"João Santana, um marqueteiro no poder", por Luiz Maklouf Carvalho

segunda-feira, junho 07, 2021 Sidney Puterman


Se você imagina que vai descobrir aqui mutretas do arco-da-velha sobre a relação de João Santana com o PT - coisa pouca, que resultou na sua condenação a sete anos e meio de prisão, por lavagem de dinheiro (atenuados pela delação premiada que negociou) -, pode tirar o seu cavalinho da chuva. O livro foi escrito no longínquo 2015 - com Dilma Rousseff no Palácio do Planalto e o lulopetismo completando 14 anos no poder.

Não é, antecipo, um livro sobre crimes e criminosos, como tantos outros que surgiram no esteio da Operação Lava-Jato (hoje ela própria transformada em arqui-vilã da política e alvo sistemático da mais alta corte do país). É um livro de celebração da competência do marqueteiro biografado. Capacidade novamente posta a teste, hoje, com seu retorno ao anfiteatro das urnas.

Santana está de volta. Ciro e o PDT foram buscar o homem tido como o cérebro por trás da reeleição de Lula e das duas vitórias eleitorais de Dilma Rousseff. Seu poder é tão temido que, diz-se, a notícia da sua contratação abalou o ex-presidente Lula. Não à toa. Santana saberia demais. 

Mas isso é o agora, e o agora não está em questão (não aqui, não nestas páginas). O livro é sobre o passado pré-Lava-Jato. Não consideraremos os últimos cinco anos. Até mesmo porque este passado ainda está por ser reescrito, como qualquer passado no Brasil (a CPI da Covid é mais uma prova que tudo o que aconteceu ontem à noite ganha uma nova versão hoje de manhã).

Vamos então nos transportar para uma outra era. Do término do primeiro mandato petista ao início do último. O fim do périplo dissertativo de Maklouf é novembro de 2014. Um momento de êxtase. A página derradeira de "Um marqueteiro no poder" transborda de confiança redentora, com Dilma, a mãe do PAC, mais uma vez vitoriosa e com o futuro pela frente. A presidenta, reeleita, de branco, e Lula, triunfante, de guayabera.

Sob este aspecto, a publicação surpreende. Não é bem esse o estilo que nos acostumamos a encontrar nos demais trabalhos do jornalista Luiz Maklouf Carvalho (que nos deixou há um ano, precocemente, em maio de 2020, que Deus o tenha). Que o leitor, em sua ansiedade, não espere o profissional combativo de livros como "O cadete e o capitão" e "O coronel rompe o silêncio".

Espere não. Maklouf aqui se rende de bom grado à verve e ao sucesso de João Santana. Como sempre, o texto é limpo, a estória é bem contada - mas nele é dificil reconhecer a caneta incisiva do velho jornalista. A gente pode até mesmo dizer que o experiente Luiz dá uma tietada em João. 

Nada contra; ou, se tenho, não vem ao caso, por ora. O que importa é que o autor, o jornalista Maklouf Carvalho, é dos bons, e parece que o marqueteiro (e também jornalista) João Santana é tido por melhor ainda - de acordo com a quase totalidade dos depoimentos arrolados na edição. Portanto, vou manter de fora, aqui, e ao menos por enquanto, os meus juízos de valor. Ainda que os tenha de sobra e não os esconda de ninguém.

Vou também aproveitar a deixa do livro para dar espaço não só aos feitos do marqueteiro, como às suas concepções de marketing político - incluindo também algumas das suas invectivas, digamos, nem sempre prenhes de consonância com a dureza dos fatos, este ingrato.

Ah, os fatos... falando neles, e nas suas múltiplas aparências, temo que a política tenha sido madrasta com o Brasil. A sua filha dileta, a retórica, vem nos levando no bico. E a classe política, esse Olimpo, turbinado pelo livre acesso ao tesouro nacional, usa e abusa dos mecanismos do marketing, como sobejamente provado aqui, neste altaneiro perfil de assessor de candidato.

Feita a digressão, voltemos a ele.

João Santana tem berço político. Nascido na cidade baiana de Tucano (o que deve ter rendido uma quantidade irritante de trocadilhos), seu pai foi prefeito pela Arena e ator influente na política local. Mas, noves fora, isso influenciou bem pouco a carreira do filho. João partiu para a capital, entrou para a cena musical de Salvador (onde não fez feio) e depois enveredou para o jornalismo.

E com destaque: ganhou, ao lado de Augusto Fonseca e Mino Pedrosa, o prêmio Esso, com a reportagem "Testemunha-chave", publicada na Isto É de julho de 92. A matéria-bomba trazia o furo do Fiat Elba no governo Collor. Já abalado pelas denúncias do irmão (veja aqui no blog o livro "Passando a limpo", depoimento acusatório escrito pelo caçula Pedro Collor) e pelos rastros enlameados de PC Farias, a entrevista com o motorista Eriberto França foi o tiro de misericórdia nas esperanças, já moribundas, do jovem presidente de se segurar à cadeira.

Fernando Collor, hoje senador por Alagoas, acabou destituído da presidência do Brasil pelo rito de impeachment. A votação no Congresso, no fim de setembro, ratificada pelo Senado, menos de uma semana depois, determinou seu afastamento temporário do cargo. No dia 29 dezembro de 1992, véspera do anúncio oficial - por todos já sabido -, Collor renunciou. A renúncia visava evitar a perda dos seus direitos políticos. O Senado, bem mais severo do que viria a ser com Dilma, em 2016, ignorou a malandragem e sacramentou o impeachment no dia seguinte, 30 de dezembro.

Já à essa época, conta Maklouf, Santana estava longe das eleições, mas bem situado na vida (que nunca lhe foi perversa). Tirou um período sabático em Trancoso, com uma das suas muitas esposas (o autor chega a numerá-las: beltrana I, sicrana II e por aí vai), onde escreveu um romance político-erótico, muito reverenciado e pouco vendido (os trechos reproduzidos por Maklouf não são suficientes para que se os possa elogiar, mas há neles o bastante para um caboclo não comprar).

Em seguida, disparando a torto e a direito a máxima "jornalismo não dá camisa a ninguém", foi trabalhar com Duda Mendonça no marketing político. Ali começou a trajetória bem-sucedida do marqueteiro, a tal ponto que, em 2014, veio a ser chamado de "João Goebbels Santana". Na ocasião, o autor do epíteto foi o cineasta Fernando Meirelles, do multipremiado "Cidade de Deus".

Santana não gostou e processou Meirelles, cuja entrevista a um blog tinha sido replicada na Folha, o que potencializou a repercussão. Maklouf reproduz a tal citação do diretor:

"Dilma prometeu que faria o diabo na campanha e ao menos esta promessa está cumprindo. Até amigos petistas se dizem constrangidos com a truculência desleal. Outro dia li uma frase que resume bem esta campanha do PT: 'Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade', a frase vinha assinada por João Goebbels Santana (sic). Foi na mosca, é exatamente dali que vem a inspiração do marqueteiro-mor. Como se pode votar numa candidata cujo principal colaborador é um marqueteiro que lhe aconselha mentir e ela obedece?"

O livro não traz o resultado do processo, que deveria estar ainda tramitando à época. Eu também não sei que bicho que deu.

Como destaca Maklouf, a manjada comparação com Goebbels não era novidade para Santana. O jornalista Augusto Nunes, que havia trabalhado com João na Veja, chamou o antigo colega de "Ministro da Propaganda" do PT. Só que, no caso, teve a delicadeza de omitir o nome do seu "equivalente" alemão, ressalta o autor.

Mas, alto lá - os causos são tantos, que eu coloquei o carro na frente dos bois. Santana, contava eu, ainda estava começando na seara marqueteira e eu desbaratei lá na frente, nessa overtrip gobbeliana, com ele no ápice. E é justo como esse percurso se deu o que Maklouf nos traz, ainda que resumidamente. Então eu resumo o resumo.

Ele e Duda se tornaram sócios e depois se separaram. Duda era o marqueteiro de Lula no primeiro mandato e se enrolou no caso do Mensalão do PT: confessou, em meio à uma crise nervosa, na CPI dos Correios, que recebeu do partido a bolada de R$ 11,9 milhões, via caixa 2.

Coube assim à João Santana a preferência de Lula para fazer a campanha do segundo mandato. Os dois já tinham uma história juntos. No final de 2000, conta o próprio João, segundo depoimento a Maklouf, houve um jantar a cinco - Lula, Dirceu, Palocci, Duda e Santana. Sem confiar no taco de Lula, Duda insistia nos nomes de Suplicy ou Tarso para concorrerem à presidência pelo PT. Disse João:

"Naquele momento havia um descrédito absoluto em relação à capacidade de vitória do Lula - até do próprio Lula."

João prossegue, descrevendo as quantis e qualis que coordenou, as quais apontavam Lula como o candidato ideal: "O Duda era visto como malufista, então fui eu que apresentei [as pesquisas], primeiro ao Lula e à direção executiva, e, depois, a uma reunião ampliada do Diretório Nacional, com uns trinta caciques do PT. Ficaram fascinados, e foi assim que a candidatura de Lula renasceu."

Curioso é constatar, sabendo o que sabemos hoje, que Duda e Santana tiveram como um dos primeiros jobs para o PT a criação de uma "campanha contra a corrupção". Não sei se convenceram o público, mas parece que internamente a campanha não foi persuasiva.

Donde resta claro que propaganda não é essa coca-cola toda.

Se Santana foi influente na primeira eleição de Lula, como vemos, foi decisivo na segunda. Quem diz é o ex-assessor da presidência de Lula e ex-ministro da Secretaria Geral da presidente Dilma, Gilberto Carvalho (cujo primeiro destaque nacional foi ter o nome envolvido na investigação do sequestro e assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, caso até hoje polêmico e que foi matéria do excelente livro de Silvio Navarro, resenhado aqui no blog - confira a resenha, leia o livro). 

A chegada de João Santana à campanha foi justamente no cerne da repercussão do Mensalão, com o país aturdido ao constatar que o PT praticava as mesmas práticas corruptas que até então criticara. Diz Carvalho: "O João veio e provocou um impacto imediato, porque trouxe muita convicção de que era possível reverter a crise. Eu ficava desconfiado, porque confesso que não tinha muita certeza. Mas ele devolveu a confiança, fez o próprio Lula recobrar o ânimo, e acertou a mão."

Sócio de João, Eduardo Costa, entrevistado por Maklouf, vaticinou: "A reeleição do Lula foi a grande virada na vida da Polis". Costa comenta o convite de Lula para que Santana assumisse a campanha da reeleição: "Nossa primeira reação foi de susto, porque achávamos que o Lula estava liquidado."

O sócio destaca aquele que acredita ter sido o insight essencial da campanha. "O mote da ascensão social dos brasileiros foi fundamental. Até ali o governo não tinha sabido consolidar e aproveitar isso, a mídia muito menos. O grande mérito do João foi transformar isso em um conceito que veio a ser o mote do Brasil sem miséria."

Após a reeleição, Maklouf revela que João Santana levou para o governo o jornalista Franklin Martins, pedindo à Lula que o presidente transformasse em ministério a Secretaria de Comunicação Social. Lula acatou o pedido. O hoje ex-ministro se refere à Santana, no livro: "O João tem o toque de Midas eleitoral. Desde o governo Lula nós tocamos de ouvido."

Santana sempre tocou de ouvido; mas nunca foi de ignorar a partitura. Na relação de leituras que entregou ao jornalista, o leque, sofisticado, vai da "A mistificação das massas pela propaganda política", de Serguei Tchakhotine, a "A psicologia das multidões" de Gustave Le Bon e "The Image Makers", do William Meyers.

Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobras no governo Lula, vê nos marqueteiros os novos protagonistas do discurso político:

"Os marqueteiros estão hoje para os partidos políticos como os ideólogos estavam no começo do século XX. Pensavam num programa máximo, num programa mínimo, e isso era fundamental na luta política. Hoje, o ideólogo é nada. É tudo docudrama. O que existe é um pensamento publicitário."

Segundo o autor, Bucci, empolgado, tentou citar Tirésias, em Édipo Rei, de Sófocles, mas se enrolou. 

O professor-doutor Paulo Nassar, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, vê Santana como "uma Sherazade", a narradora de As mil e uma noites: "João Santana entende bem que a política é uma indústria de narrativas". O professor coordenava à época o Grupo de Estudos de Novas Narrativas e tem uma visão bem própria do marketing político.

"Estudamos a política como produto", ele explica. "A gôndola do mercado político, a indústria da propaganda política, o candidato-produto."

O livro oferece também a visão do publicitário Fernando Barros, dono da Propeg, sobre João Santana, a quem considera um "estrategista": "A campanha da reeleição da presidente Dilma é um exuberante exemplo da comunicação política guiada por um pensamento estratégico bem definido", esclarece. "Desconstruiu desafiantes e reconstruiu o perfil da presidente".

Uma "desafiante" pra lá de desconstruída foi Marina Silva. Para quem não a conhece, a acreana foi senadora por seu estado por 16 anos (de 1995 a 2011), Ministra do Meio Ambiente do governo Lula por 5 anos (2003 a 2008) e candidata por três vezes consecutivas à Presidência da República, perdendo as duas primeiras para a candidata do governo, Dilma Rousseff, e a última para Jair Bolsonaro.

Embora tenha em uma das ocasiões o expressivo montante de 20 milhões de votos, Marina nunca chegou a um segundo turno.

A desconstrução de Marina se tornou uma referência emblemática da disputa eleitoral brasileira. Maklouf dedica todo um capítulo para esmiuçar como se formulou a estratégia do PT para derrotar a ex-petista Marina Silva e eleger a ex-pedetista Dilma Rousseff. Como eu também acho esse ponto bastante interessante, vou abrir um lauto espaço para ele aqui.

Após o término do primeiro debate entre os candidatos à Presidência, no SBT, em 1o de setembro de 2014, Dilma, Lula, Mercadante e Santana rumaram para um jantar-reunião na suíte de Dilma, no Hotel Unique. Completavam o grupo Rui Falcão, Luiz Marinho e Ricardo Berzoini, um dos aloprados. O prato principal a ser desossado foi Marina, que não parava de crescer nas pesquisas. 

"Marina cresce porque corre solta, intocável, pairando nos céus", destrinchou Santana, explicando: "Ninguém a confronta." Mercadante assentiu, Santana foi mais enfático: "Melhor partir já pro confronto do que deixar a iniciativa para o Aécio, que vai retardar a decisão ao máximo", alertou. "Senão vamos enfrentar uma Marina muito fortalecida na rodada final."

Aí veio a convocação ao grupo. "Nós não temos outra opção que não antecipar o segundo turno", vaticinou João Santana. "Mas eu só farei isso se todo mundo concordar." Todo mundo concordou, inclusive Dilma. Seguro do que falava, Santana complementou: "Marina tem queixo de vidro."

Metaforicamente falando, a partir daí Marina Silva tomou uma saraivada de golpes não só no queixo, mas nas costelas, no fígado, na nuca etc (na nuca todo mundo sabe que é proibido, mas o pessoal dá assim mesmo, porrada é porrada). Nunca se recuperou do atropelo acusatório.

O baiano Antonio Risério (que Maklouf classifica de redator a antropólogo, de poeta a colunista político), parceiro frequente de João Santana, trabalhou ativamente na criação da segunda campanha de Lula e na primeira de Dilma. Na campanha de 2014, porém, mudou de cliente, e foi trabalhar para o candidato do PSB, Eduardo Campos. Foi combatente e testemunha.

Perguntado sobre o que tinha a dizer sobre a última campanha da ex-cliente Dilma, Risério não teve papas na língua: "Foi de uma falta de escrúpulos que eu nunca tinha visto".

João Santana rebate o argumento: "Foi uma campanha de forte embate político e ideológico. Ela não avançou mais porque não encontramos oponentes à altura. Eles fugiram do debate por covardia ou soberba."

A campanha presidencial de 2014 foi mesmo forte - e os golpes da propaganda eleitoral petista contra Marina Silva são um must em qualquer seleção dos piores momentos. Mas Santana não aceita a aversão generalizada às manobras com as quais ele, Santana, atacou a ecologista.

"Fala-se muito que fizemos jogo sujo com Marina, 'uma mulher santa'. Ora, nosso embate com Marina foi 100% político e 200% programático", teoriza Santana, para emendar: "Marina não revidou as nossas críticas ou por ingenuidade, ou por fragilidade teórica, ou por soberba. Talvez mais por soberba, por se achar acima do bem e do mal."

O marqueteiro ora gosta de pespegar o rótulo de "soberba" nos adversários, ora opta por acusá-los de terem iniciado as agressões, assumindo a posição de quem se defendeu dos ataques.

"O que salvava Marina é que seu aspecto aparentemente frágil, sua voz macia, permitiam que ela batesse com virulência sem parecer agressiva. Mas foi ela quem começou a agressividade na campanha. Os fatos mostram isso."

Fiquei meio em dúvida quanto à referência de Santana "ao que salvava Marina". Parece que "o que salvava Marina" não salvou. O filme publicitário em que Santana contrapôs uma mesa de banqueiros ladinos à mesa de uma família humilde, onde a ação nefasta dos banqueiros fazia sumir a comida da mesa dos brasileiros, teria sido o direto no "queixo de vidro" de Marina?

Difícil dizer. Desidratada pela sucessão de ataques, dos quais tentava se defender com sua voz esganiçada, a campanha da acreana lentamente sossobrou. Coube a Aécio conquistar a vaga no segundo turno, cumprindo o desejo do estrategista da campanha do PT.

Para quem não lembra, a peça de 30 segundos tinha uma mesa formada por sujeitos de terno e gravata, rindo diabolicamente, com o locutor em off alertando que Marina, se eleita, daria autonomia ao Banco Central. Prossegue dizendo que isso significaria dar aos banqueiros um grande poder de decisão sobre a vida das famílias. Enfileira de forma aleatória as palavras juros, salários, empregos.

Enquanto isso, as imagens que mostram a família se reunindo para jantar vão se tornando fúnebres. O physique-du-rôle da família é impotente e amedrontado. Na mesa farta havia salada, frango, suco de laranja - mas no take seguinte a família olha assustada para os pratos subitamente vazios. Toda a comida desapareceu. O locutor explica:

"Os bancos assumem um poder que é do presidente e do Congresso, eleitos pelo povo. Você quer dar a eles esse poder?"

Embora as afirmações narradas não correspondam aos fatos no mundo real, as imagens são fortes. A população captaria a mensagem nuclear da peça. Marina Silva iria dar autonomia ao Banco Central, o que significaria "entregar" o comando aos banqueiros (o que é uma falácia, pois o Banco Central é uma instituição de governo, que rege os bancos, ao invés de ser regido por eles), que, por sua vez, explorariam o povo.

Se o autor tivesse me perguntado qualquer coisa, eu diria que "a peça é um mini-dramalhão demagogo para impressionar uma audiência ignorante". Mas, como ele não me perguntou, e agora é tarde, fiquei sem a oportunidade de dizer a ele o que verdadeiramente acho.

Santana, o biografado, se expressou à vontade. Se queixa da repercussão negativa. Reclama de uma escritora que, na, na Folha, queria proibir "filme que coloca prato de comida sumindo na frente de crianças". Ele, ao contrário, enaltece a produção e vê com euforia o próprio filme de 30". 

"Se houve exagero ali, permita-me a presunção, foi de qualidade fílmica e criativa. E exagero, também, de silêncio de resposta da campanha de Marina." Segundo o biografado, faltou mesmo foi reação: "Se houve exagero na argumentação de nossa parte, por que eles não responderam à altura?"

Entusiasmado com o sucesso obtido, Santana exalta o tempo de TV da campanha de Marina, "suficiente quando se trabalha com competência". Eram dois minutos e três segundos, enquanto Dilma tinha 11 minutos e 24 segundos. João, cheio de si, volta à sua recorrente teoria da soberba:

"Se não responderam, foi por pobreza teórica, lerdeza técnica ou soberba mística. Ou as três coisas juntas. O que não pode é partir para o ataque vão e tardio. Isso é coisa de mau perdedor. O filme funcionou porque era verossímil, dizia coisas plausíveis e era bem-feito."

(Não lembra do filme? Copie e cole no seu navegador: http://bit.ly/MarinaEOsBanqueiros)

Marina, a da soberba e do queixo de vidro, não resistiu e rolou ribanceira abaixo na curva seguinte. O adversário que seguiu para o segundo turno contra a candidata petista foi Aécio Neves. Àquela época ainda não havia os áudios da JBS e o neto de Tancredo Neves ostentava uma aura progressista e meritocrata.

(Eu disse que ia dar um espaço generoso para este episódio do filme do prato vazio. Está dado.)

O grande embate final da campanha de 2014 ficou entre o PT e o PSDB, mais uma vez. Maklouf traz a opinião dos marqueteiros das duas campanhas - o de Dilma, João Santana, e o de Aécio, Paulo Vasconcelos -, que falam cada qual sobre o outro. Paulo elogia, mas confessa algum ressentimento.

"Ele novamente provou seu talento", diz Paulo sobre João. "Mas discordei publicamente do uso profissionalizado que a campanha fez das baixarias e das mentiras", acrescentou, para arrematar: "Acredito que isso serve para deseducar o eleitor e distanciá-lo da política".

"É mentira que nossa campanha tenha feito uso profissional da baixaria", retorquiu Santana. "Mas a verdade é que a dele fez uso amador da mediocridade".

João prosseguiu, se recusando a deixar barata a crítica do colega: "O marketing do Aécio fez uma das campanhas presidenciais mais medíocres, do ponto de vista criativo e estratégico, que o Brasil já viu".

Seu vaticínio sobre o responsável pela campanha de Aécio Neves é taxativo: "Este rapaz é um marqueteiro de segunda divisão que entrou, por acidente, na primeira. Por isso está caindo fragorosamente para a terceira divisão."

Santana retruca também com veemência as críticas assinadas por Nelson Motta, em novembro de 2014. O jornalista escreveu o artigo "O império da mentira", que despertou a ira do publicitário, principalmente neste trecho:

"Marqueteiros políticos são uma espécie moderna de mentirosos profissionais de alta performance, que são mais eficientes quando distorcem fatos e números e ampliam supostos defeitos e suspeitas sobre os adversários. O problema é o candidato vencer as eleições e continuar acreditando na campanha do marqueteiro."

João alisa antes de revidar. Reforça que tem carinho pessoal pelo "Nelsinho" Motta e que o artigo é inteligente. Mas não aceita a carapuça.

"Ele reforça a falsa ideia de que mentimos na campanha. Na realidade, é bem o contrário. Vários políticos e analistas vinham acreditando na própria mentira que eles criaram, a de que o governo Dilma era um grande e rotundo fracasso."

Santana se orgulha de ter contribuído para o sucesso do governo moldando desde o início a sua comunicação. Se jacta de já no segundo mês do primeiro governo Dilma ter emplacado o slogan "Brasil - país rico é país sem pobreza".

Segundo informações publicadas no livro, parece que rendeu um bom dinheiro. Gostei não. Me soa tipo "piscina cheia é piscina com água". Mas o cliente gostou e pagou bem.

Santana elenca aquelas que considera as grandes conquistas do partido. Se vale de uma frase repetida mil vezes, que seria inegável "o vigoroso processo de ascensão social que começou com Lula e que continuou no governo Dilma".

Como sócio-proprietário número um deste distinto blog, vou me permitir aclarar este comentário do grande marqueteiro. A verdade é que o Brasil, na primeira década dos anos 2000, foi beneficiado por uma dupla conjuntura inesperada. Um cometa imprevisto: o sucesso na contenção da inflação, que passou para a história como o Plano Real, e o boom econômico mundial, que gerou uma tsunami de lucros que precisava ser investida em algum lugar. O mundo escolheu o Brasil, que, recém organizado, se tornou o destino preferido do dinheiro internacional. Este excesso de dinheiro foi instrumento nas mãos do governo seguinte - o petista -, que o gastou muito mal, aumentando o funcionalismo, enriquecendo ainda mais os ricos, praticando um assistencialismo inflado e estimulando o crédito aos pobres, que pagava juros de agiota para trocar de tv.

Entre os demais argumentos para enaltecer os governos Lula e Dilma, João Santana cita "os estádios da Copa", "a transposição do São Francisco", a "hidrelétrica de Belo Monte" e o "Mais médicos". E também se gaba do "combate à corrupção".

Seria ótimo se tivesse sido bom. Mas hoje todo mundo sabe que os estádios foram elefantes brancos bilionários, que a transposição foi uma falácia, que Belo Monte foi um desastre ambiental criminoso e que os humildes médicos cubanos trabalhavam para que o dinheiro fosse para a aristocracia comunista de Havana. Já o "combate à corrupção" acabou com a corrupção levando todos os petistas para a cadeia, do presidente ao marqueteiro.

O projeto petista de poder incluía também uma cubanização da relação governamental com a imprensa. Risério, o ex-colega que foi trabalhar para outros partidos, teve uma visão despótica da organização, quando experimentou o lado amargo de enfrentar o PT.

"O PT persiste em seu desempenho prático de controle partidário da mídia, inclusive acionando computadores palacianos para alterar perfis de jornalistas na wikipedia."

A propósito, a catástrofe da política das relações exteriores do Brasil não começou de agora, com o Eugênio Araújo (quem?). Como vimos depois, nos inquéritos abertos na operação Lava Jato, com dezenas de confissões e farta devolução de dinheiro desviado, o PT celebrava acordos com países sul-americanos, caribenhos e africanos, onde o BNDES entrava com o dinheiro e, no rastro, as empresas de Marcelo Odebrecht e João Santana se instalavam como executoras de obra e prestadoras de serviço. Ambos confessaram e foram condenados.

Na época do depoimento dado ao livro, entretanto, João Santana se refere à Cuba como se exemplo cabal de uma ação meritória do governo brasileiro.

"Disseram que o governo brasileiro tinha dado dinheiro aos cubanos, quando, na verdade, o Brasil nem mesmo empréstimo fez a Cuba, mas sim a empresas brasileiras, gerando emprego aqui no Brasil", retrucou um exaltado Santana, na publicação.

Pois foi justamente este triângulo - governos de Brasil e Cuba, mais as empresas brasileiras - o tripé do conluio criminoso, descoberto na lendária operação de combate à corrupção. Reiterando o que eu disse no início, para se livrar da cadeia João Santana negociou com a Justiça brasileira uma delação premiada e a consequente redução de sua pena de prisão.

Na época do livro, ninguém imaginava que tudo seria revelado. Estávamos com doze anos sucessivos do petismo no poder. O marqueteiro possuía mais influência que Rasputin. E o próprio, João Santana, não tinha dúvida do papel que exercia no cenário político, na função de marqueteiro:

"O maior equívoco é querer separar, como fazem alguns, o marketing, ou a comunicação, da política. O marketing e a comunicação são linguagens da política. Ela e ele estão umbilicalmente ligados. Fazem parte de um mesmo corpo."

Este mesmo João Santana é agora o marqueteiro da campanha de Ciro Gomes. As novas peças já  divulgadas na mídia investem na comparação entre Ciro Gomes e Joe Biden, tentando emplacar Ciro como o Biden brasileiro.

A linha é óbvia, o que não a faz pior por isso. Biden destronou Trump. Bolsonaro ocuparia este papel de Trump na eleição nacional, o que faria de um Biden tupiniquim o candidato ideal. Mas tem um problema nisso. Como alguns dos colegas de Santana apontaram, o problema seria a "verdade".

Ciro Gomes não tem nada em sua trajetória que o assemelhe a Biden. Pelo contrário, os dois têm perfis opostos. Biden foi sempre um parlamentar estável, de muitas realizações e de discurso moderado. Ciro foi sempre um agitador instável, de muitas teorias e de discurso agressivo.

Uma boa chance para João Santana comprovar a sua habilidade em criar narrativas.

Editora Record, 251 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Li os livros anteriores do jornalista Luiz Maklouf Carvalho “O cadete e o capitão” e “O coronel rompe o silêncio”. Livro é memória. A importância de relembrar a atuação de personagens da nossa história (política ou não) com a distância que só o tempo permite, é poder aprender com os fatos que as sucederam e que, não raro, demoliram seus discursos ilusórios da época. E leitura é um vício dos bons que me faz colocar mais esse no livro (baratinho na Amazon) no carrinho de compras . He, he, he...

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  2. Excelentes leituras e sábia decisão. Ainda mais quando é uma pechincha...

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