"A bela senhora Seidenman", por Andrzej Szczypiorski

quarta-feira, maio 08, 2019 Sidney Puterman

Uma ode de amor à Polônia. Na Varsóvia ocupada pelos nazistas, Szczypiorski envereda pelos becos da cidade invadida e nos apresenta aos poloneses da sua memória. Talvez a senhora Seidenman do título seja o personagem menos convincente da sua pátria afetiva, mas é ela o eixo ao redor do qual a trama se desenrola. Viúva de um radiologista judeu e de um oficial polonês - marido morto que dependia do interlocutor, pois apenas o primeiro existira de fato -, a judia Seidenman, de aparência ariana, é o elo de ligação entre os capítulos e é também o gatilho do roteiro, que parte da sua imprevista detenção pela Gestapo. A viúva é reconhecida na rua por um judeu delator e entregue aos SS (ignore o spoiler, pois a prisão ocorre logo nas páginas iniciais, assim que a viúva entra em cena). Porém, tão ou mais interessante que seu desdobramento é a forma com que o autor dispõe a narrativa. Cada capítulo se dedica à interação entre dois ou mais personagens, onde um deles é seccionado em um triplo corte temporal, com referências biográficas que o levam ao presente da ação e, súbito, a um salto no tempo em que o vemos em um determinado momento das décadas seguintes, exibindo simultaneamente sua atuação no ambiente de guerra e o destino que lhe reservavam os anos vindouros - o recurso nos faz lembrar que fins, via de regra, são melancólicos. Assim, assistimos à luta pela vida de cada um dos personagens, sabendo, entretanto, o quanto o futuro os surpreenderia (vale ressaltar que, com raras exceções, o futuro para quem estava sob jugo alemão era a morte a curto prazo). Apesar da compreensível angústia que o tema provoca, não falta lirismo ao texto de Andrzej. Seus protagonistas são monumentais, na sua pequenez. O salomônico juiz Romnicki. O laborioso alfaiate Kujawski. O menino sonhador Pawelek. O rebelde judeu Henio. Ainda que desimportante na trama, a jovem judia sem nome, prostituída, que acolheu Henio por uma noite, é um exemplo das guinadas temporais do texto do autor, no momento em que Henio/Henryk revela a ela que voltará voluntariamente ao gueto, para morrer lá, porque "nessa hora eu quero gritar de ódio e de desprezo para que todo mundo ouça". Tendo escapado, Henio resolve voltar para morrer. "Ela entendia muito bem. Mas como mulher tinha ainda mais senso e perspicácia do que ele podia imaginar. Chegou a conhecer bem as pessoas. Não imaginava que o mundo inteiro ouvisse o grito de Henryk na hora da morte. Os que morrem são ouvidos apenas pelos que morrem juntos. Ela não acreditava na força nem na repercussão desse grito. Muitos anos depois, quando já era viúva e caixa num açougue, mulher corpulenta, forte, morena, de rosto pouco amigável e voz alta, mãe de um chefe de armazém sempre bêbado, um espertalhão pálido que puxou ao pai, mãe de um pequeno alcoólatra da época da TV colorida e dos móveis conseguidos com a propina , dos carros estragados e sujos, das costeletas de porco racionadas, do tempo da hipocrisia (...), muitos anos depois, ela arrastava os pés em sapatos de salto rasos, de casaco de lã, com uma bolsa de couro no braço, cansada e aborrecida, grande, gorda, mas ainda de corpo firme capaz de atrair os olhares dos homens sempre com fome de mulher neste mundo de ruas cavadas, de casas novas e descuidadas, dos jovens esbeltos de calças jeans, cujos olhos ardiam de revolta, ela arrastava os pés neste mundo estranho, repugnante, porém maravilhoso porque único, para se aproximar do monumento aos judeus, numa praça varrida pelos ventos, e olhar o rosto dos judeus enormes esculpidos em pedra, cravados no muro, com os pés como que fundidos no solo desta cidade, judeus de pedra e calados, cujas vozes já ninguém ouvia. No rosto de um jovem ela procurava as feições de Henryk Fichtelbaum, mas não se lembrava delas." O expressivo elenco de Szczypiorskie não para por aí. Há ainda Korda, o filólogo desatento. A boa e preconceituosa irmã Veronika, que viu Jesus na ponte (quase na goiabeira) e salvou, entre dezenas de outros, o judeuzinho Artur Hirschfeld, que virou, à contragosto, o polaquinho Wladzio Gruszka - e que adulto se assumiu um polonês intolerante que desprezava os judeus. E Jasio, cujo nome de batismo era Johann Muller, um alemão nascido em solo polonês e que conhecia os russos a tal ponto que sabia ser impossível saber o que pensava um russo, e o ferroviário ativista Filipek, para quem "o agitador partidário que não soubesse manejar uma chave inglesa era um incompetente", e o bandido desempregado Suchowiak (sobre quem comenta o autor que "os grandes totalitarismos praticam o banditismo na majestade da lei, sem deixar qualquer alternativa aos bandidos"), e Lolo Bonitão, traficante de judeus que virou alto funcionário na democracia popular do pós-guerra. Não falta o nazista in natura, como Stuckler, o oficial da SS, em cujos cintos a fivela de prata trazia a inscrição "Gott mit uns", ou seja, "Deus está conosco". E Bronek, o sórdido judeu caçador de judeus. Esta galeria de verdades assombradas nos leva à uma Polônia na sua hora mais grave - o autor lembra que, não à toa, o país é chamado de "o Cristo das Nações" - e que levantou das ruínas, e que sobreviveu às tormentas, ao despedaçamento e às humilhações. Uma Polônia sob tentativa de aniquilamento e onde os judeus são companheiros de resistência e de infortúnio. Foi com alegria que constatei que Andrzej considera polacos e judeus a expressão indivisível da pátria. Por fim, curiosa a imagem da capa desta minha edição de 2007, um chapéu mexicano de um parque de diversões em algum lugar da Polônia, tirada em 1947, após a guerra. Tudo renasce, tudo recomeça, tudo gira. Viva a Polônia.

Editora Estação Liberdade, 239 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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