"O cadete e o capitão", por Luiz Maklouf Carvalho

quarta-feira, agosto 21, 2019 Sidney Puterman

Reconstituição histórica de um período emblemático da biografia de Jair Bolsonaro, hoje Presidente do Brasil: seu julgamento, no fim dos anos 80, por suspeita de participação em um plano terrorista. A ação, batizada de "Beco Sem Saída", planejava a detonação de bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro, incluindo instalações militares e a Adutora do Guandu, interrompendo o abastecimento de água da cidade. O esquema foi denunciado e abortado, sendo alvo depois de uma investigação do Exército. Perante o tribunal, Jair Bolsonaro se disse inocente. Foi absolvido por 9 a 4 em uma sessão secreta. Mas há quem até hoje questione o veredito. O livro que se propõe a dissecar o assunto, "O cadete e o capitão", está desde a semana passada em pré-venda. O autor é Luiz Maklouf Carvalho, jornalista com títulos de peso no portfolio. Eu, curioso incorrigível, já encomendei e recebi. E já li. Maklouf organiza um painel provocante. Nele, o leitor interessado encontra conteúdo valioso não somente sobre a operação terrorista não consumada e seu respectivo julgamento, como também convive com as nuances da personalidade do então militar e futuro político Jair Bolsonaro - indo desde a infância até o encerramento do seu ciclo nas Forças Armadas. Para remontar aos primórdios da linha do tempo do capitão, Maklouf se vale de diversas passagens da obra "Bolsonaro: mito ou verdade", escrita pelo seu filho, Flavio Bolsonaro. A edição assinada pelo Zero Um está disponível na Amazon desde 30 de dezembro de 2016 e hoje pode ser adquirida a R$ 25,20 mais frete. Antes que perguntem, adianto que não irá para a minha lista de compras. Esse não. Além do relato filial, Maklouf se vale do metódico registro militar para descrever os anos de Bolsonaro nas Agulhas Negras e também na caserna. Neste período, Cavalão (apelido de Jair entre os colegas) se destacou inúmeras vezes por seu arrojo e desempenho nos esportes. Além das conquistas na modalidade pentatlo militar, são atribuídos a ele dois salvamentos. No mais heróico deles, em 1985, Bolsonaro se apresentou como voluntário quando um ônibus da Cometa caiu no córrego do Vigário, na Serra de Araras. Segundo o tenente Djalma Antônio, do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, que havia sido seu instrutor em um curso de mergulho, Bolsonaro trabalhou no salvamento "durante dois dias seguidos, realizando mergulhos de até vinte metros, sem revezamento e em condições adversas." Resta claro que a performance física do atual presidente sempre foi digna de nota. Mas, como sabemos, não foi por seus dotes de atleta que Bolsonaro passou a trilhar o caminho da fama. É o que nos contam os capítulos mais encorpados, que abordam o artigo publicado em Veja e os preparativos do atentado. A partir deste instante, duas fontes se impõem: o material veiculado na mídia à época (uma pequena parte reproduzida aqui na ilustração do post), consubstanciando a narrativa, e a transcrição do inquérito e do julgamento, tanto no Conselho de Justificação, como no Supremo Tribunal Militar. Há talvez uma dúzia de depoimentos atuais, mas a grande maioria dos envolvidos não respondeu aos pedidos de entrevista do autor - incluindo Jair Bolsonaro e familiares. Compreensível. Além do corporativismo e do perfil já naturalmente reservado dos ex-colegas de farda, ninguém se sente confortável em falar de um processo antigo contra um presidente da República belicoso e no poder. Ou seja, para os perguntados o assunto é nitroglicerina pura. Ou trinitrotolueno (o popular TNT), que era o explosivo que o capitão planejou utilizar, segundo a Veja. O meticuloso trabalho do jornalista reconstitui os bastidores da publicação do artigo, que gerou a aproximação entre o militar descontente e a redação de Veja. O nome de Bolsonaro foi sugerido à direção da revista por José Carlos de Andrade, que chefiava a sucursal carioca. Entrevistado por Maklouf, Andrade ressalta que Bolsonaro "ainda era um total desconhecido fora da caserna, mas quem tinha fonte no meio militar sabia das insatisfações. O Clube Militar, intramuros, dava força aos protestos do jovem capitão. Ele já contava com o apoio  de generais de pijama, e não foi num repente que resolveu meter a cara. Eu acredito que tinha projeto para seguir na vida partidária." Aceito o convite, Bolsonaro entregou o artigo datilografado e recusou os setecentos cruzados a que teria direito pelo artigo. Após a enorme repercussão do texto, publicado na seção Ponto de Vista (e onde pela primeira vez ganhou destaque a expressão "Brasil acima de tudo", slogan do grupo paraquedista Centelha Nativista), Jair Bolsonaro foi preso por transgressão disciplinar e hierárquica e cumpriu 15 dias de cadeia. Apesar da detenção, não foi aberta sindicância, nem se tomaram depoimentos. O próprio Jair declarou que, depois da prisão disciplinar, voltou à sucursal de Veja em Botafogo para agradecer ao jornalista pelo artigo, complementando que alguns colegas "passaram a cumprimentá-lo mais efusivamente". O subcomandante de Bolsonaro no 8o GAC paraquedista, coronel Edson Bimbi, declarou ao autor: "Ele [Bolsonaro] falou comigo na segunda-feira, depois da publicação do artigo, ainda na adrenalina, perguntando o que fazer. Eu respondi: 'o teu caminho é a política'. O Bolsonaro era uma liderança carismática para os subtenentes, cabos e soldados. Vivia reclamando por melhores soldos e condições, mas não tinha eco junto aos canais hierárquicos superiores." Este desejo do capitão por melhores rendimentos já havia lhe valido algumas polêmicas. Uma delas teve origem um bom tempo antes, em 1979, quando pediu uma inusitada transferência do Rio de Janeiro para Nioaque, no Mato Grosso do Sul. O livro de Flávio Bolsonaro afirma que a transferência foi "motivada pelo desafio patriótico, por estar numa região de fronteira". Segundo uma reportagem recente do site G1, porém, "na cidade cuja principal atividade econômica é a produção rural, Bolsonaro também se aventurou como agricultor. Segundo José Cardoso, funcionário público, ele arrendou terras para plantar: 'Nós plantamos arroz, só que na época deu uma chuvarada, não deu para colher, e perdemos o arroz. Então ele 'fez a terra' de novo e plantou melancia (...), comemos muita melancia na época', diverte-se José, que cuidava da lavoura." Outro empreendimento do capitão aconteceu em 1983, quando aproveitou as férias para fazer uma viagem a uma região de garimpo, no interior da Bahia. A atitude não foi bem vista por seu superior, coronel Pellegrino, que então relatoriou: "Deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo de ouro'. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente." Quatro anos depois, o coronel foi ainda mais incisivo, afirmando que tinha "bem presentes" os comentários pessoais de Bolsonaro "sobre lendas e histórias, sempre referentes à existência de ouro, pedras preciosas e outros valores no Vale do Ribeira (...), consistindo sempre em relatos fantasiosos sobre fortunas feitas da noite para o dia", concluindo que Bolsonaro voltou "desiludido e frustrado". A inquietação de Bolsonaro não pararia por aí. Onze meses depois do artigo, ele se envolveria naquela que é o tópico central do livro: a operação Beco Sem Saída. Também aí a revista Veja esteve no centro dos acontecimentos. A edição 999, da última semana de outubro de 1987, trouxe a matéria intitulada "Pôr bomba nos quartéis, um plano da ESAO", um box da notícia principal (nota minha: o autor Luiz Maklouf se confundiu com a grafia correta do anglicismo e escreveu boxe, sem que o revisor o tivesse salvo do erro; boxe, com e, é pugilismo, e box, sem o e, é um "texto entre fios, sempre em associação com outro mais longo", na definição do Dicionário de Jornalismo, disponível na internet). O texto mencionava o aumento de 110% dado aos militares pelo presidente José Sarney, e afirmava que ele "começou preocupado com generais" e que havia descoberto que "na área militar a palavra-chave é capitão". Em seguida noticiava a prisão de dois capitães do Exército na semana anterior, "por protestos contra os baixos salários que recebem" e de dois outros que "revelaram um plano para explodir bombas em instalações militares - sem machucar ninguém, mas deixando claro sua insatisfação com os soldos". Um capitão foi preso em Apucarana (PR). O outro capitão foi preso no Rio. O aludido box narrava que a repórter de Veja, Cassia Maria, foi à Vila Militar do Rio e conversou com alguns militares e suas esposas, que detalharam seu planejamento para explodir bombas em várias unidades no Rio, Resende e em outros quartéis do interior. O clima era de insatisfação com os vencimentos, com a cúpula do Exército e com a prisão do colega capitão. A reunião se deu no prédio número 865 da Avenida Duque de Caxias. Lá, quem revelou os detalhes da operação Beco sem Saída foi Lígia, mulher de um outro capitão. Após algum tempo chegou o capitão Bolsonaro, que, pouco depois, fez críticas ao general Leônidas Pires Gonçalves: "Temos um ministro incompetente e até racista." Perguntado pela repórter se pretendia realizar alguma operação nos quartéis, Bolsonaro brincou: "Só a explosão de algumas espoletas." Em seguida, nas palavras da própria repórter, "sem o menor constrangimento o capitão Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio". Ele foi enfático nas críticas ao comando: "Nosso Exército é uma vergonha nacional, e o ministro está se saindo como um segundo Pinochet." Impactada com a revelação do plano e se sentindo compelida a publicá-lo, Cassia Maria, atrás de mais detalhes, telefonou para Bolsonaro alguns dias depois, que desconversou: "Eu estou fora disso." Ainda advertiu a repórter: "Você sabe o terreno em que está entrando, não sabe?" Ela teria respondido: "Você não pode esquecer que sou uma profissional." Ou seja, após a revelação do plano na reunião com os militares, seguiu-se por telefone uma ameaça velada pedindo sigilo. A repórter não respeitou o pedido e publicou o que lhe foi dado saber ("a partir do momento em que se falou em bombas, achou que deveria participar o fato", disse ela em seu depoimento de 28 de dezembro de 1987 ao Conselho de Justificação do Exército). A divulgação feita por Veja dos planos para a realização do atentado fez com que Bolsonaro fosse chamado na noite de domingo ao gabinete do subcomandante da ESAO, onde, às 23h22, prestou depoimento por escrito, negando sua participação na operação: "Considero uma fantasia o publicado (...) Não tenho a menor intenção de fazer o relatado na revista (...) nego ter participado de reunião na casa do cap Fábio com a repórter Kássia (sic) tenho pouca, mas alguma experiência sobre repórteres e sei o real objetivo dos mesmos, que é no meu ponto de vista vender matéria, doa a quem doer (...) Desconheço o plano Beco sem Saída." Na quarta-feira, o Ministro do Exército, general Leônidas, saindo de uma audiência com o presidente José Sarney no Palácio do Planalto, afirmou dar total crédito ao "desmentido dos dois oficiais a quem foram atribuídas as declarações". Negou o ocorrido e tachou as informações da revista de "ficção". Veja rebateu o Ministro, oferecendo provas adicionais que incriminavam os capitães: "Bolsonaro e Fabio mentiram peremptoriamente (...), por escrito e de próprio punho (...). A revista então expôs o encontro em minúcias: "Entre os dias 6 e 21 de outubro, quando lhe confirmou (a Cassia Maria) a existência da operação Beco sem Saída, Bolsonaro encontrou-se com a repórter quatro vezes e queixou-se do comando, do ministro, do presidente e da vida (...). No dia 21 de outubro, quando exemplificava para Cassia Maria o que seriam as explosões de 'apenas algumas espoletas', destinadas a demonstrar a fragilidade do comando do ministro Leônidas e da autoridade do presidente Sarney, Bolsonaro foi didático. Desenhou um croqui em que apareciam as tubulações do que seria a Adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água do Rio de Janeiro, e, junto a elas, colocou o rabisco de uma carga de dinamite detonável por intermédio de um mecanismo elétrico instalável num relógio." Após a publicação ter retrucado o Ministro e os capitães, Bolsonaro foi inquirido quatro vezes, dando início a um longo processo para apurar quem estaria mentindo - se o capitão ou se a revista. Confrontada com a negação, a repórter Cássia Maria levou ao Conselho de Justificação do Exército os croquis desenhados por Bolsonaro, ainda em seu poder, como prova das declarações dadas pelo capitão. Eu aqui discrimino os detalhes sobre as perícias das referidas provas, pois elas serão decisivas para a condenação, em um primeiro momento, e pela absolvição, ao final. Os croquis foram submetidos a exames grafológicos. Duas perícias foram inicialmente produzidas pelo próprio Exército e foram declaradas inconclusivas, ou seja, os peritos militares não tinham como afirmar que as letras existentes nos croquis realmente teriam promanado do punho de Jair ou não. Uma terceira perícia foi encomendada à Polícia Federal. Esta última afirmou que os croquis haviam sido desenhados por ele. Em seguida, houve uma revisão da primeira perícia, que recebeu elementos adicionais, chegando também à conclusão de que a caligrafia pertencia a Jair Messias Bolsonaro, o que comprovaria sua autoria dos croquis do atentado. Em uma movimentação audaciosa, Bolsonaro abriu mão do advogado e centrou sua argumentação de inocência baseado no conceito de in dubio pro reo. Alegou ele marotamente que duas perícias eram inconclusivas e que duas perícias identificaram como sendo pertencente a ele os esboços. Ou seja, 2x2. Empate. Mas era uma falácia, pois a primeira perícia havia sido retificada, e o laudo retificado apontou então Bolsonaro como autor. Sua enviezada argumentação, entretanto, multiplicava a segunda perícia por duas, onde uma era afirmativa e outra inconclusiva (portanto negativa), como se elas se auto-anulassem. Porém, apesar das cambalhotas retóricas do capitão, a matemática insistia em que, das três perícias, duas apontavam Bolsonaro como autor, e uma não dizia que sim, nem que não. Então, descartada a inconclusiva, o resultado das perícias eram dois laudos atestando a autoria dos croquis. O Conselho de Justificação, em sessão secreta, não se deixou confundir e decidiu por unanimidade considerar o capitão Jair Bolsonaro culpado das acusações. No texto de Luiz Maklouf, "O Conselho afirmou que Bolsonaro mentiu no depoimento da noite de 25 de outubro de 1987, mentiu durante todo o processo, na sindicância e no Conselho de Justificação, e 'revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua Instituição, sendo por aquela considerado como fonte." Veja comemorou em sua edição de 2 de março de 1988: "Leônidas conserta o erro - Ministro diz que Bolsonaro mentiu". Com a condenação unânime por parte do Conselho, o parecer foi remetido para o Superior Tribunal Militar. Mas lá a matemática foi literalmente outra, embora os números tivessem sido os mesmos. Em sua autodefesa, ao longo de 26 páginas Bolsonaro insistiu nos quatro laudos (que eram três, na verdade), com dois inconclusivos e dois afirmando que a caligrafia pertencia a ele (como já expliquei, só um era inconclusivo, de fato, pois o segundo inconclusivo havia sido retificado e se tornado o segundo conclusivo [complemento do laudo pericial no 58/87], ambos contra ele). Ainda que este detalhamento seja maçante, ele é vital para entendermos o cerne da questão, que, para mim, não são as bombas, e sim as técnicas de dissimulação empregadas por Bolsonaro para não se submeter às penalidades previstas em lei. E, no que tange a detalhamento, Maklouf foi insuperável: sua pesquisa atenta não dá margem a mal-entendidos. Por dezenas de páginas ele transcreve os áudios do processo no STM, os fác-similes, os votos de cada julgador, em um trabalho de pertinência histórica. Incluindo a defesa feita por Bolsonaro, que pediu a anulação do Conselho de Justificação por "gritante cerceamento do direito de defesa" e por ele não ter tido "ciência do conteúdo da prova pericial". Ao fim, o tribunal militar absolveu o capitão Jair Messias Bolsonaro por 9 votos a 4. Sintomaticamente, como num prenúncio da linha de defesa petista do início do terceiro milênio, quem foi verdadeiramente condenada foi a publicação que denunciou a trama, como finalizou o ministro relator do processo, Sérgio de Ary Pires: "Há tantas contradições, distorções e mentiras na duas reportagens, com o objetivo único de manter a credibilidade da revista, que causa estranheza que tais fatos não tenham sido percebidos." O relator discordou do veredito unâmime do Conselho, que teria considerado que "Bolsonaro mentiu durante todo o processo": "Este Tribunal discorda dessas conclusões do Conselho, (...) porque permanece duvidosa a autoria dos esboços (croquis)". Na transcrição do áudio de um outro voto absolvendo Bolsonaro, do tenente-brigadeiro do ar George Belham da Motta, Maklouf encontrou a pérola "peço permissão para demonstrar o que é essa revista Veja", onde o militar, seu assinante, denunciou a "má-fé" da publicação e encerrou: "Essa revista não vale o que come (...). Essa revista visa dar furo de reportagem e jogar uns contra os outros. Essa revista não é digna de respeito." O quarto voto a favor de Bolsonaro veio do almirante de esquadra Roberto Andersen Cavalcanti, que ignorou o capitão, ainda que o absolvesse, e condenou a Veja: "Mero sensacionalismo (...). É lamentável que se queira condenar um oficial baseado na veracidade de Veja." O general Erichsen da Fonseca seguiu o tom: "O confronto é entre Veja e o Exército, entre Veja e a estabilidade do governo." Esta última é, a propósito, uma frase sobre a revista que nenhum ocupante do governo brasileiro negaria entre 2002 e 2016, ainda que o governo fosse outro. Mas ninguém superou o relator, que se esmerou no seu discurso final: "Eu não guardo uma reputação condigna com esses homens de Veja. Já ouvi vários comentários sobre a procedência desses homens, sobre os seus objetivos, e na verdade não tenho uma opinião formada. Já me disseram que são judeus internacionais argentinos em busca de dinheiro. Outros dizem que são comunistas internacionais a serviço da subversão, outros dizem que são simples anarquistas. (...) Há dúvidas quanto à idoneidade dessa gente." Embalado por esta saborosa referência tão Protocolos dos Sábios de Sião (a famosa peça forjada na Rússia czarista um século atrás), agradeço o trabalho impecável de Luiz Maklouf, nos trazendo, três décadas depois de acontecido, os áudios e à íntegra do processo. Confesso que vi nesta antiga argumentação de Bolsonaro uma linha muito semelhante às declarações dele e dos filhos sobre o Fabrício Queiroz. O próprio sumiço do ex-assessor do filho lembra o sumiço de Rogéria Bolsonaro do grupo de mulheres que visitou a redação de Veja (em outra passagem divertida do texto de Maklouf, uma eventual presença da então esposa do capitão à sucursal foi veementemente negada, e seu reconhecimento praticamente impossibilitado, pois ela teria se transfigurado - cabelo, roupas, maquiagem - entre o dia da não comprovada ida à publicação ao dia da sessão em que compareceu no Conselho de Justificação). Toda esta cadeia de fatos pertence ao passado e seria totalmente irrelevante se o oficial inocentado não tivesse sido eleito presidente do País. Apenas três dos quinze julgadores de Bolsonaro ainda estão vivos (doze estão mortos e dois estão doentes, sem condição de dar entrevistas, segundo o autor). E o único dos componentes do julgamento do STM ainda apto a falar, o ministro togado Paulo César Cataldo, de 87 anos, respondeu negativamente à pergunta direta de Maklouf: "Não houve ali um combinado para livrar o capitão Bolsonaro?" Cataldo negou e se disse com a consciência tranquila. Reproduzo o autor: "No fim da nossa conversa, o ex-ministro comentou ser uma ironia do destino que aquele capitão julgado e absolvido por uma maioria expressiva tenha virado presidente da República'. 'O senhor gostou?', perguntei. 'Boa tarde', ele respondeu." O bem amarrado livro-reportagem de Luiz Maklouf traz insights úteis para os tempos atuais e achei valioso dedicar um tempo a contextualizá-lo, para aqueles que não dispuserem de tempo ou suficiente interesse para se dedicarem à leitura desta pesquisa que reputo de enorme relevância. Pelo retrospecto profissional de Luiz Maklouf Carvalho (ex-editor do jornal Resistência e repórter dos jornais Movimento, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e das revistas Piauí e Época), e também pela escolha do tema, sou levado a crer que o autor não comunga das mesmas crenças que o atual ocupante do poder - o que não diminui em nada a qualidade e credibilidade do texto e da pesquisa. Maklouf entrega uma apuração jornalística de primeira linha. Seria ótimo para o país se tivéssemos mais produtos investigativos desta monta. Um exemplo é o excelente "Celso Daniel", de Silvio Navarro (http://bit.ly/CelsoDaniel) ou o "Indefensável" (http://bit.ly/OGoleiroIndefensável), de Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho, ambos resenhados aqui no blog. Atente que não comparo os crimes apurados. São totalmente distintos os dois crimes bárbaros quando confrontados ao caso "Beco Sem Saída", que se revelou mais uma fanfarronada que qualquer outra coisa. Mas que conta muito, entretanto, sobre o atual mandatário do país - e, como cidadão, o país me interessa. Não só as grandes questões, que se impõem por seu tamanho, mas mesmo passagens menores da política têm significado relevante - afinal, por exemplo, qual foi o senador trapaceiro que votou duas vezes em Renan Calheiros na eleição de Davi Alcolumbre? Quem irá apurar? A casa ali é tão misteriosa e se move tão nas sombras que nem o próprio quis saber.

Editora Todavia, 253 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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