"Hammerstein ou A obstinação", por Hans Magnus Enzensberger

segunda-feira, março 21, 2022 Sidney Puterman


Soam as trombetas - ao menos, metaforicamente. Era a pompa brega que pedia a ocasião, fosse um daqueles filmes da Metro, estrelados por um canastrão de lençol, à guisa de imperador romano. Mas era 3 de fevereiro de 1933 no III Reich. O império, curto, era outro, e recém começara.

Apenas 72 horas após a posse de Adolf Hitler (guindado ao posto de novo chanceler por decisão do presidente Paul von Hinderburg), militares do alto-escalão recebiam o carismático ex-orador de cervejaria, agora todo-poderoso, para um jantar de gala.

Por razões políticas - Adolf Hitler, calouro no poder, queria se aproximar das Forças Armadas -, o convescote se dá na casa do comandante do Exército, Kurt von Hammerstein, um alemão idiossincrático, com uma bem fornida prole de sete rebentos. Na verdade, um sujeito até que simples, filho de um guarda-florestal; fã do ócio e da caça.

Apesar do cargo e do privilégio, porém, o Führer não figurava entre as predileções do general. Tanto que, até a véspera da ascensão de Hitler, Hammerstein trabalhava nos bastidores contra a sua indicação.

Naquela última semana de janeiro, Kurt von Schleicher ainda era o chanceler alemão - e Hammerstein, sabedor que Hindenburg daria um voto de desconfiança ao breve governo de Schleicher e que este renunciaria, solicitou uma audiência com o presidente - visando demovê-lo de uma eventual indicação de Hitler. 

Contexto intrincado, como sói ser a política e suas costuras. Vale aqui frisar que Hammerstein ocupava o comando do Exército por ser homem de confiança de Schleicher, o qual nas últimas doze semanas mandava (ou deveria) no país, e que viria a ser substituído pelo dono do partido nazista.

"Não penso absolutamente em transformar o cabo austríaco em ministro da Defesa ou em chanceler", haveria dito Hindenburg, segundo Hammerstein. A conversa teria acontecido em 26 de janeiro, ou, de acordo com o chefe de gabinete do presidente, Otto Meissner, dois dias depois. Já este diria que o rumo da conversa foi outro. No relato de Meissner, Hindenburg teria dado um passa-fora em Hammerstein, que ousaria afirmar que a "demissão do chanceler e ministro da Defesa Von Schleicher era inadmissível para as Forças Armadas".

O presidente não aceitou ser emparedado. "Eu sei muito bem o que é admissível para as Forças Armadas", disse Hindenburg, que prosseguiu, altivo, "e devo, portanto, recusar a lição de política dos senhores generais".  Talvez a prosa tenha sido esta.

Já o chefe do departamento de pessoal do Exército, Erich von dem Bussche-Ippenburg, situou a reunião em 27 de janeiro, a meio termo entre as outras duas datas, e tem uma versão alternativa para a conversa. Segundo Bussche, o presidente foi claro e até mesmo se ofendeu: "Mas os senhores não me julgam capaz de nomear este cabo austríaco para a chancelaria".

Independentemente deste festival de versões, o que se deu de fato foi um migué de Hindenburg pra cima dos seus generais. A indicação de Hitler já era, àquela altura, favas contadas. O acordo incluía até mesmo o aval de Franz von Papen, o chanceler que antecedera Von Schleicher. Repare na overdose de chanceleres - eu disse que era intrincado. Papen viria a ser também vice-chanceler de Hitler.

Diante do cenário estabelecido, Hammerstein cogitou ir às últimas consequências. Aventou declarar estado de exceção, aprisionar Hitler e fazer uma aliança com os sociais-democratas. Mas Schleicher, apascentador, se recusou a dar o golpe - alegou que a tropa não estava pronta e que Hindenburg era para o povo "um semi-deus".

Por fim, crise debelada, caberia a Hammerstein, como vimos acima, ser o anfitrião do tal jantar de boas-vindas à Adolf Hitler, com a presença da alta cúpula do Exército.

Alguns dias antes o general anotara em seu diário:

"Em 29 de janeiro, houve em meu escritório uma conversa entre mim e o chanceler Von Schleicher, demissionário mas ainda no comando. Os dois sabíamos que Hitler era a única possibilidade para a chancelaria. Qualquer outra escolha teria levado à guerra geral, senão à guerra civil, e com isso a uma intervenção do exército contra os dois lados, os nacional-socialistas e a esquerda. Ponderamos se ainda havia meios de evitar tal desgraça. O resultado de nossas considerações foi negativo."

Se o desdobramento de uma eventual rasteira em Hitler aparentava que seria "negativo", é que ele não fazia ideia de quão negativo seria não tê-la dado. Hammerstein, porém, não pagou para ver. Tentou conciliar.

"Não víamos nenhuma possibilidade de exercer alguma influência sobre o presidente" se rendeu, ao cabo, Hammerstein, revelando que, "por fim, eu me decidi, em acordo com Schleicher, a tentar um encontro com Hitler, que se deu no domingo, entre as três e as quatro horas da tarde, na casa de Bechstein. No curso desta conversa, manifestei minhas preocupações a Hitler."

Houve que Hitler, escorregadio, garantiu que o ex-chanceler seria mantido como ministro da Defesa - coisa que nem de longe cumpriu. O posto foi entregue ao general Von Blomberg. A Von Scheleicher, figura non grata para Hitler, restou a desfaçatez de ser assassinado, a mando do ditador, no ano seguinte, na sangrentamente célebre Noite dos Longos Punhais.

(Nela, algumas dezenas de opositores foram mandados desta para o além, na nada invejável companhia de outras centenas de indivíduos - desafetos ou simplesmente cidadãos indesejados pelos integrantes da cadeia de comando responsável pela execução em massa. Carta branca para matança coletiva dá nisso, neguinho mata quem quer e quem lhes convém matar.)

Hammerstein, embora em uma posição estratégica para aderir à nova cúpula e bajular Hitler, declinou. Não era do seu feitio, ele não tinha o mínimo apreço pelo cara do bigodinho e zero paciência para rapapés. Preferiu submergir a participar da coisa. Mesmo em casa, não só ele. Os seus muitos filhos, cada um a seu modo, também torceram o nariz para o governo nazista.

O livro, sui generis, conta a história desse sujeito atípico e da sua peculiar família, forjada sob as camadas grosseiras e violentas do regime, desde a sua primeira hora. Enzensberger descreve em minúcias a trajetória errática e subversiva desta família insubmissa, incluindo a engajada atividade comunista de alguns dos filhos do general.

Já não fosse o conteúdo fora de série da obra, o autor, em si, manda bem demais e assina um livro que se revela um banquete de história, temperado com filosofia e liberdade criativa - a gosto.

E sempre é bom sair do rame-rame: ao invés dos costumeiros lacaios de Hitler, ou do indizível sofrimento dos espoliados e torturados, ou mesmo da lenta reação dos inimigos - Enzensbberger traz o nojo dos conterrâneos. No coração da Heimat houve quem desprezasse Hitler e tramasse contra ele. 

Mas, voltando ao personagem-título, são diversos os perfis apresentados, mas tudo gira em torno das circunstâncias de Hammerstein, que atingira o posto de alto oficial sem que fosse um junker ou um herdeiro da linhagem militar. Se destacou na Primeira Guerra e depois foi convidado a participar do governo - do qual, com a mudança de maré, se afastou definitivamente. 

O fato é que o general carregava um segredo inconveniente: um sólido relacionamento com os russos.

Na década de 20, quando o Estado alemão estava proibido de acumular poderio bélico e sofria com a restrição de que seu exército ultrapassasse os 100 mil soldados, Hammerstein participou de incontáveis operações militares alemãs na União Soviética. O acordo existente entre os governos era o compartilhamento de informações: a Alemanha produzia o equipamento bélico - aviões, tanques, armas de peso - e ia testá-los em território russo.

Os soviéticos participavam dos testes com os alemães. Em contrapartida, tinham acesso à tecnologia teutã. Hammerstein era um dos mais altos - senão o mais alto - entre os oficiais da Wehrmacht na interação com os russos. Era recebido em Moscou com honras de chefe de Estado.

Seu conhecimento profundo do Exército Vermelho fica claro no depoimento que deu ao adido americano em Berlim, Jacob Wuest, no fim de 1932.

"É uma boa tropa, disciplinada e bem formada, que saberá lutar na defensiva e que contará com o apoio da população russa", anteviu, valiosa e inutilmente, Hammerstein. Destaca ele que "os russos sabem muito bem que não têm como conduzir uma guerra ofensiva, pois lhes falta a infraestrutura necessária. As estradas e ferrovias encontram-se em estado tão ruim que eles só podem lutar no interior de suas próprias fronteiras".

Premonitório, Hammerstein adverte que os soviéticos "prepararam-se para isso e constituíram duas grandes zonas de defesa, uma em torno de Moscou, a outra em torno de Perm, nos Urais. Caso devam retroceder a tal ponto, sabem que podem se aguentar nessas regiões por um tempo sem fim", esclarece. E emenda: "Só precisam recuar; feito isso, não há adversário que os vença."

Esta leitura precisa, entretanto, não seria aproveitada pelo exército alemão, que descartou muita coisa sensata enquanto Hitler foi seu comandante-em-chefe - o ex-cabo preferia dar ouvidos à sua própria intuição do que se deixar guiar por orientação profissional. Soldados experientes como Hammerstein não eram ouvidos, a não ser que concordassem com a tática monotemática de Hitler, que preferia os oficiais lambe-botas e suicidas.

Seja como for, os russos eram os inimigos preferenciais - nos primeiros anos do nazismo os comunistas eram o principal alvo de Hitler. Só depois ele paulatinamente investiu no ódio contra os judeus como estratégia de governo e veio a celebrar o acordo com Stalin que destrambelhou os defensores ideológicos do comunismo mundo afora.

Mas estávamos ainda no início do III Reich, em meados da década de 30, e assim, mais do que sem prestígio, a proximidade potencial de Hammerstein com o inimigo russo poderia ser tida por assaz suspeita; no mínimo, muito inconveniente.

Diante das alternativas dispostas no tabuleiro, o general Hammerstein tirou o time de campo e voltou para o ambiente que mais gostava. Ficar à toa e caçar. Seu legado genético, espalhado pela Alemanha, continuou a dar trabalho. Todos eles lutaram, cada um ao seu modo, contra o regime nazista. Uma família obstinada na sua aversão à Hitler.

Esta história é contada com elegância, erudição e suave sarcasmo por Hans Magnus. Que oferece, como complemento, uma farta mesa de acepipes. É de comer e se lambuzar. Livro para ler e reler.

Preenche uma lacuna no interstício entre a convulsão política alemã dos anos 20 e a ascensão do nazismo ao poder. Envereda pela dissensão interna e como a máquina nazista de repressão convivia com a resistência de parte dos cidadãos arianos.

Pra lá de interessante. E confesso que comecei o livro sem saber muito bem o que iria encontrar. De cara, o título me soava enigmático para uma biografia convencional. Pudera. Hammerstein ou A obstinação nem de longe é uma biografia convencional.

Companhia das Letras, 338 páginas (1a edição) 2009 | Tradução Samuel Titan Jr | Copyright 2008

Título original: "Hammerstein oder Der Eigensinn - Eine deutsche Geschichte"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

Um comentário:

  1. Muito interessante. Acho que poucas pessoas conhecem essa história, sempre quis saber como as pessoas que não concordavam com o nazismo agiam.

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