"O livro do xadrez", por Stefan Zweig

quarta-feira, dezembro 14, 2022 Sidney Puterman


Esta delicada, curta e intrigante novela foi a única obra escrita por Stefan Zweig no decorrer dos seus cinco meses de exílio em Petrópolis. Na véspera do seu suicídio, 22 de fevereiro de 1942, o escritor postou cópias datilografadas do texto para seus editores no Brasil, na Argentina e na Suécia.

No dia seguinte, partiu em definitivo.

É sintomático e doloroso que o autor dê vida ao seu último livro já decidido a extinguir a própria - o que inunda seu conteúdo com significados outros, imbricados ao desenrolar enigmático da história. Zweig constrói na retórica da literatura um universo paralelo, que reflete o mundo em que vivia e o labirinto no qual ele, pessoalmente, se sentia aprisionado.

O argumento é simples. Um campeão mundial de xadrez segue de Nova York a Buenos Aires, de navio, para disputar um torneio. Solitário e excêntrico, não interage com os passageiros a bordo, mas aceita, em troca de dinheiro, um jogo contra alguns entusiastas, que não são páreo para o enxadrista profissional. Até que surge um viajante palpiteiro, que adere ao grupo e encurrala o campeão.

Se o argumento se resume a estas poucas linhas, o perfil psicológico do viajante palpiteiro é bem mais complexo - e provavelmente o alter-ego do narrador. Nominado apenas como sr. B, o misterioso viajante é um austríaco em fuga da Europa. Advogado de confiança dos maiorais do desmoronado Império Austro-Húngaro, exímio na sua profissão e inabalável na lealdade aos seus antigos clientes, o sr. B confessa ter sido preso pelos nazistas e que, detido, era diariamente interrogado.

O interrogatório se dava de forma sui-generis: ao invés de ser exposto à violência sem limites que caracterizava o III Reich, o sr. B era mantido encarcerado em um asséptico quarto de hotel - o Metropole -, onde recebia pontualmente suas refeições e era poupado de qualquer agressão física.

Embora não revelasse absolutamente nada do que sabia em sua rotina diária perante os inquisidores, o prisioneiro confidencia ao narrador seu enlouquecimento gradativo, trancafiado em um quarto de parca mobília, sem paisagem, sem um livro, papel, lápis ou o que quer que fosse que permitisse a ele lidar com a imensidão do ócio improdutivo com o qual era confrontado.

Certamente uma alegoria da condição do próprio Zweig.

Autor celebrado em todo o continente, o escritor, judeu, não sofreu as agruras terríveis que vitimaram a população judaica europeia. Tal e qual o advogado retido de forma civilizada em um quarto de hotel, dispondo de conforto e alimentação regular, Stefan não foi preso, espancado, espoliado e enviado para um campo de concentração. Ainda assim, acuado e ameaçado, ele se viu compelido a abandonar seu país; e depois a deixar a Europa, e depois os Estados Unidos, rumo à rudimentar civilização sul-americana.

Em tempo, toda esta circunstância de vida de Zweig é pública; mas, no que tange à novela em questão, aviso que no próximo parágrafo não tenho como evitar um pequeno spoiler.

É plausível entendermos que o jogo disputado entre o alter ego do escritor e o detentor do título foi o confronto entre o dono do poder absoluto (o enxadrista campeão) e os povos subjugados (o grupo de amadores e o sr. B). Se o campeão, quando desafiado, careceu de recursos intelectuais, sua imposição física e psicológica foi suficiente para superar o fugaz brilho individual dos oprimidos.

Moral da história: não basta ser resiliente (palavra da moda) se você está do lado errado do tabuleiro.

A narrativa soma exíguas sessenta páginas. A edição da Fósforo traz um posfácio prolixo, de quinze páginas (equivalendo a, pasme, 25% do conteúdo original), de um academicismo pedante e estéril.

Dói que a rendição pessoal de Zweig ao totalitarismo tenha sido prematura. Em um surto alucinatório, ele derrubou o próprio rei, pressupondo jogadas à frente que não viriam a se concretizar. Ainda que precipitada, porém, sua desistência foi consciente - e anunciada post-mortem.

Ele nos legou um personagem que, mesmo de posse da supremacia técnica, se viu derrotado ao não conseguir dissociar mais o que era real e o que era alucinação.

Deprimido em uma modesta casa na encosta de uma pequena cidade sul-americana, o escritor, tomado pelo pânico da iminente chegada dos nazistas ao Brasil (que ele presumia então inevitável, mas que jamais chegaram, à exceção dos caricaturais neonazis com os quais nos resta lidar oitenta anos depois), tomou uma decisão irreversível.

Stefan, o sr. Z, simplesmente desistiu - tal e qual seu personagem, o sr. B.

E assim Stefan Zweig, que poderia ter sido para nós uma ínfima e esquecida nota de rodapé, entrou para a história do Brasil. Ainda que, pena, até hoje pouca gente por aqui saiba sua história.

Editora Fósforo, 88 páginas  |  Tradução Silvia Bittencourt  | Copyright da tradução 2021

Título original: "Schachnovelle"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Oi Sidney, tenho lido suas sinopses e análises e preciso te parabenizar e agradecer por estar despertando em mim o interesse pela leitura. …pelo menos de sinopses.

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  2. Obrigado, ... não sei seu nome! Fico feliz que os textos despertem seu interesse pela leitura. Acho que um dia você vai querer ler os livros também. A propósito, um grande amigo vem fazendo o caminho inverso: ele, que lia muito, diz que agora, depois que passou a ler meus posts, já não lê mais os livros, bastam minhas resenhas!!! Aí não kkkk

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