosos que tinham passado a juventude em Bolechow e que, de uma maneira ou outra, conseguiram escapar. Alguns se lembravam de Shmiel, de Ester e das quatro garotas. Um deles tinha mesmo namorado uma delas.

Relembrar faz sofrer e alguns se recusam a relembrar. Outros, como Meg, contaram muito do que se passou, mas não permitiram que suas lembranças fossem postas no livro. Ainda assim, Daniel foi hábil ao reproduzir alguns detalhes da efêmera convivência com aqueles emissários do passado.

Cada um dos velhinhos (as viagens foram feitas no início do milênio, quando os mais jovens sobreviventes de Bolechow eram septuagenários, mas na verdade a maioria já passara dos 80 anos, alguns com mais de 90) tinha um fragmento da história dos seus antigos vizinhos.

Parentes perdidos que eram apenas nomes em um pedaço de papel ganharam vida e personalidade. Lendas familiares de décadas se alteraram: o premonitório tio Its'hak, cuja esposa apaixonadamente sionista os fizera emigrar para Israel antes da guerra, virou o desonrado açougueiro que, por fraudar carne kosher, resolveu fugir de Bolechow.

A bela e valente prima Frydka, que, pensava-se, fora morta enquanto integrava um grupo de guerrilheiros na floresta, estava na verdade escondida na casa de um jovem polonês, Cyzko Szymanski, do qual engravidara. Os dois foram denunciados e mortos.

As estórias resgatadas foram muito além do que o autor havia imaginado. Os passos de seus familiares desaparecidos foram refeitos e segredos foram desvendados. Convicções foram desfeitas. Envolvendo tudo, a selvageria e a ganância criminosa dos soldados alemães e da população ucraniana.

Há também narrativas ímpares, merecedoras por si só de uma publicação exclusiva delas, como a de Bumo Kulberg, Adam Kornblüh, seu real nome de família antes da escandinavização. Dos 6.000 judeus de Bolechow, originalmente o maior grupo étnico da cidade, só restaram 48 espécimes, que conseguiram sobreviver em esconderijos improváveis. Bumo, que deixou a cidade às vésperas da chegada dos alemães, seria o 49o.

Sua trajetória chega às raias do absurdo: no dia em que completou 20 anos, diante da recusa dos pais em deixar a cidade, Adam resolveu ir a pé do que é hoje o interior da Ucrânia, no leste europeu, até a Palestina, no Oriente Médio.

Jamais pisou lá. Mas chegou bem longe. Partiu na companhia de dois outros jovens, Ignacy Taub e Yulek Zimmerman. Este, porém, desistiu da aventura em poucos dias e retornou à Bolechow. Acabou morto pelos nazistas em 1943.

Adam seguiu andando, na companhia de Ignacy. Em três meses chegaram ao Cáucaso, onde trabalharam em uma fazenda coletiva de tabaco. Seguiram para a Chechênia e dali para o Daguestão, onde encontraram milhares de refugiados de guerra. Após semanas de espera, sem dinheiro ou comida, conseguiram embarcar para o Krasnovodsk, no Turcomenistão, onde Adam trabalhou no porto como estivador.

Não havia água na cidade e eles partiram para o Irã, atravessando o deserto de Kara-Kum. Lograram alcançar Ashgabat, a 14km da fronteira iraniana, mas as patrulhas não deixavam os refugiados atravessarem a fronteira. Voltaram pelo deserto, mas na direção nordeste, para o Uzbequistão. Ignacy resolveu ficar no Quirguistão e Adam seguiu sozinho até a China.

Resumindo bem, lá ele soube que havia um campo de refugiados poloneses, na fronteira norte do Uzbequistão, em Tokmok. Bumo já sabia que exércitos poloneses estavam sendo formados na União Soviética para combater os nazistas - o Exército Anders, uma manifestação tardia de inteligência por parte de Stalin. Ao invés de enviar os poloneses para a Sibéria, eles poderiam enfrentar os nazistas.

Passando ainda por mil peripécias, que, como eu disse, merecem um alentado livro só para si, Bumo voltou para a Europa e se alistou em um destes exércitos. Como soldado polonês, retornou à Polônia e depois invadiu Berlim.

Que estória para um garoto de Bolechow, que teve mais de 99% do seu povo sumariamente assassinado pelos nazistas. 

A triste beleza do livro passa por este encontro improvável com sobreviventes do passado. E percebemos que, após tantas páginas, não são mais desconhecidos. Partilhamos o mesmo destino.

Durante esta busca, chegamos tão perto de Shmiel, Ester, Lorka, Frydka, Ruchele e Bronia que os vemos - o que revela a competência do autor. Amplia muito o nosso entendimento da violência do genocídio perverso de seis milhões de seres humanos quando convivemos proximamente com seis personagens inocentes de uma família assassinada neste genocídio.

Entre as muitas fontes de pesquisa citadas, Mendelsohn reforça a importância do trabalho do Instituto Yad Vashem. Eu também me senti compelido a visitar o site da instituição, em busca de informação sobre os meus próprios ancestrais, meus avós paternos, os Puterman e os Rawicz.

Embora eu também tenha tido contato em criança com meu avô polonês, e havia também pelo meu lado paterno toda uma família de velhos judeus poloneses que falavam português com sotaque iídiche, eu nunca escutei estórias. Meu avô era um sujeito reservado.

Entre os demais, ainda que a parentela judia me soasse barulhenta, o passado e o holocausto nunca figuravam entre seus temas. Certamente não comigo por perto. Apenas minha mãe, católica baiana, me segredava que meu avô era triste porque não salvara nenhum dos seus familiares. Segundo ela, todos os demais Puterman ficaram na Polônia. 

Assim, a família com a qual de quando em vez eu tinha contato eram remanescentes dos Rawicz, que, diz a lenda, meu avô Izrael Puterman tinha ajudado a vir da Europa. Mas, reitero, (como disse mamãe) ele mesmo não conseguira trazer ninguém da sua própria família.

Os meus avós judeus morreram há muito tempo, na longínqua década de 70. Meu pai era seu único filho homem e eu fui o único filho homem de meu pai. Meus quatro filhos não conheceram os bisavós. Mesmo genealogicamente apartados deste ramo da família Puterman, sintomático que só meus dois filhos homens, não judeus (e sim cristãos, como eu), tenham a possibilidade (incumbência? missão? responsabilidade?) de levar este nosso nome originariamente judeu adiante.

Sei que somos muito poucos no Brasil. No site do Yad Vashem, entretanto, pude encontrar centenas de outros Puterman europeus, mortos no holocausto.

Não sei quais deles - ou sequer se algum deles - pertencia à família do meu avô, ou seja, à minha família. Mas é extremamente emocionante poder ver, quase um século depois, as imagens de tantos deles, que encaram a câmera com uma intensidade tal, que é como se os víssemos hoje.

Haveria ali algum parente? Se não, teria algum deles conhecido meu avô? Entre aqueles setecentos e vinte e dois Puterman listados no site, haveria algum familiar que teria se remoído de arrependimento por não ter seguido o impetuoso jovem Israel, em sua aventura rumo a um remoto país tropical? Terão trocado algumas cartas, com esperanças e planos de partida, subitamente interrompidos pela brutal e incontornável chegada da guerra, em 1939?

Impossível saber. Os remanescentes dessa minha família perdida são poucos e não têm interesse nestas velhas estórias. Para eles, seu passado ficou esquecido no passado dos outros. A Polônia se tornou somente um distante país europeu, ôco de significado. Não há mais nada lá.

Se nada veio, e nada ficou, os elos quebrados não se reconstituirão. As lembranças perdidas não serão encontradas. O fosso do vazio, da ruptura e do anonimato permanecerá indistinto. Este passado será para todo o sempre um oceano de esquecimento, impossível de navegar.

Já eu, pena, não tenho memórias. Não deste tipo. Como disse, não tive conversas, nem íntimas, nem triviais, com meu avô. Amargurado, doente, certamente ele não via razão nenhuma para conversar com aquele neto peralta, filho da ovelha negra da comunidade, um neto que sequer era judeu.

(Ninguém chorava ao me ver. E me viam muito pouco.)

Meu pai era a tal ovelha negra e não me deixou lembranças para compartilhar. Apenas lacunas e um nome à deriva. Mais uma estória perdida de imigrantes no novo continente, com um antes nebuloso e um depois inconcluso.

É o que restou. Um nome e nada mais.

As fotos dos Puterman que encontrei eu lembrarei aqui. Eu sei. Nós somos os desaparecidos. 

Casa da Palavra, 511 páginas,  1a edição (2008)  |  Tradução Nancy Rozenchan  | Copyright 2006

Título original: "The lost: a search for six of six million"

Obs.: A ilustração do post traz algumas das fotos de judeus com o nome Puterman mortos no holocausto. Homens e mulheres, crianças, jovens, adultos, idosos. Selecionei umas poucas, havia muitas mais. Que descansem em paz.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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