"Treblinka", por Jean François Steiner

quinta-feira, julho 21, 2022 Sidney Puterman


Catei na estante o exemplar alquebrado, desfolhado. Com carinho, corri os olhos sobre os rasgos da capa e passei, de leve, as unhas sobre as emendas. Reli as anotações. Reli o prefácio desassombrado. Daí, tateando, avancei pelo primeiro capítulo - e, quando vi, já ia pelo segundo, pelo terceiro.

Reler este livro, após tantos anos, me transportava no tempo.

E não só pelo meu vínculo afetivo com aquelas páginas descoladas - mas também porque a própria obra, em si, se dividia em muitos prismas. Um documento a meio caminho entre a história que narra e o debate que sua narrativa provocou (e, em um cantinho, a minha história).

Para além da tragédia que descreve - ocorrida há meras duas décadas e meia, quando do seu lançamento -, havia o momento histórico em que os fatos foram pesquisados e publicados. A circunstância da obra é, aqui, um sintoma colateral da História.

E, fora tudo isso, foi o primeiro livro "não juvenil" que li, no início dos anos setenta.

A brochura gasta e remendada que tenho em mãos data de 1967. Descobri agora que é uma edição rara (volta e meia aparece ofertada em leilões). Seu prefácio, assinado por Simone de Beauvoir, traz à tona o debate da juventude israelense - os sabras, no dizer da escritora - quanto à resignação dos seus antepassados judeus diante da sua condução à morte pelos algozes nazistas.

Hoje, meio século depois, esta é uma questão vencida.

Mas, não obstante a discussão sobre este fato real - por que os judeus não se rebelaram contra os seus carrascos alemães, já que a todos estava reservada a morte? - ter se esvaído com o tempo, suas palavras ainda ecoam. Ecoam inclusive nas minhas reflexões e no meu interesse precoce pela Segunda Guerra Mundial, produzida pelo nazismo e produtora do Holocausto. 

Li pela primeira vez este livro quando eu tinha treze anos. E, repito, quando eu falo este livro, eu falo deste mesmo exemplar, estas mesmas folhas hoje puídas, as quais li em 1974 e as quais reli agora; um produto editorial que mora há meio século na minha estante. Hoje vejo que foi quase um rito de passagem da infância para a adolescência: sem querer dramatizar, e já dramatizando, abriu meus olhos para a dimensão da perversidade humana.

Meio que o fim da inocência.

O texto relata a organização do primeiro campo nazista de extermínio de judeus. Descreve as estratégias desenvolvidas pelos alemães para conduzir os judeus cordatamente à morte. As técnicas criadas para matar e para induzi-los a cordatamente se deixarem matar.

(Percebe-se que esta leitura foi uma maneira um tanto quanto acelerada de uma criança iniciar seu conhecimento da maldade dos homens. Paciência, foi assim.)

Isto posto, vamos ao livro.

O campo de Treblinka tornou-se o grande centro nazista de extermínio de seres humanos, recebendo comboios de todas as cidades da Polônia, Grécia, Bulgária e Alemanha. Nele, uma equipe de 40 alemães e 200 ucranianos supervisionava suas treze câmaras de gás. Cada uma delas comportava duzentos judeus, o que possibilitava, em tese, o assassinato de 2.600 judeus a cada meia hora.

A rotina comezinha era cumprida pelos próprios prisioneiros e Steiner descreve sua organização interna, sua estrutura e suas divisões funcionais. Quem cuidava das roupas, dos pertences, da limpeza das câmaras, do transporte de cadáveres. Como a pequena fração que era escolhida para operar a morte dos demais era também posteriormente assassinada, em módicas parcelas. 

É neste cenário que se desenrola a a primeira revolta (conhecida) dos judeus em um campo de extermínio. A narrativa, ainda que histórica, é romanceada. Há personagens e diálogos. Por meio deles - Galewski, Adolphe, Kleimann, Chorongitski, Kurland, Langner, Bérliner etc - acompanhamos o cotidiano do extermínio e a decisão pelo motim.

Embora soe quase inverossímil uma rebelião de judeus mortos-vivos, desnutridos e moribundos, e logo contra a temível SS, seu plano se baseava na surpresa do ataque e na baixa expectativa de resultado: os judeus que lideraram o movimento não tinham nenhuma pretensão de vitória. 

A propósito, por falar em resistência, quem não fica nada bem na fita são os ucranianos. Em muitas passagens eles são comparados aos nazistas, de forma nada lisonjeira (neste e em muitos outros livros sobre o tema). Ressalte-se que os ucranianos eram um elemento importante do campo de extermínio, pois, na privilegiada condição de guardas do campo, era por intermédio deles que o contrabando entrava e era distribuído.

"Os guardas ucranianos multiplicavam por vinte o preço que os gêneros haviam lhes custado", destaca Steiner, dizendo que "Kleimann tomou-se contra eles de um ódio mais violento que aquele que experimentava pelos SS". Conta ainda que "estes últimos [os SS] eram loucos criminosos que nada tinham de humano, mas os outros, que aliás quando preciso matavam também e sem escrúpulos, eram uns canalhas". E arremata: "Os canalhas têm sempre um preço".

(Curiosamente, a situação atual na Ucrânia seja talvez, espero, a redenção da indisposição atávica entre ucranianos e judeus: o presidente ucraniano é o judeu Volodomyr Zelensky, que está liderando bravamente a resistência ucraniana contra o invasor russo.)

O plano previa que parte das armas seria obtida por meio do suborno de ucranianos. Outra parte viria de um engenhoso plano de ataque a alguns SS no momento em que fossem aos alfaiates do campo. Na ausência de granadas para dar início ao ataque e provocar debandada, queimariam alguns barracões. Os mirantes seriam os primeiros alvos. Após a morte dos alemães e ucranianos mais à mão, um grupo reteria a onda inicial de reação e o restante tentaria alcançar a floresta.

Fim do plano.

Um aditivo ao esquema suicida se deu por conta da construção - posterior ao plano e por ordem dos alemães - de um depósito de armas. De posse da chave, isso viria a facilitar aos judeus a obtenção de armamento. Na teoria era uma coisa, mas, na prática, foi outra. Diversas situações impeditivas foram se acumulando e frustrando as intenções dos potenciais revoltosos - tanto que no primeiro assalto ao depósito de armas descobrem que as granadas nos caixotes estavam sem pino.

A revolta é abortada. Mas a espinha básica do plano é mantida e ampliada.

A princípio, apenas os judeus do campo número 1 de Treblinka iriam revoltar-se - o campo número 2 era distante e incomunicável, sem contar que seus prisioneiros não eram mais do que duzentos judeus, contra os mais de oitocentos do primeiro campo. Por não terem como estabelecer comunicação, estes duzentos seriam, na prática, sacrificados com o levante dos outros oitocentos.

Com a suspensão da revolta, decidiu-se incluir nos planos os judeus do campo no 2. Embora as condições de sobrevivência nele fossem muito mais difíceis do que no campo no 1, dois dos líderes conseguem ser transferidos para o campo e integrá-lo ao planejamento da rebelião.

A revolta tem início poucos dias antes da liquidação total do campo por parte dos nazistas. Uma visita pessoal de Heinrich Himmler, já com os rumos da guerra desfavoráveis aos alemães, determinou que os oitocentos mil cadáveres fossem desenterrados das fossas e incinerados. As semanas necessárias seriam o tempo restante de vida reservado ao campo.

A rebelião eclodiu quando restavam apenas dez mil cadáveres aguardando para virarem cinzas.

A narrativa descrita se baseia na coleta dos depoimentos de quatorze sobreviventes, de um total de quarenta, alguns deles interrogados pessoalmente por Steiner. O autor se apoiou também nos relatos da comissão de inquérito polonesa de 1945 e nos arquivos do Instituto Yad Washem.

À época da publicação do livro, apenas outras três obras tinham se dedicado ao tema: "Nos campos de Treblinka", de Raquel Auerbach, "Um ano em Treblinka", por Yankel Wiernik, e "O inferno de Treblinka", por um correspondente de guerra do Exército Vermelho que interrogou as primeiras testemunhas.

Auerbach, à propósito, foi detratora de Steiner. Segundo registra "Quem escreverá nossa história", de Samuel Kassow, ela "em 1966 se envolveu numa áspera discussão com Jean François Steiner acerca de sua narrativa romanceada sobre Treblinka". Rachel "acusou-o de distorcer a verdade e de difamar a memória das vítimas e a honra dos sobreviventes dos campos".

Não há, entretanto, nenhuma informação específica que me permitisse identificar quais seriam as distorções e difamações. Gostaria muito de saber. Continuarei procurando.

Voltando a Steiner, a revolta foi bem sucedida e o campo foi parcialmente queimado pelos judeus. Em torno de seiscentos fugitivos se embrenharam pela floresta, com mínimas chances de sucesso, devido não somente à perseguição dos nazistas e ucranianos e da sua pungente falta de recursos, mas também porque ao redor das instalações do campo todos eram inimigos dos judeus.

"Um ano mais tarde, à chegada do Exército Vermelho", conta Steiner, "não restavam mais do que quarenta sobreviventes". Explica que "os outros haviam sido exterminados no correr do ano pelos camponeses poloneses, pelos membros da resistência da Armja Krajowa, pelos grupos fascistas ucranianos, pelos desertores da Wehrmacht, pela Gestapo e pelas unidades especiais do exército alemão".

Jean François Steiner finaliza com a narrativa da via-crucis de um dos sobreviventes, Simon Fischer, ela própria suficiente para gerar conteúdo para uma dúzia de livros. Após a fuga, ele e alguns companheiros erraram pela floresta e resistiram a inúmeros ataques. Acabaram por se unir temporariamente a um grupo de guerrilheiros poloneses de extrema-esquerda (os únicos não antissemitas). 

Simon ainda logrou integrar-se ao exército russo e depois ao exército polonês, retornando depois à sua cidade natal, Lodz, onde se casou e teve um filho. De lá o casal foi a pé (!) para a Palestina, atravessando a Polônia, a Tchecoslováquia, a Áustria, a Alemanha e a França, quando se instalaram em um campo de refugiados em Port-de-Bouc. Embarcaram no Exodus, rumo à Palestina.

O navio porém, zanzou pelo Mediterrâneo sem conseguir desembarcar sua carga humana de apátridas no Oriente Médio. Foram rebocados até Haifa e os emigrantes foram transferidos para um outro navio, que retornou a Marselha. As autoridades conduziram os refugiados para um campo cercado por arame farpado em Hamburgo (!) e daí para um outro em Munique. Simon fugiu com a mulher e o filho e voltaram para Marselha, onde tomaram conhecimento da criação do Estado de Israel.

A família migrou então para Haifa e Fischer se alistou no exército israelense.

Simon é apenas um dos quarenta sobreviventes, uma mísera fração dos mil que participaram da revolta do campo de extermínio, 0,0005% dos oitocentos mil judeus que foram enviados à Treblinka.

A dolorosa releitura deste livro, quase meio século depois, me recorda porque a guerra e o Holocausto são para mim um tema que jamais se esgota. A ânsia de entender o que se passou, minha tentativa em digerir a selvageria inominável levada a cabo por uma sociedade que se pretendia civilizada - esta é uma indignação impossível de relativizar, agora e sempre.

Guri, me perguntava, perplexo, sob quais circunstâncias uma tragédia assim poderia acontecer.

Em minha busca encontrei muitas respostas. Em vão. Hoje, teimoso, ainda leio a procurá-las.

Editora Nova Fronteira, 446 páginas | 1968 | Tradução anônima do original | Copyright 1966

Título original: "Treblinka"

P.S.: Jean François, o autor, um judeu francês, é filho de um ex-prisioneiro de um campo de concentração. Seu livro já teve 169 edições. Uma das primeiras é a minha.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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