"É tempo de Botafogo", por Rafael Casé e Claudio Portela

domingo, novembro 30, 2025 Sidney Puterman


"É tempo de Botafogo" é um livro oportunista. Como se diz no futebol, centroavante oportunista é aquele que não perde uma oportunidade de por a bola no barbante. Casé, um dos autores, ao lado do Portella, é veterano no ofício. Não deixou a oportunidade passar. Saco.

Cá pra nós, uma oportunidade ímpar. Porque há muito tempo não era tempo de Botafogo. Desde que o seu império futebolístico ruiu, o Botafogo era um nobre falido. Os novos ricos o espezinharam. As novas gerações debochavam das ruínas alvinegras.

Até mesmo o período de ouro, os anos sessenta, foram reescritos, despojando o clube do seu momento áureo. Times de expressão reduzida foram premiados com muitos novos velhos títulos. Ao Botafogo, o bicho papão, coube uma solitária migalha. Os poderosos de agora mandam na história.

Os torcedores adversários - a enorme maioria - deploravam: "Quem vive de passado é museu".

Mas nos negaram até isso. As conquistas internacionais, em solo estrangeiro, com craques lendários, que eram o tesouro do Glorioso, foram depreciadas, como se fossem estórias-pra-boi-dormir.

Ou seja - até o passado, quando em remotas eras havia sido "tempo de Botafogo", lhe foi roubado.

No novo boom das redes sociais, o tal do passado é escolhido a dedo. As Copas do Mundo que os jogadores do Botafogo conquistaram, em solo inimigo, para a pátria brasileira foram jogadas às traças. Viraram uma arcaica Guerra do Paraguai, da qual ninguém quer ouvir falar. Garrincha quem?

Como o galeão do qual herdou o nome, o Botafogo (que fôra, no século XVI, o maior navio de guerra do mundo, com seus 366 canhões), o clube foi desmontado. Só que, teimoso, se recusou a morrer.

Aqueles que testemunharam seu auge contaram suas estórias para os filhos, que as contaram aos netos e, assim, o navio fantasma continuou singrando mares imaginários na cabeça dos sonhadores.

Décadas à deriva. Vez por outra uma ilhota e um filete dágua. No mais, o inclemente mar aberto.

Até que, literalmente do nada, surgiu um gringo com cara de maluco que comprou o Botafogo. Semi incógnito, a primeira coisa que fez ao desembarcar no Brasil foi beijar a bandeira alvinegra.  

E aí, como num conto de fadas, a história voltou a ser reescrita. Esse livro conta uma parte dela.

Não vou esconder: eu comecei a leitura da obra de Casé e Portella do jeito que eu sou - cético. Não é má vontade, pelo contrário; estou sempre pronto para me deixar seduzir pelo texto, pela pesquisa, pelos fatos, pelo autor. Mas sou crítico por natureza. Então, não esperava muito.

E o livro não entrega muito, mesmo. Não ousa, nem precisa. Põe na mesa apenas o feijão com arroz. Mas o feijão com arroz, meus amigos alvinegros, é preto e branco. E, bem temperado, dá conta do serviço. Quando a gente vê, é a melhor refeição da vida.

Os autores, cascudos, fazem o dever de casa. Vão costurando histórias, voltando no tempo, e daí avançam passo a passo. Começam do fim, com o torcedor que levou as cinzas do pai para se misturarem à grama do Monumental. Mas, antes, voltam para a série B de 2021. Como esquecer?

Contam a chegada do gringo e o maldito (bendito?) ano de 2023. As denúncias de manipulação de resultados, que escoaram pelo ralo e não foram repercutidas no Fantástico. Pelo contrário: uma campanha debochada exigia que o denunciante provasse o que caberia à Justiça investigar.

Para a conveniência de geral, deu em nada. Quem ameaçou abrir o bico, logo se calou.

O livro passa pelo que orgulha e pelo que envergonha. Inclui aí o desclassificado do Lage. Traz a chegada do LH, a formação do scout, a lista de todas as contratações da SAF e a tirada de satisfação do Gatito com o Cabelinho, no jogo que o Botafogo meteu 4x1 no Flamengo.

No dia seguinte, o bilionário time da Gávea chorou nos jornais, pedindo fair play financeiro.

O Palmeiras merece um espaço generoso na narrativa de Casé e Portella. Na minha, ainda mais. O primeiro jogo de futebol que assisti dentro do estádio foi um Botafogo x Palmeiras, pela Libertadores de 1973. O jogo foi à noite e o Maracanã parecia uma nave espacial. Ganhamos por dois a zero, dois gols de Roberto, o parceiro matador do furacão Jairzinho. Que dupla, que jogo.

Então era lógico que eu estivesse no Nílton Santos, meio século depois, para testemunhar um Botafogo x Palmeiras, pela Libertadores de 2024. Entre os 40 mil botafoguenses que estavam lá nessa noite, aposto que dava para contar nos dedos os que estiveram em ambos (em 73 e em 24).

Se é que eu não era o único abençoado com essa façanha.

Tal e qual 1973, o Palmeiras foi eliminado pelo Botafogo. Já tinha tomado um pau no Rio, pelo Brasileiro, e agora, pela Libertadores, tomou outro pau. No jogo de volta, em São Paulo, mais uma lambada. Metemos dois a zero e, faltando cinco minutos, no abafa, os caras acharam dois gols.

Fizeram um terceiro, ajeitando com a mão, mas VAR taí pra isso. O time da amiga da CBF, a dirigente Leila Pereira, foi zunido da competição, dentro do Allianz Parque. O tal estádio ao qual o Estevão se referiu (após a segunda derrota no Niltão): "Lá no Allianz, os 90 minutos são muito longos", caçoou o guri. "A gente sabe jogar lá e tenho certeza de que vamos passar por eles". 

Não passaram. Igor Jesus, o Kamehameha, confiante, troçou: "Falar, até papagaio fala".

Os autores lembram também a patuscada do São Paulo, que, no dia do jogo de ida das quartas-de-final da Libertadores, alugou um teco-teco para sobrevoar Copacabana. O aviãozinho trazia a frase "Tradição não se compra". Falar essa sandice, justo contra o clube "mais tradicional"?

No Nílton, o tricolor tomou um amasso de cinema, mas escapou. Escoriado; porém ileso. Por ter sobrevivido ao atropelamento, saiu cheio de esperança, apostando que no Morumbi se daria bem. 

Empolgados, Julio Casares e demais dirigentes bambis (chamar são-paulino de bambi é que nem chamar palmeirense de porco?) alugaram um zepelim meia-boca, decorado com mais frases idiotas, para sobrevoar São Paulo no dia do jogo. O zepelim caiu, mas ninguém morreu. Exceto o São Paulo, eliminado nos pênaltis.

O Flamengo pipocou e foi feito de gato-e-sapato pelo Peñarol, que se gaba de ser "el capo del continente" por ter ganho cinco vezes a Libertadores - no tempo do guaraná de rolha. Veio enfrentar o Botafogo com essa marra. Por isso, estampava o número "5" na divulgação do jogo e no instagram.

Morreu pela boca. O Peñarol tomou de CINCO a zero do Botafogo na semifinal da Libertadores. "Pero luego de cinco, carajo?". O marqueteiro correu para apagar os posts. Era tarde. A piada vingou.

(Lembrando que esse mesmo Peñarol também tinha sido goleado pelo Botafogo na Libertadores de 1973, levando um sacode de 4 a 1 no Maracanã.)

A presença do clube uruguaio no Rio de Janeiro deu espaço para uma série de criminosos internacionais darem as caras. Trezentos baderneiros uruguaios foram presos, depois de roubos, incêndios e depredações na praia da Macumba. Dois deles, passado um ano, continuam no xilindró.

Já o colombiano Andrés Rojas, que roubou o Botafogo no gramado, não foi detido, e reincidiu no crime um ano depois, ao roubar o Flamengo contra o Estudiantes. A força rubro-negra na Conmebol fez o criminoso ser afastado das atividades. Ainda que, dizem, roubar ladrão dê cem anos de perdão.

Hats-off, mermão, pro recibimiento da equipe uruguaia em Montevidéu. Os caras tomaram uma piaba de cinco e foram recebidos como heróis. Eu tava lá, no Centenário, ao lado de centenas de outros botafoguenses teimosos. Ignoramos as ameaças - até do governo uruguaio, que afirmou não se responsabilizar pela nossa segurança (!) - e comemoramos a classificação para a final in loco.

Um agradecimento especial ao goleiro do Peñarol, Aguerre, que, além de não agarrar nada, ainda pisou o pé do John no intervalo. Ahn? Um goleiro pisar o pé do outro quando se dirigem para o túnel? Foi isso. Uma cretinice histórica que matou uma eventual reação uruguaia, que já vencia por 2x0.

Os autores não esqueceram de reservar uma página para os psicólogos da mídia, que passaram o ano analisando o "mental" alvinegro. Em qualquer podcast tinha neguinho vaticinando que os jogadores do Botafogo amarelavam. Engraçado é que estes catedráticos todos evaporaram, depois da dobradinha. Onde estão?

Uma outra que o livro fez bem em resgatar foi a frase do ano, "O Galo é uma merda". Tudo por conta do bafafá do jogo em Beagá, entre o Botafogo e o Mineiro, pelo Brasileiro, dez dias antes da final da Liberta. O Hulk, sempre chorão, embarcou na onda da mídia e quis mexer com o psicológico dos jogadores botafoguenses. LH teria dito que "o time do Galo é uma merda". É. A história confirmou.

E não era só essa baboseira do mental, como destacam Casé e Portella. A verdade por trás disso é que havia milhões de torcedores secando o Botafogo. Schadenfreude. Mas secaram errado, como dizia o Cantarelli. Naquela tarde em Buenos Aires, o Botafogo era insecável.

Éramos quarenta mil botafoguenses aboletados no Monumental de Nuñez, para participarmos da primeira final de Libertadores disputada pelo El Glorioso. O estádio estava tomado pelos nossos. Que bandeirão foi aquele que o Movimento Ninguém Ama Como a Gente fez, ehm? Uau. Nunca antes. 

Começa o jogo. No gramado e nas páginas de "É tempo de Botafogo". O subtítulo do capítulo é "Os dez do Monumental". Não eram mais onze. O juiz mete o vermelho no nosso pitbull (se fosse o Pulgar, era amarelo) e todo mundo concorda. Até os jogadores. A mídia foi consensual. Eu discordo. Não foi pé na cara, foi cara no pé. Não é nem pra advertir. Para mim, fatalidade e jogo que segue. 

Estávamos aos trinta segundos do jogo da final. Com a respiração presa. Nesta sucessão de jogos, pelas duas competições, os autores seguram o ritmo e não deixam a peteca cair. O torcedor revive, a cada parágrafo, o que se temia fosse uma via-crucis e acabou se tornando uma passarela iluminada. 

A esta altura, não há dúvida: o livro é um presente.

Gabriel Milito, treinador do Mineiro, também pensou que a expulsão fosse um presente. Era. De grego. Um presente de gregore... Ele, erradamente, não mexeu no seu time, com um a mais. Artur Jorge, treinador do Botafogo, acertadamente, não mexeu no seu time, com um a menos. 

A covardia de um e a coragem de outro foram fundamentais para o resultado: Botafogo campeão.

O livro traz as minúcias da decisão da Taça Libertadores de 2024. A obra-prima que foi o primeiro gol do Botafogo, um tirambaço à queima-roupa de Luís Henrique. O pênalti cobrado impiedosamente pelo Alex Telles. O tiro de misericórdia pespegado por Junior Santos, o jacaré artilheiro.

Poderia adicionar memórias pessoais daquele dia. Não tenho muitas. Lembro da longa caminhada até o estádio. Uma romaria. A incredulidade diante da expulsão. A perplexidade, logo seguida pela euforia. As dezenas de torcedores deitados nos corredores do Monumental, tomados pela ansiedade (ou era pânico?). Já eu não saí da arquiba. Não por bravura. Estava em transe catártico.

O livro (a essa altura, essencial, caixa de ressonância daquela emoção) conta a conquista, a festa, o retorno ao Brasileiro, o golaço de Almada & Savarino, novamente o São Paulo, a conquista, a festa.

Irônica foi a confraternização dos cartolas, que os autores registram na página 238, no depoimento do presidente do Botafogo, Durcésio Mello: "Eu, Montenegro e o John Textor entramos no salão de mãos dadas. De repente, o Montenegro se ajoelhou e engraxou o sapato do John". Deliciado, revela que "em seguida, o John repetiu o gesto com o Montenegro. Foi mágico".

A mágica gorou. Essa semana, ameaçado na Justiça por um pau-mandado do Montenegro, Textor, traído na crocodilagem, refletiu: "In all of the excitement of our victory, I polished the wrong shoes!".

Pois é, tudo passa. Os aliados de ontem podem ser os antagonistas de hoje. Já os títulos ficam.

Na folha de rosto do livro eu sapequei meu ex-libris, onde estou trajado com a alvinegra e tenho nas mãos o "21 após 21", livro do mesmo Casé que biografa a epopeia botafoguense para encerrar o jejum de títulos. Meti ao lado do selo minha foto, no Monumental, agradecendo aos céus.

Se aquele era o "21 após 21", este aqui é o "1 após o 1". O primeiro ano após o primeiro título da Libertadores. Como dizia o slogan criado pelo genial publicitário corintiano Washington Olivetto, o primeiro a gente nunca esquece. Rapá, eu num vou esquecer isso mas é nunca.

Em Buenos Aires, em 30 de novembro, foi a redenção. Estávamos livres da maldição. No Engenho de Dentro, em 8 de dezembro, foi a confirmação. A dobradinha. Éramos o melhor de time do país e do continente, de fato e de direito.

Éramos o Botafogo outra vez.

Saravá Carlito, epa-rei seu Emil, benção, padinho John. Bamo por más.

Editora Gryphus, 264 páginas  |  1a edição, 2025


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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