"Quarto de despejo", por Carolina Maria de Jesus

quinta-feira, maio 13, 2021 Sidney Puterman


Com o subtítulo "Diário de uma favelada", o documento, publicado em 1960, oferece uma narrativa visceral. Traz o registro cru da rotina de um ano e meio do cotidiano de uma mulher negra, mãe solteira de três crianças, catadora de papel, inquilina de um barraco na favela do Canindé, em São Paulo. 

Apesar das centenas de dias enfileirados, é uma tragédia em um ato.

Os atores se foram, o palco já foi desmontado, mas o roteiro permanece em cartaz. Ainda que em outros endereços; lá, sobre o terreno do que um dia foi favela, há muito se ergueu a arena da Portuguesa de Desportos. Que dê pistas do passado, só o nome: Estádio do Canindé.

Já o script dos personagens maltrapilhos, protagonistas do drama de Carolina, foi além e manteve as falas. É que as meras atualizações de costumes (celulares, gatonet, tv de plasma etc) não alteraram, na essência, a vida dos desprovidos. Como antes, ainda não têm estudo, nem esgoto. 

Do Canindé, para quem não faz bem ideia das favelas d'antanho (de moradias mais espaçadas), sobraram algumas escassas imagens dos barracos, seja nas fotografias feitas após o lançamento do diário (fáceis de encontrar no google) ou nas externas do filme "Cidade ameaçada", longa-metragem de lançamento do diretor Roberto Farias (você acha as cenas no youtube). Atores que integrariam a nata da dramaturgia nacional têm papel de destaque na película: Eva Vilma, Jardel Filho, Milton Gonçalves e Reginaldo Farias, entre outros.

Carolina registra a movimentação do elenco no seu diário.

"Quando os artistas foram almoçar os favelados queriam invadir e tomar as comidas dos artistas. Pudera! Frangos, empadinhas, carne assada, cervejas", relata a autora, salivando. "Permaneceram o dia todo na favela. A favela superlotou-se. E os visinhos de alvenaria ficaram comentando que os intelectuais dão preferência aos favelados."

Mais da metade dos parágrafos têm um tema recorrente: o que comer naquele dia. Diferentemente do cardápio das estrelas, a escritora alternava suas refeições entre restos catados no lixo, ossos e pelancas doados pelo açougue, ou um prato dado por uma alma caridosa, e o que mais desse para comprar na mercearia, às custas do papelão e do cobre catado nas ruas e vendido no ferro-velho.

"Eu já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro."

Muitas vezes nada disso funcionava e ela e as crianças dormiam sem comer, sonhando com comida.

O livro e o diário terminam em 1o de janeiro de 1960. A descrição é todo o tempo monocórdia: fome, miséria, opressão, imundície. A única variação é o estado de humor de Carolina. Pela janela do barraco se vê a vida da comunidade, através da prosa seca e ressentida da escritora favelada.

Se pôs no papel os entreveros diários dos despossuídos de alimento, educação e cidadania, não se restringiu ao seu próprio habitat; a agudeza desesperançada de Carolina via além da lama. Via com rudeza e inconformidade os palácios, as autoridades, a polícia, o governo.

"... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo."

Sentia na carne também a situação de eterna rivalidade na favela, uma vizinhança belicosa que caçoava, mentia, roubava e esfaqueava.

Carolina fala ainda dos seus amantes, de pouco romance: o pai da filha, que tinha dinheiro, mas não sustentava a menina; um cigano de passagem, que se aboletou no seu barraco; um português mais idoso, que a queria com carinho, mas a quem ela não queria.

Escreve no escuro do barraco, após a labuta do dia. Suas reflexões esvoaçam no mundo ao redor, perto e longe, no gume da sua realidade áspera.

"Hoje é o dia da pascoa de Moysés. O Deus dos judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente. Moysés quando viu os judeus descalços e rotos orava pedindo a Deus para dar-lhe conforto e riquesas. É por isso que os judeus quase todos são ricos. Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós."

Interessante constatar que o diário traz inclusive os comentários de Carolina sobre a preparação do livro, do jornalista que a descobriu, e até mesmo da matéria sobre ela publicada nos jornais. 

"Depois fomos na redação e fotografaram-me. Prometeram-me que eu vou sair no Diário da Noite amanhã. Eu estou tão alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando."

O responsável pela versão final, que fez a edição dos textos do diário, manteve os muitos erros de gramática e ortografia. Longe de reduzir o valor da obra pela prosódia prejudicada da autora, surpreende pela lacuna ter sido fecundada por seu talento abissal.

"A purtuguesa perguntou-me: 'O que a senhora faz?' Eu disse: 'Eu cato papel, ferro, e nas horas vagas escrevo."

O projeto gráfico do miolo, a cargo do ilustrador Vinicius Rossignol, é estupendo. O emprego do vermelho como plataforma das imagens em preto & branco choca e transpõe. O casario brejeiro fincado num chão de sangue. Carolina, de cenho franzido, iria aprovar.

"Há de existir alguem que lendo o que escrevo dirá... isto é mentira! Mas as miserias são reais."

A obra se tornou um clássico e a autora se tornou um ícone. Em vida, a fama não foi capaz de transcender a própria era; Carolina voltou à miséria. Hoje, relida, sua memória é exemplo de afirmação e possibilita múltiplos aproveitamentos. Ainda que jamais tenha mudado, ela é hoje o que não foi nunca.

"Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom."

O Brasil não se tornou o que é agora. Autores como Carolina Maria de Jesus estão aí para provar que isso aqui sempre foi assim. Nada indica que vá mudar.


Editora Ática, 197 páginas

Obs.: Hoje celebram-se 133 anos da proclamação da Lei Áurea. Coube à uma vizinha minha (vivesse eu aqui naquele tempo) a ansiada assinatura do documento. Porém, olhando as carolinas e os jacarezinhos, constata-se que a libertação dos escravos foi bem meia boca. Como quase tudo por aqui, aliás.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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