"O Levante de 44", por Norman Davies

quinta-feira, agosto 01, 2019 Sidney Puterman

Norman Davies escarafuncha, nas mais de 800 páginas da sua obra monumental, a revolta de uma cidade contra um império. Uma briga de um chiuaua contra um urso. Pelo prisma bíblico, o clássico confronto de David contra Golias. Tipo de não ter como vencer. Atente que a descomunal desproporção de forças não era o único obstáculo - a situação era mais encardida. Tinha uma armadilha, alguém que prometeu (ou fez que) e não cumpriu. O sujeito oculto desta estória era um outro império, mezzo oriental, mezzo ocidental, pretensamente aliado, que injetou confiança nas veias mirradas do franzino combatente. Instigou o pobre, digamos assim, liliputiano. Insinuou que daria cobertura, mas era só o dom de iludir, como na canção de Caetano. Este segundo gigante, malandro, fingiu que ia, mas não foi, na prática sabotando o pequenino David. Deixou o moleque de calças arriadas e virado para o lado errado. Um péssimo negócio. Fosse uma fábula, poderíamos intitulá-la "Os Dois Golias contra Um Anão". Mas a edição venderia pouco, seria uma fábula amoral, perversa, porque o resultado final foi o sangrento estraçalhamento do anão. Sem uma gota de piedade. Fim da estória. Metáforas à parte, se podemos gracejar reduzindo esta passagem, das mais complexas da história recente, a um punhado de frases jocosas, seu verdadeiro desdobramento é uma mancha que envergonha a vitória aliada. Um cadáver no armário - ou, melhor, um milhão deles. Por mais deplorável que seja, contudo, a circunstância é valiosa para quem demanda compreender a história contemporânea. Reafirma que entre países não existem escrúpulos. Para quem não sabe (e eu durante muitos anos não soube), Varsóvia, já no fim da Segunda Guerra Mundial, após cinco humilhantes anos sob a tirania do ocupante nazista, se levantou contra o invasor. É um cisco no retrospecto da guerra, mas um tsunami na história da Polônia. Rebeldes precariamente armados desafiaram a máquina de guerra nazista. E, surpreendentemente, encontraram brechas na defesa alemã. Usando táticas de guerrilha urbana, atacavam onde os nazistas não esperavam e em seguida se evadiam. Emboscavam comboios maiores. Chegaram a provocar milhares de baixas. Alarmado, o comando alemão em Varsóvia convocou as forças especiais da SS. De pronto, nem elas conseguiram estancar a sangria. Tomou tempo. Se valeram da covarde estratégia de proteger suas manobras por meio de um escudo humano. Pasme: um cinturão formado por civis indefesos, que avançava na frente dos tanques alemães. Uma barreira viva de idosos, mulheres e crianças, para que os rebeldes poloneses fossem forçados a atirar em seu próprio povo, se quisessem atingir os soldados alemães. Durante oito longas semanas o combate tomou as ruas, porões e esgotos da capital polonesa. Mas era uma guerra impossível de ser vencida, sequer continuada. Após sessenta dias de bombardeios, não havia mais prédios ou porões. Os ataques aéreos nazistas esfarelaram o que restava da cidade. O Armia Krajowa - o Exército da Pátria, civis e rebeldes que lutavam com armas e uniformes roubados dos alemães -, se rendeu. A bandeira vermelha e branca com a kotwica (pronuncia-se kotvitsa) sobreposta, símbolo do AK, não foi mais desfraldada. Seus integrantes, os caídos e os sobreviventes, virariam lenda, se lhes tivesse sido permitido um lugar na História. Após o fim da guerra, este direito lhes foi vetado pelos russos. A verdade se tornou maldita. A narrativa do levante heroico se tornou um dogma. Qualquer relato que dignificasse a resistência era uma versão proibida. O país foi dizimado, moído e espezinhado e sequer pôde honrar seus heróis - sob pena de que quem o fizesse ganhar uma passagem só de ida para a Sibéria. Vou explicar porquê. Em meados de 44, os poloneses estavam esperançosos na libertação de Varsóvia pelo exército soviético. Não sem razão. É que, após também terem sido invadidos pelos nazistas, os russos vinham selvagemente atropelando os alemães. Desde o cerco de Stalingrado, os batalhões germânicos vinham sendo escorraçados das suas posições originais. Esgotados, famintos, os que não se rendiam batiam em retirada, mesmo contra as ordens de Hitler, para quem, parece, soldado bom era soldado morto. Os que não concordavam com o chiste, fugiam. Com isso, os russos ganhavam terreno, semana a semana. E, na velocidade em que vinham fazendo a Wehrmacht recuar, já se dava por favas contadas a entrada do Exército Vermelho em Varsóvia. Era uma grande notícia para os polacos - mas havia um porém. Russos e poloneses não se bicavam. Apenas um quarto de século antes, no início dos anos 20, tinham estado em guerra um contra o outro. Na eclosão da Segunda Guerra, em 1939, o território polonês foi partilhado entre russos e alemães, em um acordo que surpreendeu o mundo. Comunistas dos quatro cantos do planeta, que até a véspera maldiziam Hitler e incensavam Stalin, ficaram com o discurso entalado na garganta (passada a surpresa, logo arrumaram um catálogo de justificativas para o acerto, provando que o discurso ideológico sempre se adapta aos fatos). Vítima impotente, a Polônia foi dividida ao meio e cada fatia ficou em poder de um seu inimigo histórico. A sociedade do mal só terminou quando Stalin foi traído por Hitler. Também aqui abro um parênteses. O ditador georgiano foi acordado de madrugada com a notícia de que os alemães tinham invadido a Rússia. Incrédulo, mandou matar o mensageiro. Chegou um outro filípedes cossaco ao QG, com a mesma notícia. Atônito, o magnata mandou matar também o segundo mensageiro. A partir do terceiro, os mensageiros foram poupados. Em pânico, Stalin se trancou no seu gabinete por 24 horas, sem coragem de abrir a porta (assim diz a lenda). A Rússia demorou a se organizar. Seus combatentes mal armados morriam como moscas. O Exército Vermelho somente teve poder de fogo para combater os boches em pé de igualdade quando os EUA entraram na guerra e iniciaram uma bilionária operação de delivery de equipamento bélico. Lastreado pelo fornecimento luxuoso e ininterrupto, Stalin fez da população soviética bucha de canhão. Milhões de russos morreram em resistência kamikaze aos nazistas. Graças ao estoicismo soviético, ao rico suporte aliado e ao general inverno, o território russo começou a ser recuperado. Inclemente, Stalin - atenção, isto não é uma piada - matava os russos que tinham sobrevivido à ocupação. Na sua lógica, se o inimigo não os matou, só poderiam ser traidores. Em todo o tempo o raciocínio de Stalin foi matemático: havia ainda muitos russos para morrer e os alemães estavam acabando. O Exército Vermelho entrou na Polônia em perseguição às forças alemãs, que, acuadas, recuavam em direção à terra pátria. Varsóvia, porém, estava no caminho. E o polonês não queria a substituição de um invasor por outro. Por isso, organizou um levante, contra os ocupantes teutões, para fazer coincidir a batalha pela cidade com a chegada dos russos. Estariam no poder da própria capital, quando o Exército Vermelho cruzasse o Vístula na caça aos alemães. Ainda que em número e condições insignificantes para ousar combater o ainda forte exército nazista, civis e rebeldes poloneses atacaram. Visavam manter dois ou três dias de combate, tempo suficiente para os russos chegarem e mandarem tiro para cima dos alemães remanescentes. Só que isso não aconteceu. O Exército Vermelho parou do outro lado do rio. E ficou de camarote assistindo como o verdugo alemão iria reagir ao esquálido pigmeu polaco, que ousou chutar seu traseiro. O confronto desproporcional, previsto para durar um par de dias, durou um par de meses, graças à coragem e à habilidade do Exército da Pátria polonês. Mas que acabou tendo o fim lógico: o aniquilamento total de Varsóvia e da resistência polonesa. Só depois dos alemães exterminarem os poloneses rebeldes é que os russos cruzaram o rio e colocaram os alemães para correr. Visto sob este ângulo, parece um drama corriqueiro de rivais seculares. Só que a realidade foi muito mais cruel do que uma simplificação ginasiana. Sabe aquele tal dogma que mencionei há pouco? É que, passada a guerra, aconteceu o que os poloneses temiam. Os russos se apropriaram da Polônia e instituíram um governo títere, obediente a Moscou. A verdadeira estória do que se passou no levante - a fria e criminosa inércia russa - foi ocultada. Os russos inverteram os pólos da verdade histórica e determinaram que os poloneses que lutaram contra os alemães eram traidores da nação. Prenderam e executaram os oficiais sobreviventes. E durante décadas uma corajosa epopeia de resistência virou uma vergonhosa traição, na narrativa oficial. É esta estória que Davies trata de por em pratos limpos. E o faz magnificamente bem. Não alivia para o governo polonês no exílio, ainda que a Polônia seja sempre reverenciada e tratada pelo título de Primeira Aliada. Aborda de frente a grande questão histórica (lá para eles, europeus; aqui tudo isso é sumamente desconhecido): as forças rebeldes polonesas se precipitaram? haveria pretensões políticas de seus comandantes já visando o cenário pós-guerra? foi alinhavada corretamente a imprescindível costura diplomática que uniria os governantes exilados à liderança russa? Estas perguntas têm o dedo apontado para o comando polonês aquartelado em Londres. Mas, seguindo a cronologia da guerra, são premissas invalidadas pela movimentação russa nas coxias, pelo estímulo ostensivo dado pelas rádios soviéticas (governamentais, como tudo o mais por lá) na segunda quinzena de julho de 1944, conclamando o povo polonês a se sublevar contra o ocupante teutão. Evidencia que a decisão polonesa não poderia ter sido outra, senão confiar no apoio russo, que os convocava à luta. E os aliados ocidentais, Inglaterra e EUA? Como permitiram que a Primeira Aliada fosse trucidada? Por que não exigiram que o Exército Vermelho levantasse acampamento e cruzasse o rio, já que os alemães que eles vinham perseguindo e matando por quinhentos quilômetros estavam ali, a duzentos metros de distância? A vexaminosa resposta é que os Estados Unidos não estavam nem aí para a desimportante Polônia. Os ianques submissamente comiam na mão de Stalin, apesar dos esforços de Churchill em honrar as garantias que os Aliados haviam dado ao povo polonês. O gigantesco sacrifício em vidas humanas dos soviéticos concedeu ao manda-chuva russo todas as prerrogativas. Aos olhos dos norte-americanos, os russos mereciam ser recompensados. Por que não com aquelas vastas terras do Leste europeu? Os ingleses, dependentes tanto de Roosevelt como de Stalin, tentaram timidamente influir para salvar a Polônia. Em vão. Os russos ameaçaram derrubar aviões britânicos que tentassem pousar em solo russo, para daí partirem para dar suporte aéreo aos combatentes do AK. Exaurida, sem ajuda, a órfã nação polonesa tombou. Seus despojos foram reclamados pela União Soviética. Cada pormenor desse teatro de operações paralelo na Segunda Guerra Mundial é esmiuçado e debatido por Davies. Para quem se interessa pelo conflito, imperdível. O autor é brilhante na montagem deste quebra-cabeças decisivo para os anos do porvir. O mundo ganharia uma nova feição. Aquela Polônia que lutou a guerra estava morta. Finita. Porém, diferentemente da maioria dos relatos, que encerram com o término do evento principal, nesta obra o autor vai além. Segue a narrativa do Levante de Varsóvia nas décadas seguintes. Descreve como a sua história foi negada, apagada, condenada. Como seus sobreviventes foram aprisionados e mortos. Relata o longo vácuo até o momento da tímida aceitação da existência honrosa do AK, após a morte de Stalin. Acompanha seu resgate. Como, depois de tantos anos, os que morreram na luta pela libertação de Varsóvia tiveram seus nomes restaurados. O que até então era listado como criminoso se tornou épico. Enfim, era permitida ser contada a estória da cidade que enfrentou a temível máquina de guerra da Alemanha. Norman exalta o primeiro museu a celebrar a resistência polonesa ao invasor, inaugurado em 2004, sessenta anos depois do evento inesquecível. Hoje o Uprising Museum de Varsóvia é um dos mais comoventes museus da Europa. Minha foto nesta montagem foi tirada lá. Um gigantesco galpão imerso em sombras. Hoje o Levante é parte indelével da história da nação. E, quando eu falo hoje, é hoje mesmo. Hoje é o dia em que se completam 75 anos do Levante de Varsóvia. 1o de agosto de 1944 foi o dia em que o primeiro explosivo foi jogado contra um tanque alemão, e centenas de garotos envergando um simulacro de uniforme, muitas vezes apenas uma faixa vermelha no braço, dispararam tiros de garrucha contra nazistas entrincheirados em ninhos de metralhadora. Há quem até hoje chame de suicídio o Levante de Varsóvia. Pode ser. Me vem à mente a bela cena final do filme Butch Cassidy and Sundance Kid, quando Paul Newman e Robert Redford, totalmente cercados, saem detrás do cubículo em que estavam escondidos, armas na mão, contra duas centenas de mercenários que os tinham sob mira. Neste momento de ação, a imagem congela. O mundo para. Na minha recordação de guri, sobe a música, descem os letreiros. O filme termina. Toda a coragem e irreverência ficam eternizadas neste penúltimo segundo. O fuzilamento que se seguiria, inevitável, é um grito distante de "fuego!". Na eternidade do filme, os combatentes permanecem de pé. Na película, mesmo perdidos, os heróis jamais morrerão. Já as dezenas de milhares de rebeldes poloneses mortos não tiveram esta sorte. Morreram mesmo. Mas, após a leitura do soberbo O Levante de 44, ao fim de tantos dias de intensa convivência com o seu voluntário encurralamento, a imagem do seu heroísmo permanece congelada na minha memória. E este é um mérito que não pode ser negado à Norman Davies: o resgate de uma lenda. A epopeia de um povo que não se curvou. Bravo, professor. Que resgate. Ou, em uma outra palavra mais simples e definitiva - justiça. Antes três quartos de século depois do que nunca.

Editora Record, 862 páginas

P.S.: O lançamento é de 2006 e não foi reeditado. Consegui o livro num sebo, via site estantevirtual.com.br, pelo qual paguei R$ 30,00 mais R$ 19,00 de frete. O investimento do ano.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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