"Rio Belle Époque", por Alexei Bueno

quinta-feira, maio 21, 2020 Sidney Puterman

Um álbum de fotos pode construir uma narrativa? Este surpreendente "Rio Belle Époque" prova que sim. Com dezenas de imagens inéditas, a obra é uma provocante coletânea de fotografias antigas sobre o Rio de Janeiro, lançada por ocasião das comemorações dos seus 450 anos. Como guarnição, o texto afiado do poeta e ensaísta Alexei Bueno. O desafio de oferecer um novo ângulo de uma metrópole tão registrada não era pequeno. A musa, a cidade, deve ter sido a mais fotografada das capitais sul-americanas - não só pela paixão pioneira do Imperador Pedro II pela nova arte (ele que fomentou a vinda de diversos fotógrafos europeus para o Brasil), como pela pretensiosa reforma urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos. A edição ficou supimpa. Pena que a editora, a Bem-Te-Vi, sucumbiu logo depois do lançamento. Se despediu em grande estilo, em uma época ingrata para o produto impresso. A publicação, em papel couchê e capa dura, é para ser guardada. É uma viagem de primeira classe a um passado carregado de simbolismo - e determinante na formação da aura carioca. No período registrado pelas fotos, a estrela do Rio era a Avenida Central. Nascera sofisticada em uma cidade insalubre, uma réplica tropical da Champ-Élysées. Mas, ainda que presente, aqui ela cede seu protagonismo para um episódio mais coerente com a história da capital. O cenário que domina a edição é o sórdido arrasamento do Morro do Castelo, levado a cabo em 1922. Ao seu monumental desmonte se somam outras dezenas de registros, de manobras militares ao desfile de misses - incluindo imagens em primeira mão de Santos Dumont (em uma das fotos, posa à frente de um monomotor, ao lado do ás francês René Fonk, que teria abatido 75 aviões na Grande Guerra) e uma prosaica sequência com a cabeça do Cristo Redentor, que chegou de navio e passou um bom período ao rés do chão. O rico conteúdo, por si só uma joia, ainda prima por inédito - caso raro em se tratando de fotos centenárias. É que a origem do livro é curiosa: o último governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, ganhou como presente uma mala com centenas de frágeis negativos de vidro e algumas poucas películas. O mimo insólito virou herança, que coube ao filho editor preservar. O material, ao que tudo indicava jamais revelado, não tinha anotação de autoria e tampouco data e local. Bastava tê-lo em mãos, porém, para constatar que, em sua maioria, eram flagrantes do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX. Um tesouro. E esta preciosidade veio a público somente agora, na bem vinda onda editorial que cercou a celebração dos 450 anos. A lamentar que o maior ícone deste espólio já não esteja entre nós, o finado Morro do Castelo. O promontório em cima do qual a cidade foi fundada, e ao redor do qual a cidade cresceu, foi posto abaixo. Caso raro de um marco topográfico assassinado; crime cujo mandante foi o prefeito da cidade, Carlos Sampaio, que encomendou seu desmanche a jatos dágua (veja aqui no blog um livro exclusivamente sobre o desmonte, em post de 2015). Esta edição comemorativa registra as principais locações do Castelo, à beira do vergonhoso bota-abaixo. A coletânea reúne fotos comoventes da Velha Sé, eternizando as vielas de gente humilde e os prédios quinhentistas, então os únicos contemporâneos do século de fundação do Rio. A celebração da missa derradeira tem uma multidão a cobrir o morro, na véspera do seu dissolvimento (os varais das lavadeiras, com roupas brancas ao vento, emulam um ignorado pedido de rendição). O Castelo veio abaixo e não salvaram nem as portas e janelas dos prédios históricos. Se me dói hoje, eu que não subi suas ladeiras, imagino o que não sofreram os apaixonados pela História, na época em que o crime foi perpetrado. Carlos Sampaio, o meliante, teve a proteção de Epitácio Pessoa, que, só por isso, não merecia ser o atual nome da via que contorna a antiga lagoa Sacopenapã (antes também Piraguá, mas que há três séculos atende por Rodrigo de Freitas). A propósito, a nomenclatura das ruas do Rio de Janeiro e demais cidades brasileiras é um acinte - a que se presta nominá-las não com seu nome e significado originais, mas com o nome de desconhecidos e reles políticos? Segundo a wikipedia, a Rodrigo de Freitas tinha sido antes Lagoa de Amorim Soares e depois Lagoa do Fagundes. A encalhada bisneta deste zé ninguém, a Petronilha Fagundes, casou-se aos 35 anos com um jovem sicrano português, de meros 18 anos - o tal Rodrigo de Freitas, que também era de Carvalho, o que, como dizia eu, não tem importância alguma. Freitas deu o golpe do baú na Petronilha e voltou para Portugal, viúvo, alguns anos depois, sem jamais imaginar que os séculos se passariam e a "sua" lagoa jamais perderia o nome. Antes fosse Lagoa da Petronilha. Digressões ranzinzas à parte, o álbum de imagens deixa claro que irá muito além das ditas cujas, enviesando pela tortuosa política brasileira. O ensaio de Alexei Bueno circunstancia o país que há pouco havia proclamado a sua República, e desde então vivia metido em convulsões urbanas e políticas. Nada a estranhar. Mas ressalvo que a pertinência e acidez da abordagem fizeram toda a diferença. Ao invés de uma apresentação protocolar, corriqueira neste tipo de obra celebrativa de efemérides, Bueno entrega conteúdo adicional para o leitor e outorga personalidade à publicação. Mais que isso, driblando a prevalência de imagens do morro, atribui unidade conceitual ao conjunto fotográfico disperso, identificando uma unidade temporal e estética que lhe permitiu batizar a obra com o título de "Rio Belle Époque". Boa. Como diria a rapaziada, formou. Escolha acertada para celebrar o Rio. Remete a um período de intensa transformação cultural na Europa (da Guerra Franco-Prussiana, finda em 1875, à Primeira Grande Guerra, iniciada em 1914). Assim, nos lembramos que o efervescente cenário artístico e arquitetônico europeu cruzou o Atlântico e deixou sua marca também no Brasil - como testemunham as imagens presenteadas à Lacerda. Com o livro em mãos, o felizardo leitor (bota felizardo nisso, porque a edição está esgotada até nos sebos) poderá se deleitar com fotografias que narram a beleza peculiar da época, vraiment une belle époque. E, para nosso pesar, dimensionam o tamanho da História que nós já botamos abaixo.

Editora Bem-Te-Vi, 285 páginas

P.S.: Não adianta procurar no livro a imagem que ilustra o post. Catei na internet. Me pareceu tão belle époque que sobrepus mar, sacada e cabeça do Cristo num plano só. O blog é incorreto e caprichoso.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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