"Quem escreverá nossa história?", por Samuel D. Kassow
Era abril de 1946. Uma reunião comemorativa do terceiro aniversário do Levante do Gueto acontecia em Varsóvia. Segundo o escritor íidiche Mendel Mann, era uma "noite cansativa e decepcionante, cheia de slogans políticos e frases feitas". Então a escritora Rachel Auerbach, sobrevivente do gueto e a única mulher na tribuna, se levantou para falar:
O resultado é que muita água infiltrou. Documentos escritos à tinta se tornaram ilegíveis, fotos se desfizeram e havia uma camada de fungos sobre todo o material. Seus textos reportavam o período do início da guerra até 3 de agosto de 1942. Uma perda irreparável.
Já o segundo lote, colocado dentro de galões de leite, foi descoberto em dezembro de 1950. Reunia 9.829 páginas e cobria o período de agosto de 1942 a fevereiro de 1943. Trazia poucos depoimentos, em comparação com o primeiro lote, mas muitos documentos oficiais. Estava bem preservado: os galões resistiram à água.
Um terceiro lote jamais foi descoberto. Possível que permaneça até hoje enterrado sob a cidade.
Quem idealizou e coordenou todo o projeto de apuração e conservação destas informações foi o historiador Emanuel Ringelblum. Sobreviveu ao gueto, mas foi descoberto e morto pelos alemães em março de 1944, ao lado da sua mulher e do seu filho.
O livro é também a biografia de Ringleblum. Mas muito mais. Seu conteúdo volta no tempo e resgata a história da sociedade judaica no Leste europeu no início do século XX. E vai além, trazendo o intenso debate sócio-político judeu de então entre socialismo, sionismo e idichismo.
De onde é inevitável trazer o nome de Ber Borochov, pouco conhecido fora do círculo fechado da cultura judaica. Simultaneamente um ativista e um teórico, tinha forte influência na principal questão para os judeus engajados da época: emigrar para a Palestina ou lutar pelo socialismo na Diáspora?
Conhecer seu pensamento é entender - um pouco que seja - a complexidade da questão com que se defrontava a comunidade judia polonesa: opções extremas para um povo sem pátria, e cada vez mais sem lugar, em um mundo dividido.
"A essência do problema judeu, segundo um Borochov de viés político, consistia na ligação decisiva entre a vulnerabilidade econômica e a extraterritorialidade. A posição dos judeus nas economias da Diáspora era extremamente frágil. Os judeus, sem território próprio, não podiam controlar os centros nervosos da produção nem conquistar uma posição estratégica nos movimentos operários emergentes. Segundo ele, o antissemitismo crescente, alimentado pela transformação econômica da 'população autóctone', afastava os judeus da indústria primária e das grandes fábricas, desterrando-os para os setores periféricos mais frágeis."
"A burguesia não judia em ascensão removia os capitalistas judeus das indústrias estratégicas e do controle das matérias-primas", acreditava, e "os operários judeus se tornavam alfaiates e sapateiros, em vez de mineiros e metalúrgicos. Infelizmente, alfaiates e sapateiros tinham pouca força política. Ferroviários e mineiros podiam paralisar uma economia; alfaiates, não".
Os judeus, que os nazistas em breve transformariam no grande problema a ser removido da Europa, viam na própria Europa o seu problema. As sociedades locais os discriminavam; eles não tinham uma pátria para onde ir; o sionismo crescente apontava para a Palestina; os judeus se dividiam. Lutar pelo sonho socialista nos seus países de nascimento ou emigrarem para lutar por um novo país no deserto, sob a tutela britânica e contra a vontade da população árabe local? Dilema.
O próprio Borochov parecia paradoxalmente apontar em ambas as direções. Segundo o historiador Jonathan Frankel, "existiam dois Borochov: o Borochov 'determinista' ou 'prognóstico' do ensaio Nossa Plataforma, e um Borochov 'voluntarista".
"Se hoje em dia vemos uma rua Borochov em quase todas as cidades israelenses, é porque David Ben Gurion e seus seguidores no movimento operário palestino", destaca Kassow, "seguiram o Borochov 'voluntarista'. Na interpretação deles', explica, "Borochov apoiava o pioneirismo sionista e a participação ativista do movimento operário judaico na construção de uma sociedade judaica na Palestina. Ele frisava a importância da dedicação e do engajamento, a vontade de terminar a Diáspora".
O divisionismo se estendeu ao longo de toda a década de 20 e início da década de 30. Expõe Kassow a forte tendência do judaísmo pró-soviético, que levava ao assimilacionismo, contra os sionistas que defendiam a emigração para a Palestina. A oferta do Birobidjão pelo governo russo como futuro lar dos judeus da Diáspora elevou os níveis do conflito.
Yitzhak Lev, vereador em Varsóvia, "lamentou que a direção do partido estivesse paralisada e não conseguisse romper a camisa de força ideológica". Com bom-senso cristalino - aos olhos de hoje -, "diante do perigo nazista cada vez mais ameaçador, Lev recomendava que o partido pusesse o realismo político acima do purismo ideológico".
Dando continuidade ao amplo circunstanciamento da identidade sócio-político-cultural e da historiografia judaica nos quinze anos anteriores à Segunda Guerra, Kassow enumera instituições, grupos, editoras, publicações, intelectuais e historiadores, todos mutuamente se apoiando - algumas vezes - e se enfrentando - em outras vezes -, no intuito de registrar a história judaica e apontar soluções para o futuro.
À parte o intrincado contexto de vertentes, facções, crenças e convicções de cada nicho, resta clara a pujança de uma cultura e sua riqueza demográfica - tornando ainda mais difícil digerir o triste cenário que a esperava. Todas as discussões e divisões seriam em breve totalmente irrelevantes.
Kassow acompanha carinhosamente os esforços do seu biografado em dotar sua comunidade com um registro histórico à altura da sua importância. Mesmo com o mundo ruindo ao redor de si, ele perseverou neste ideal. Ele próprio teve oportunidade de fugir, logo na primeira hora, ao trágico destino reservado aos judeus do Leste europeu.
Em um congresso sionista realizado na Suiça, em agosto de 1939, iniciado às vésperas da eclosão da guerra, foi oferecido aos congressistas a possibilidade de permanecerem em território neutro. Ringelblum resolveu voltar para Varsóvia e participar da resistência ao invasor alemão.
Sua iniciativa se tornou em liderança e foram ambas fundamentais para que a vida confinada no Gueto de Varsóvia não se restringisse à opressão e ao anonimato. Mais que o registro que sobreviveu ao tempo e embasa o livro, o professor organizou a assistência aos judeus pobres, cujo principal serviço foi o refeitório gratuito - que prorrogava por um pequeno tempo a inevitável morte por inanição dos habitantes mais frágeis do gueto.
O Oyneg Shabes foi o maior dos arquivos secretos na Polônia ocupada, mas não foi o único. Diversos guetos no país constituíram seus arquivos, como Lódz, Vilna, Bialystock e Kovno. Muitos destes arquivos foram desenterrados após a guerra.
Impressiona a compulsão com que os judeus se dedicavam a escrever, registrar e documentar. Cada um destes arquivos chegava a reunir centenas de colaboradores. Os dirigentes não só atraíam escritores, jornalistas, professores e intelectuais que conheciam, como prospectavam novos colaboradores entre a população.
A organização do Oyneg Shabes era minuciosa, como este parágrafo que escolhi nos revela:
"O arquivo procurava fazer várias cópias de cada documento para salvaguardar as informações, quer fosse uma composição original ou a transcrição de uma entrevista. As cópias podiam ser manuscritas ou datilografadas. Naturalmente, cartazes, fotografias ou os originais dos objetos não eram copiados. A frente dos documentos estampava símbolos ou letras codificadas em vários alfabetos, além de abreviaturas que se referiam a vários membros do Oyneg Shabes."
A rotina era toda ela submetida a uma codificação. Certos símbolos designavam "conjuntos" de documentos que eram classificados, organizados e transferidos para um esconderijo - o sigilo, obviamente, era fundamental para a segurança e sobrevivência do arquivo. Tanto, que muitos colaboradores conviviam no gueto com pessoas que não imaginavam fossem também colaboradores.
Surpreende que, mesmo em meio à fome, à violência e ao sofrimento, um coletivo como o Oyneg Shabes promovesse regularmente "concursos literários" no gueto, com premiação em dinheiro para os vencedores. Os textos se tornavam uma rica fonte de material para o arquivo.
Em janeiro de 1942, o "Júri e a Comissão Organizadora" de um concurso de ensaios (na verdade, composto pelos principais integrantes do Oyneg) anunciaram uma competição pública. Os temas propostos eram "monografias sobre a vida judaica numa cidade; as relações polaco-judaicas; os judeus convertidos ao catolicismo no gueto; escolas; crianças; suborno e corrupção; contrabando; qualquer aspecto específico da economia no gueto; os abrigos de refugiados; a campanha de setembro de 1939; a polícia judaica".
As redes que integravam - ou mesmo lideravam, como no caso do Oyneg - eram financiadas por judeus de dentro do gueto, de fora do gueto e de fora do país (como a norte-americana Joint Distribution Committee). A economia que pulsava no gueto foi também registrada pelos historiadores do Oyneg Shabes. Tudo era documentado.
À medida em que os meses avançavam e o terror aumentava, seus responsáveis começaram a se dar conta de que toda aquela documentação, que deveria embasar o reerguimento da comunidade judaica, talvez fosse o testemunho final de 800 anos de judaísmo polonês.
"Tomada em conjunto, essa documentação narra uma história coletiva de decadência ininterrupta e humilhação interminável, pontilhada por muitos exemplos de sacrifício e heroísmo calado", afirma Kassow. "O leitor do pós-guerra vê o judaísmo polonês desaparecendo em um martírio em que o dia de hoje era pior que o dia de ontem, mas ainda melhor que o dia de amanhã: do cerco de Varsóvia aos primeiros dias da ocupação; da imposição do gueto à Grande Deportação; da Grande Deportação aos meses derradeiros do gueto."
"É uma história coletiva composta por centenas de narrativas menores, relatos dos horrores diários de diversos pontos de vista", considera o autor, que complementa: "E ainda assim iluminados por momentos de desafogo, dignidade e coragem".
Em meio à catástrofe, um projeto que se impõe mencionar e que quedou inacabado foi o "Dois anos e meio". No outono de 1941, Ringelblum e sua equipe, às voltas com uma quantidade crescente de depoimentos do arquivo, resolveram produzir um documento amplo que registrasse a experiência de guerra vivida pelos judeus.
Ringelblum tinha a convicção de que os judeus superariam as adversidades e sobreviveriam à guerra; e, portanto, era fundamental o registro das dificuldades e das circunstâncias enfrentadas. O projeto era de uma abrangência imensa.
Para que tenhamos uma noção, uma lista parcial das teses e diretrizes, elaborada pela equipe do Oyneg Shabes, incluía estudos sobre as mulheres, os jovens, as crianças, a corrupção, os judeus na zona de ocupação soviética, a vida religiosa, a vida de escritores e intelectuais, as relações entre poloneses e judeus, as relações entre alemães e judeus (somente esta tomava 28 tópicos), a vida econômica, a história social do gueto, as ruas do gueto, opiniões sobe o futuro do povo judeu, os comitês de casas, os refeitórios públicos, salários e preços, a polícia judaica et cetera.
Um tema que o Oyneg não evitou, pelo contrário, foi o da corrupção no gueto. Abordava a "corrupção desenfreada, a exigência de propinas, delatores, o roubo generalizado nos centros de refugiados, a pilhagem das remessas de alimentos na agência postal, os abusos das parówki".
Outra pauta delicada era a questão dos judeus nos territórios soviéticos e a atitude dos judeus quanto ao sistema soviético - sobretudo o colaboracionismo judaico ("em Vilna, Zelig Kalmanovich comentou desolado o entusiasmo com que muitos idichistas seculares corriam para abraçar os soviéticos").
Os intelectuais entrevistados pelo estudo possuíam uma visão sombria do pós-guerra. Acreditavam na vitória aliada e que ainda haveria um futuro para a população judia, mas sua convicção era de que os bens tomados não seriam devolvidos por uma Polônia independente, que faria pressão para que os sobreviventes emigrassem. Outros, que supunham uma soberania soviética, imaginavam a permanência da comunidade judaica, mas mediante o assimilacionismo total.
"Qualquer que fosse o pós-guerra, a maioria dos entrevistados achava que os judeus sairiam perdendo", explica Kassow. "Se os comunistas vencessem, eles destruiriam o que havia restado da cultura judaica. Mas a vitória da democracia liberal seria de pouco consolo, visto que o antissemitismo de Hitler era tão tentador que as nações libertas do regime de Hitler não recusariam a oportunidade de imitar as políticas de Hitler em relação aos judeus".
A crença de um Estado judeu na Palestina se dissolvera. Não criam mais na solução do sionismo.
E, pior de tudo, o início do trabalho "Dois e meio" coincidiu com a tomada de consciência do futuro reservado aos judeus. Notícias dos campos de extermínio chegavam ao gueto e as deportações se sucediam.
"O que havia começado como um estudo bem planejado e bem estruturado da vida judaica se transformou numa corrida contra o tempo, sobre a qual pesava a sombra da morte", afirma Kassow, que ressalta que "ainda assim o trabalho prosseguiu".
Porém, ao final da primavera de 1942, a situação estava tão perigosa que foi decidido o recolhimento de todos os documentos, concluídos ou não. O pretensioso projeto não avançou além da coleta de dados brutos e ensaios inacabados.
"Mesmo assim, ele constituiu uma das partes mais importantes do Oyneg Shabes", considera o autor.
Kassow produz pequenas biografias dos principais colaboradores do arquivo, com um curto relato da sua existência antes do gueto, do seu trabalho para o grupo e como ele e sua família foram assassinados. Entre os geradores de conteúdo, um dos mais contundentes foi Peretz Opoczynski, com enorme produção documental e emocional. Escritor já de renome e considerado como o mais talentoso dos "repórteres" do arquivo, diz ele que
"Devemos nos tornar os historiadores de nossa participação no processo. Vocês e nós que estamos passando por isso temos de reservar para o futuro próximo e distante cada marca que o processo histórico imprime em nosso povo. Do contrário, nosso relato será vazio, e nem o povo nem a história irá nos dever coisa alguma, e nosso nome será apagado da página em que o mundo registra seu terrível e doloroso processo rumo a tempos melhores."
"O pior é que outros - totais estranhos - escreverão por nós em nosso nome! E entre esses estranhos tão poucos são amigos", apontava o escritor. "E nossos inimigos não se deterão diante de nada: de nenhum meio que não justifique pararem de denegrir o nome judaico".
Numa sentença que premonitoriamente justifica todo o trabalho do Oyneg Shabes, Peretz conclui que "e quando aparecer um amigo que quiser nos defender, que quiser revelar a verdade, faltará o material para dar conteúdo detalhado à verdade".
Poetas como Wladyslaw Szlengel deixaram uma obra popular. Seus textos eram lidos e compartilhados pelos moradores do gueto. Seus "poemas-documento" expressam a perplexidade da população.
"Ela era boa? Na verdade não. Brigava muito. Batia a porta. Xingava. Mas... existia. E eles a levaram, Ela saiu como estava, Perto do fogão da cozinha; Não terminou a sopa. Eles a levaram, ela foi, Não existe mais, mataram-na."
Em outros textos, manifesta sua indignação entre o comportamento heroico do polonês e a submissão covarde do judeu (ele próprio integrou a polícia judaica, que reprimia os judeus no gueto):
"Tua morte é uma morte a tiros, Por alguma coisa... por um país; Nossa morte é uma morte estúpida Num sótão ou num porão. Nossa morte é a de um cachorro Na esquina de uma rua. Tua morte vem com medalhas E comunicados; Nossa morte é por atacado. Eles te enterram - e adeus. Tua morte - face a face Ela te vem às claras; Nossa morte é escondida Sepulta sob uma máscara de medo; Tua morte é uma morte normal Humana e fácil; Nossa morte é uma morte de lixo Judaica e - vil."
O Oyneg Shabes registrou também a reticência inicial no gueto às primeiras notícias de ações de extermínio sistemático no Leste. Consideravam alarmismo e que se tratavam de pogroms ou ações isoladas dos povos bárbaros do leste. Não demorou, porém, para tomarem consciência do destino reservado ao povo judeu.
Quem contribuiu decisivamente para a aceitação da existência de um grande plano de assassinato conduzido pelos alemães foi a chegada de "Szlamek", um judeu religioso de Izbica, em janeiro de 1942. Foi entrevistado meticulosamente pelos diretores do Oyneg e sua narrativa foi considerada crível. Até então, nenhum judeu acreditava nas histórias de extermínio coletivo de judeus.
O relato de Szlamek (cujo verdadeiro nome era Szlomo Bajler) é detalhado e é por demais doloroso para que eu o repita aqui. Mas conto o que aconteceu com ele: depois de fazer parte do grupo de trabalho que "arrumava" as covas coletivas dos judeus mortos por gás nos furgões, ele fugiu de Chelmno e chegou a Grabów, onde o rabino local escutou sua história e o orientou a ir para Varsóvia e relatar tudo a Wasser e ao Oyneg Shabes.
Depois de entrevistado, e tendo divulgado seu relato nos jornais do gueto, Szlamek foi enviado para Zamosc, para que pudesse se esconder da perseguição nazista. De lá, enviou mensagens cifradas informando que novos campos de extermínio tinham sido organizados, dizendo que em Belzec acontecia a mesma morte de Chelmno ("das Beys olem ist in Belzyc to jest same mise co w Helmnie"). Foi capturado logo depois e asfixiado por gás em Belzec.
Agora já era de conhecimento pleno a solução que os alemães arquitetavam para o problema judaico. O Oyneg registra como grupos de resistência iniciaram sua organização e os procedimentos para denunciar ao mundo o que estava sendo tramado - na verdade, já em curso - contra os judeus.
As entrevistas com Szlamek se tornaram resumos, enviados ao governo polonês no exílio em Londres, em fevereiro de 1942. Outros relatórios se seguiram.
"O Oyneg Shabes agora assumia novas prioridades e responsabilidades", revela Kassow, que eram "documentar o programa de extermínio, fornecer material para a imprensa clandestina judaica e polonesa, transmitir a informação para fora da Polônia".
A matança foi denunciada por um novo boletim em iídiche publicado pelo grupo, o Miteylungen, que, em seu primeiro número, em abril de 1942, estampou a manchete "A população judaica diante do extermínio físico - uma matéria de Lublin, onde milhares de judeus foram deportados para destino desconhecido".
O trabalho de Ringelblum e sua equipe é a prova não somente da vida intelectual articulada no interior do gueto, como também de como os judeus tomaram conhecimento da estratégia alemã de aniquilamento dos judeus e levaram este conhecimento para o Ocidente.
Em junho de 1942, o Oyneg Shabes elaborou um vasto documento, "A Geena (Inferno) do judaísmo polonês". O material se baseava em todo o conteúdo arregimentado pelo arquivo desde 1940, e "analisava o desenvolvimento da política nazista desde a invasão de 1939 e apontava que, a partir de 1941, os alemães haviam iniciado a segunda etapa de sua política judaica - o extermínio".
O extermínio dos judeus - o Ausrottung -, era explicado em texto, talvez pela primeira vez. Seus autores, Ringelblum, Wasser e Gutkowski, afirmavam que "a matança dos judeus não era fruto de um antissemitismo espontâneo, e sim resultado de uma ideologia política - e de um oportunismo burocrático".
Na visão dos autores, "os funcionários alemães logo perceberam que a maneira como tratavam os judeus determinava o modo como seus superiores avaliariam sua dedicação ao nazismo. Portanto, os funcionários alemães não só rivalizaram para imaginar e implementar medidas anti-judaicas sempre mais radicais, como também usavam o o antissemitismo para atrair a lealdade de elementos 'desclassificados' da população bielo-russa, polonesa e ucraniana".
Emanuel Ringelblum comemorou, quando, em 26 de junho de 1942, ouviram uma transmissão da BBC denunciando o assassinato sistemático dos judeus poloneses. Mencionava Slonim, Belzec, Vilna, Chelmno e Lemberg. A rádio informou que mais de 700 mil judeus já tinham sido mortos. Ringelblum chegou a imaginar que a divulgação internacional poderia salvar os judeus.
Infelizmente, foi uma vã ilusão. Menos de um mês depois, em 22 de julho, teve lugar a primeira Grande Deportação do Gueto de Varsóvia. O comitê executivo se reuniu e decidiu enterrar os arquivos. Como todos os demais judeus do gueto, os membros do grupo estavam agora sob risco de morte iminente.
Ainda que determinado a dar a máxima assistência aos judeus carentes até a completa dissolução do gueto, o próprio Emanuel teve que fugir para não ser capturado. Se escondeu do lado ariano. Os demais dirigentes da cúpula do Oyneg Shabes também tentaram escapar. Exceto Auerbach e o casal Wasser, todos morreram, seja no momento em que foram pegos, seja nos campos de extermínio.
Condenados à extinção, os judeus remanescentes do Gueto de Varsóvia tentavam desesperadamente articular uma resistência aos alemães. O poeta Wladyslaw Szlengel se uniu a eles e estimulava a população com os seus poemas, que eram lidos nos esconderijos. Em seu "O que li para os mortos", Szlengel descreve as consequências do combate de janeiro de 1943:
"Trazem-se cimento e tijolos, as noites ressoam com o martelar de malhos e picaretas. Bombeia-se água, cavam-se poços em porões. Os abrigos. Uma mania, um furor, uma neurose cardíaca do Gueto de Varsóvia. Iluminação, cabos subterrâneos, perfuração de passagens, mais tijolos, cordas, areia, montes de areia. Areia. Beliches embutidos, camas dobráveis. Estoques de víveres para meses. Eletricidade, obras hidráulicas. Vinte séculos apagados pelo chicote do SS. Retorna a idade da caverna, lampiões a óleo, poços de aldeia. Começou a longa noite. As pessoas estão voltando ao subterrâneo. Para fugir de animais."
Foi a primeira ação de resistência dos judeus. Os alemães já não se sentiam confiantes para se movimentarem pelos labirintos do gueto. Mas o fim claramente se aproximava. Foi enterrada a segunda parte dos arquivos do Oyneg Shabes, em latões de leite. Esta viria a ser a parte mais bem preservada do arquivo. Os galões vedariam a entrada de água.
Embora vivendo com a esposa, Yehudis, e o filho, Uri, em um esconderijo fora do gueto, Ringelblum vinha constantemente a ele e participou de diversas reuniões com Mordecai Anielewicz, o líder revolucionário judeu que organizou o Levante. No primeiro dia da ação, 19 de abril, Ringelblum estava no gueto e foi preso pelos nazistas.
O poeta Wladyslaw Szlengel morreu durante o levante do gueto - enquanto se travava um intenso combate ao seu redor, passou seus últimos dias no abrigo Szymon Katz, figura famosa da clandestinidade, escrevendo poemas para incentivar a resistência dos judeus.
Leon Nailberg, testemunha dos últimos dias do poeta, anotou em seu diário, em 8 de maio de 1943: "Ontem à noite o poeta ainda estava escrevendo seus poemas, em que louvava o heroísmo dos combatentes e pranteava o destino dos judeus. Mas foi a última vez que o vi, porque o abrigo foi capturado".
Tendo salvo a tantos judeus que viu serem presos, e conseguiu agir para resgatá-los, Ringelblum também foi salvo. Enviado para o campo de trabalho de Trawniki, após três meses conseguiram retirá-lo de lá. Já não havia mais o gueto.
Em breve, o próprio Trawniki deixaria de existir. Em 3 de novembro de 1943, os campos de trabalho de Poniatowa e Trawniki foram cercados pelos alemães e todos os seus 42 mil internos foram assassinados. A feira de matança foi apelidada pelos alemães de Erntefest. A "Festa da Colheita".
O endereço final de Ringleblum foi Krysia, um esconderijo subterrâneo sob uma estufa, no lado ariano de Varsóvia. Nele moravam 34 pessoas em um ambiente de não mais que 5m x 7m, com beliches em todas as paredes e uma mesa no centro (sobre a qual também dormiam alguns dos habitantes da toca). Lá ele reencontrou Yehudis e Uri.
Historiador obcecado, sem acesso a nenhum suporte de pesquisa que não fosse a própria memória, Emanuel continuou escrevendo, incansável. Na Krysia ele escreveu quatro grandes estudos: sobre Trawniki; sobre as relações polaco judaicas na guerra em curso; sobre a intelectualidade judaica; e sobre a resistência armada em Varsóvia.
O ensaio sobre Trawniki se extraviou. O que historiava a resistência ficou incompleto. Mas o estudo "Relações polaco-judaicas durante a Segunda Guerra Mundial" foi, segundo Kassow, "o ponto culminante do intenso trabalho sobre o tema realizado pelo Oyneg Shabes no Gueto de Varsóvia". Ringelblum, que antes da guerra havia escrito sobre a chegada dos judeus à Polônia, há 800 anos, registrava ali a extinção dos judeus poloneses.
O historiador também produziu uma curta biografia de Mordecai Anielewicz, que havia conhecido nos primeiros dias de guerra. A determinação da resistência armada do jovem de apenas 20 anos, dirigente do Hashomer Hatzair, influenciou em uma série de questionamentos de Ringelblum. À medida em que a guerra avançava, ele punha em cheque a passividade judaica, da qual ele também era parte.
"A geração adulta, que já tinha vivido metade de sua vida, falava, pensava, debatia como sobreviver à guerra. Os adultos sonhavam com a vida. A juventude - o melhor, o mais belo, o mais nobre elemento que o povo judeu possuía - falava e pensava apenas em uma morte honrosa. Não pensavam em sobreviver à guerra, não arranjavam documentos arianos, não pegavam apartamento no outro lado. Sua única preocupação era com a morte mais honrosa, o tipo de morte que merece um povo de 2 mil anos de idade."
Anielewicz morreu no bunker central na Mila 18, em maio de 1943. Ringelblum escreveu que "assim morreu um dos melhores, um dos mais nobres, alguém que desde o início de sua vida se dedicou a servir o povo judaico, a proteger sua honra e dignidade. O proletariado lembrará que ele foi um dos poucos que, desde o primeiro momento, procurou servir à revolução mundial e ao primeiro Estado proletário no mundo."
A partida dos melhores amigos, aqueles aos quais mais admirava, ia lentamente esmorecendo a crença de Ringelblum em alguma espécie de futuro. Alguns meses antes, quando houve a primeira ação de resistência no gueto, e o último dos seus mentores, Yitzhak Giterman, havia sido assassinado, Emanuel já não tinha grande expectativas quanto à capacidade de sobrevivência do povo judeu polonês.
"Já estamos tão acostumados à morte, que ela já não nos assusta mais. Se porventura sobrevivermos à guerra, andaremos pelo mundo como seres de outro planeta, como se estivéssemos vivos por milagre ou engano."
Emanuel, capturado na Krysia e executado no gueto, ao lado da sua esposa Yehudis e do seu filho Uri, em 7 de março de 1944, não sobreviveu. Mas este foi justamente o sentimento relatado pelos sobreviventes. Vivos por um engano.
Para todos nós, que lemos e ouvimos sobre estes fatos estarrecedores, há uma sensação de abismo. O exato entendimento dos fatos nos foge à compreensão. É sempre difícil mensurar uma perda. E como mensurar a perda alheia, que não sentimos na pele? E, mais, a perda de dezenas, centenas, milhares, milhões de pessoas, do outro lado do mundo, há muito tempo atrás?
Muitos anos depois da guerra, o poeta israelense Nathan Alterman assinalou a magnitude da perda se valendo de personagens dos contos de Sholom Aleikhem: "Meu Sheineh Sheindel, cai uma branca neve. Não há ninguém. Todos se foram. Entenda. Tevye morreu. E morreu o filho de Mottel, o Chandre. Morreu o querido tio Pinye."
Companhia das Letras, 605 páginas (1a edição, 2009) | Tradução Denise Bottman | Copyright 2007
Título original: "Who will write our history?"
Obs.: Os papéis sobre os quais eu fotografei o livro são fotocópias do pedido de naturalização brasileira feito por meu avô, Izrael Puterman. Nascido em Varsóvia, em 1903, emigrou em dezembro de 1929 e desembarcou no Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 1930, com apenas 26 anos (dois anos depois, em julho de 1932, fez vir minha avó e meu pai). Izrael foi um jovem que decidiu deixar a terra natal - diferentemente de outro milhões de judeus, como seus pais e irmãos, que ficaram e se tornaram protagonistas anônimos do livro de Emanuel. É por causa deles que toda a história da Polônia e do Holocausto me diz respeito. Não sou judeu, nem polonês. Mas meu pai era. E meus avós paternos, Izrael e Cyrla, eram. E assim meus bisavós, Szlama e Hinda Rawicz, Chaim e Rasza Puterman. Então, em nome destes meus ancestrais, todos falantes do iídiche ao qual Emanuel tanto se dedicou, eu me junto aos admiradores e aos que reverenciam a memória do historiador judeu Emanuel Ringelblum. Obrigado, Emanuel. Não foi em vão.
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