"Vou embora", por Jean Echenoz

sexta-feira, maio 21, 2021 Sidney Puterman


Com a edição esgotada, encomendei um exemplar ao Sebo Capricho. Fucei na internet. Um mega-sebo na Comendador Araújo, no centro de Curitiba. A fachada é revestida com azulejos bege-escuro e bege-claro. O interior lembra mais um supermercado do que uma livraria. Um grande letreiro azul e branco, projetado, traz em letras garrafais: "SEBO KAPRICHO". Não me pergunte como o "K" roubou o lugar do "C" (nada a estranhar, o Brasil é a terra dos Keirrissons e das Ketlellens).

O meu exemplar veio com quatro adesivos (que não descolam por nada), todos eles com propaganda do tal sebo. Cola de primeira qualidade. Acredito que em algumas centenas de anos as páginas vão esfarelar, mas os adesivos continuarão lá. Diz um deles, o pregado na capa, que o meu exemplar custou R$ 9,90. Procede. Uma pechincha.

A propósito, não estou certo que encher a capa e a contra-capa de um livro com adesivos da própria livraria seja uma boa ideia. Manter um exemplar usado merecia mais... capricho. Porém, vai que a mesma pessoa que adesivou foi quem sugeriu escrever capricho com "k". Vá saber.

Bem, todo este narigão de cera tem sua razão de ser. O livro.

Fiquei um pouquinho passado. Vou modestamente apelar para os intelectuais e reproduzir aqui os depoimentos da contra-capa (alguns, porque tem uns que os adesivos não deixam ler). A Marie-Laure Delorme, do Magazine Littéraire, resumiu assim:

"No exterior, tudo é gelado e luminoso. No interior, tudo é trêmulo e sombrio. Seus livros são filhos do silêncio e do pudor."

Eu já estava com dificuldade de falar sobre o livro, agora estou também com dificuldade de falar sobre o comentário do livro. Vou pular esse. O Pierre Lepape, do Le Monde, é um pouco mais, digamos, substantivo:

"Em Echenoz, cada frase conta. A extrema densidade do que é dito está ligada de forma definitiva à graça do como dizer."

Estamos de acordo sobre o Echenoz. Até por isso comprei o livro. Mas nessa "extrema densidade" eu boiei. Talvez eu deva ler o livro outra vez. Uma vez só, como eu fiz, fica uma leitura mais etérea. Provável que na segunda eu esbarre com a densidade, ou ela, densa, me impeça de não notá-la.

Já a definição do Jean-Baptiste Harang, do Libération, me pareceu um tanto deslocada no ambiente. Uma definição xaroposa, com sorrir e sonhar, tristeza e amargor.  Um certo quê de Agnaldo Timóteo de terno azul-celeste e alfinete de pérola. O único pormenor digno de nota é que eu não consegui encaixar bem a frase do Harang com nenhum dos capítulos. E olha que são trinta e cinco.

"Mais uma vez Jean Echenoz teve êxito em sua tarefa de fazer sorrir com tristeza, de fazer amar com amargor, de fazer sonhar dentro das contingências."

Eu, ehm. Depois de ler o "comentário" umas duas vezes, fiquei com uma dúvida consistente se o Harang folheou o livro. Ou se ao menos ele deu uma conferida no que ces amis eruditos franceses estavam dizendo. Dar uma colada no comentário pernóstico de algum colega poderia salvar o emprego do Harang de comentador de contra-capa. Franceses. Vai ver foi até promovido.

Mas vamos deixar de subterfúgios, que eu não sou pago para isso (aliás, eu sequer sou pago, que dirá para isso). O que o livro relata: um marchand faz uma viagem ao Ártico para resgatar umas antiguidades e outras quinquilharias em um barco recém-recuperado. A ideia é expô-las na sua galeria e faturar uns bons trocados. Acontecem umas peripécias ao redor desse argumento-base. O marchand, Ferrez, comedor blasé, começa o livro se separando e se envolvendo com algumas donas. Termina o livro do mesmo jeito. Noves fora, é inquestionável que Echenoz tem o dom.

Vamos tentar elogiar.

O início do livro, a parte mais interessante - pelo menos foi onde me diverti mais -, traz a rotina de Ferrez em meio aos trenós e esquimós. Dá uma desdenhada básica nos cachorros, parece que viraram uma espécie de charrete num mundo de ferraris. Divaga numa teorizada sobre a dificuldade dos mapas em retratar aquela parte do planeta.

"Os pólos, todos podem verificar, são as regiões do mundo mais difíceis de se olhar num mapa. Nunca se encontra exatamente o que se quer. Na verdade, das duas, uma. Podemos em primeiro lugar considerá-los como ocupando o alto e o baixo de um planisfério clássico, tomando-se o equador como base horizontal mediana. Nessas condições, entretanto, tudo se passa como se os olhássemos de perfil, em perspectiva fugidia e sempre necessariamente incompletos, o que não é satisfatório. A seguir, podemos também olhá-los de cima, como de um avião: tais mapas existem. Nesse caso, porém, é sua articulação com os continentes, que habitualmente se vê por assim dizer de frente, que não se compreende mais e isso também não funciona. Portanto, os pólos são indóceis no espaço chato."

Bem, eu achei legal. Explica também porque ninguém vai àquele fim de mundo congelado, mas, não obstante, de lá todo mundo quer um pedaço: "A Escandinávia porque foi dela que vieram os primeiros exploradores dessas bandas, a Rússia porque não está tão longe, o Canadá porque está perto e os Estados porque os Estados Unidos".

Conta ainda que no idioma iglulik há 150 palavras que se referem à neve, "da neve em crosta à neve quebradiça, passando pela neve fresca e mole, a neve endurecida e ondulada, a neve fina e em pó, a neve úmida e compacta e a neve erguida pelo vento". Se eles passassem o inverno em Petrópolis, iriam dar uma encorpada no vocabulário. Isso aqui tem noite que é de gelar os ossos.

Gostei também do menu de um dos dias (lá todos os dias eram integralmente dias, o sol nunca se punha): uísque com gelo de iceberg, mousse de foca e filé de filhote de baleia.

Mas essa parte polar só existe na primeira metade da obra, pena. Ainda que fora dela o itinerário esteja longe de ser fraco. Temos Paris, uma rota de fuga pelas estradas francesas e um pedaço da Espanha.

No texto tem uns achados e umas frases da hora. Numa delas, uma filosofia de botequim atribuída ao personagem Baumgartner, tem um espírito cafajeste, mas faz algum sentido: "Você me atrapalha. Você pode me atrapalhar e portanto você me atrapalha." 

A visão do autor sobre o recente (a obra é de 1999) Tratado de Schengen, em vigor desde 1995, é interessante, à gauche: "A supressão do controle nas fronteiras internas, assim como a colocação de uma vigilância reforçada nas fronteiras externas autorizam os ricos a passear nos territórios dos ricos, confortavelmente consigo, abrindo os braços uns aos outros para melhor fechá-los aos pobres que, perfeitamente arabizados, compreendem muito bem sua dor."

Não sei você, mas eu achei digno de registro. Eu gastaria nele mais uma duas vírgulas, mas quem sou eu. O cara venceu o Prêmio Goncourt e a tradutora deve ganhar suficientemente bem para saber onde botar as vírgulas.

Em meio à trama, Ferrez se estende um pouco sobre o circuito das artes, um certo desdobramento natural Paris-Bruxelas-Berlim-Nova York que pode ser natural lá no Primeiro Mundo, mas para mim soa como um passeio de iate baldeando de helicóptero. 

Como você certamente percebeu, eu destaquei alguns trechos, fiz umas graças, mas me poupei de esmiuçar o conteúdo. Mesmo que fosse para não dar spoiler - ainda que spoiler nenhum fosse ajudar, ou piorar, a situação. Importa (será?) que o livro tem personalidade.

Echenoz, como já falei meia-dúzia de vezes, entende do riscado (li dele o ótimo "14", postado aqui no blog há alguns anos), mas, se for depender de mim para indicar o livro, vai morrer de fome.

Tem um outro comentário na contra-capa, que o adesivo com um código de barras rasurado não chegou a encobrir, que me deixou encafifado, o do François Nourissier, no Le Figaro Magazine. Ele acha a leitura "emocionante e hilária de ponta a ponta" e julga que o autor vê tudo com um sorriso "carniceiro". Caraca. Eu li de ponta a ponta e não achei esse "sorriso". Todos me parecem mal-humorados. E, ademais, quem seria a carniça? O leitor? Transbordo de perguntas, sei.

Mas, especificamente quanto ao "ponta a ponta", parece que o crítico literário não aposta um euro furado nos seus leitores: "Por favor, leiam todas as páginas na ordem e sem pular nenhuma".

Que mais posso dizer? Um livro que estampa uma recomendação na contra-capa para que eu leia todas as páginas, sem pular nenhuma, prescinde de comentários. Ele se auto-comenta.

Editora Objetiva, 178 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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