"Carta ao pai", por Franz Kafka
Kafka é sempre Kafka. Ou
katfa, numa citação ministerial mais distraída. Sinal dos tempos. Mas, seja num espetinho, seja numa lamuriosa missiva ao pai - jamais enviada -, o estilo daquele que alguns reputam o maior escritor do século XX é inconfundível. Sou suspeito. Desde que li "A Metamorfose", ainda moleque, fiquei fascinado com o domínio do texto deste enigmático escritor tcheco. Parti para "O Castelo" e fiquei embasbacado. O método de encadeamento lógico com que Kafka organizava suas frases emprestava uma surpreendente ponderação ao que era sumariamente absurdo. Confesso que admirava o mágico sem entender o truque. Kafka era um gênio. Tendemos a considerar os gênios seres humanos mais bem acabados que os demais. Então aquela capacidade de Kafka de estruturar seu texto em uma sequência de premissas sub-repticiamente ponderadas, em um percurso simultaneamente arrazoado e labiríntico, misturando ordem e loucura, me deixava pasmo. E, além disso, me dava a convicção de que o autor tinha clara noção de seu patamar
superior. Qual o quê. Eu não poderia estar mais enganado. O Franz Kafka que emerge da sua carta acusatória e confessional é um ser humano perturbado e inseguro, que nem passa perto de imaginar a qualidade do que fazia e a grandeza com que seria louvado. Se considera a mais mísera e desmerecedora das criaturas, e atribui ao pai - a mais nada e a mais ninguém (a não ser à sua própria fraqueza, mas também ela é um produto da opressão paterna) - a sua fragilidade e incompetência. Chega ao ponto de concordar com o pai de que é um filho que causa aversão ("Devo contudo dizer que um filho assim, mudo, apático, seco, arruinado, seria insuportável para mim; se não houvesse nenhuma outra possibilidade, eu decerto fugiria dele.") Curioso é que, ao escrevê-la, ele já era um sujeito de 36 anos e tinha lançado as obras que viriam a consagrá-lo, como as que citei acima. E na própria carta ele faz referências a si próprio que remetem à condição de inseto que ele encarnara no livro que o deixou famoso. "Com sua antipatia você atingiu, de modo mais certeiro, a minha atividade de escritor e as coisas relacionadas com ela, que lhe eram desconhecidas. Aqui de fato eu me havia distanciado com certa autonomia, embora lembrasse um pouco a minhoca que, esmagada por um pé na parte de trás, se liberta com a parte dianteira e se arrasta para o lado".
Argh. Imagem forte e repulsiva. Mas um mínimo exemplo das coisas que diz sobre seu relacionamento com o pai, que em tudo lhe era uma presença castradora. A exposição de si mesmo foi de tal forma controversa, que, durante muitos anos, este texto pessoal permaneceu em sigilo. Foi divulgado parcialmente em 1937, por Max Brod, seu amigo e biógrafo, e, na íntegra, apenas em 1950. A carta ao pai, jamais entregue (imagina-se que a mãe e a irmã o desaconselharam), era uma resposta à uma pergunta que o pai lhe fizera, "por que você tem medo de mim?", o que deu azo a que o primeiro parágrafo abrisse com "Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você." A carta tem revelações divertidas, como quando Kafka acusa o pai de chamar os próprios empregados de "inimigos pagos". Esta eu nunca tinha escutado (e antes de mais nada, não concordo!) Interessante também os preâmbulos sobre judaísmo, o artificial do pai e o desinteressado do filho. Jamais se casou, pressionado pela má avaliação paterna, que depreciava todas as candidatas que escolheu. Isto explica parte, mas não tudo. Permanecem um mistério os tortuosos caminhos da mente atormentada de Franz Kafka, um autor tcheco, que viveu toda a vida em Praga, que escrevia em alemão e acabou por morrer tuberculoso em um sanatório austríaco, às vésperas de completar 41 anos. Escreveu pouco e foi praticamente ignorado em vida. Chegou a pedir que tudo que escrevera fosse queimado. Ainda bem que não. Sintomático que a obra de dois dos maiores gênios das artes dos últimos séculos - como Kafka e Van Gogh - seja resultado de absoluto desequilíbrio íntimo, de um sentimento de completa inadequação. Vá entender o ser humano.
Companhia das Letras, 86 páginas
P.S.: A foto que ilustra o post é a casa número 22 da Golden Lane, no Castelo de Praga, onde Kafka viveu por dois anos. Rua famosa por suas casas minúsculas, esta pertencia à irmã do escritor. Há quem afirme que foi no período em que morou lá, no biênio 1916-17, que Franz escreveu "O Castelo". Se non é vero, é ben trovato.
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