"Before Adam", por Jack London

sexta-feira, maio 28, 2021 Sidney Puterman


Em busca de uma leitura (era um domingo de chuva) que fugisse, um tanto que fosse, da dicotomia político-histórica que é o feijão-com-arroz da casa, fui fuçar a cobiçada, a estante dos livros ainda não lidos, na expectativa de que algum deles, mais oferecido, saltasse da prateleira.

Não chegou a tanto. Mas uma edição já castigada, com a lombada desfiada e vestígios amarelados de cola, me instigou. O autor, figurinha carimbada nos meus tempos de guri, era um clássico dos romances de aventura. Folheei algumas páginas, e me perguntei: "Por que não?" Boa decisão para uma tarde chuvosa. O texto me deixou desconcertado. Que autor singular. 

A trama era ficção das boas. Prenhe de imaginação. Uma inusitada viagem no tempo, rumo ao passado mais remoto do homem. Para você ter uma ideia, imagine o mais longe que se pode chegar para narrar a história do ser humano. Pois é, Jack foi lá contar essa história.

Ele e seus personagens são A Tribo. Vivem nas árvores, com algumas incursões nas planícies e savanas, em busca de alimento ou diversão. Não têm fala, nem instrumentos ou ferramentas, de nenhuma espécie. Nada, além de mãos, pés e dentes. O relacionamento dentro do grupo se resume a disputas, brincadeiras e alguns poucos movimentos cooperativos. São onívoros coletores. 

Dois outros bandos hominídeos dividem a mesma região em que se passa a ação (ver o mapa na ilustração do post): o Povo das Árvores e o Povo do Fogo. O primeiro grupo é ainda mais primitivo do que A Tribo, mais símio que humano, mais peludo, que quase nunca desce dos galhos e que, quando se arrisca, se apoia grotescamente nas mãos para andar. Ainda estão em um estágio anterior ao bípede.

Já o segundo, de pele mais lisa e de porte mais ereto, é denominado assim pelo domínio do fogo. E das armas. Têm arcos e flechas e são exímios atiradores. Caçadores implacáveis; sua chegada é sempre um terror para os demais grupos.

Terror é bem o nome. O texto foi escrito há 114 anos e situa nossos ancestrais como predadores de tudo o que era fraco e alheio à própria natureza (a deles).

À época da publicação do livro, início do século 20, não devem ter rolado protestos e manifestações politicamente corretas. A sociedade ainda não expunha publicamente uma consciência ambiental. Mas o que Jack London exibe é, sobretudo, a alvorada do grande exterminador. Um ser vingativo e ardiloso, perverso e covarde. Em miúdos: nós.

Nenhuma outra espécie desenvolveu tantos recursos e habilidades em prol do extermínio das demais espécies como fez o ser humano. Foi sempre insuperável na arte de exterminar a si mesmo. Paradoxalmente, em 1907, data em que o texto foi lançado, o mundo surfava na crista da ciência, das invenções e da prosperidade. Julgávamos estar no ápice da civilização. Tolinhos. Nem London nem ninguém jamais imaginaria que, após meros sete anos, uma guerra planetária engolfaria dezenas de países e mastigaria milhões de seres humanos.

Pior é que a conta não parou por aí. Trinta e poucos anos depois - um grão de areia na história -, mais de cinquenta milhões de pessoas vieram a morrer destroçadas pelas novas armas, desenvolvidas por esta mesma espécie covarde, cada vez mais aperfeiçoada nas máquinas de matar. 

Mas eu aqui me adiantei em muito no tempo. Vamos varrer para baixo do tapete o discurso ranzinza e moralista. O que importa é que, algumas centenas de milhares de anos atrás, um adolescente da Tribo, o Dentuço, descreve sua partida de "casa" (uma árvore em que vivia com sua mãe). Expulso do tronco pelo seu novo padrasto, dá partida às suas próprias aventuras. Era a maioridade.

"Dentuço" teria sido no passado o próprio autor, Jack London, que fundamenta seu relato numa regressão de memória involuntária, ocorrida durante suas noites de sono. O livro não seria mais do que a descrição do que Jack recorda dos seus sonhos, que, por sua vez, seriam um remoto resquício mnemônico do seu cotidiano ancestral.

Pelo que ele conta - e não sei até onde a antropologia já havia avançado à época -, é plausível concluirmos que estamos diante do contato entre o Homo Erecto e o Neanderthal, talvez o próprio Homo Sapiens. Parece que estes dois últimos dividiram os continentes, até que a supremacia do Homo Sapiens fez o homem de Neanterthal desaparecer; e daí, enfim, teríamos surgido nós.

O que mais impressiona, já a partir do primeiro capítulo, é quão convincente London consegue ser, descrevendo pormenorizadamente um mundo que nenhum de nós teria facilidade de conceber. Os demais personagens, primitivamente referidos como "Orelha-de-abano", "Olho vermelho", "Osso de tutano", "Tagarela" e "Ligeira" têm o caráter bem definido - de forma tacanha, mais plausível. São macacos humanóides, não dá para complicar muito.

Ainda assim, senti falta da companhia do Dentuço, quando fechei o livro. Aquela estranha sensação de quem se despede de um amigo para nunca mais. Nos meus tempos de criança eu tinha um antídoto para essa "saudade": consistia de ler, reler e aí ler outra vez. 

Naquele tempo eu já conhecia o autor. "Chamado selvagem" eletrizou minha imaginação aos doze anos, seguido de "Caninos brancos", ambos romances onde Jack "veste" o espírito de cães e lobos para contar sua história. 

Neste, escrito em sequência aos que citei, o animal é outro. É o próprio homem, em migração da sua faceta animal para uma outra também selvagem, mas mais requintada. Sobretudo mais apurado nas técnicas de aniquilamento. Seja lá do que for.

Este confronto grupal é uma compulsão, ontem e hoje. Seja agora, ou a qualquer instante ao acaso nos séculos passados, há sempre dúzias de guerras em andamento. Os mais fortes matando os mais fracos. É tiro e queda. A espécie dominante, em sua propensão atávica, está constantemente determinada a matar o maior número possível de seus semelhantes.

Bem, antes fossem só os semelhantes.

Pelos números mais recentes, 500.000 espécies de animais e 500.000 espécies de plantas estão sob ameaça de extinção. 10% de todos os insetos do planeta. 75% dos solos do globo dependem de insetos. 30% dos solos estão degradados.

Exemplos próximos não faltam. A Baía de Guanabara virou uma poça de graxa. Brumadinho transformou montanhas em rios de lama. Os madeireiros passam máquina a zero na floresta e matam índios com a mesma desfaçatez com que o Povo do Fogo matava o Povo das Árvores. Ecossistemas ardem e bombas teleguiadas dizimam.

A seguir nesta toada, o Grande Predador vai acabar por extinguir o próprio bioma que o viabilizou.

E pensar que era só a história de um macaco que aprendeu a andar em pé.

Star Rover House, 242 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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