"O diário de Rutka", por Rutka Laskier

quarta-feira, dezembro 21, 2016 Sidney Puterman

Um livro de bolso, com menos de 100 páginas, e ainda assim dividido em duas magníficas metades. A primeira é o diário, por 65 anos oculto, da menina Rutka, judia polonesa de 14 anos que foi mandada para o campo de concentração de Auschwitz e lá assassinada. A segunda é o posfácio assinado pelo escritor e ativista polonês Marek Halter, sintetizando a história dos judeus da Polônia. Um pequeno tesouro que me caiu às mãos, por conta da sugestão do meu amigo Adilson, que generosamente me contou de uma feira de livros no calçadão do Cenip. A história de Rutka tem paralelo com a de Anne Frank (cuja casa visitei, numa noite fria de inverno, em Amsterdam). Idades semelhantes, sonhos semelhantes, idênticos finais - ambas mortas pelo III Reich. O diário de Rutka revela uma garota precocemente madura ("tenho humor oscilante, e há ocasiões em que fico numa tal melancolia que só abro a boca para machucar alguém"). Sabia o que viria - o que desmente a versão de que os judeus confinados nos guetos desconheciam o fim que os esperava. Seu diário, escondido sob os degraus da escada da casa em que morava, permaneceu sob a guarda de Stanislawa Sapinska por seis décadas e meia. Somente em 2006, aos 82 anos, Stanislawa deu a conhecer a relíquia que guardara, ao entregá-lo ao museu municipal, que o confiou a um pesquisador da história dos judeus de Bedzin, o qual, por sua vez, foi encontrar em Israel a meia-irmã de Rutka, Zahava Laskier Scherz (lá nascida, seis anos após a morte de Rutka), que o publicou. Já o posfácio parte de uma terra polonesa expurgada de judeus, no fim dos anos 40, e remonta aos polanes, tribo eslava que há 1.000 anos deu origem ao reino da Polônia. Halter expõe a contribuição mútua de eslavos e judeus na construção da pátria ao longo de dez séculos. Seu prisma é sanguíneo: não aceita a forma como os judeus foram tratados pelos poloneses e debocha da estátua em Varsóvia, erguida em homenagem ao "Herói Judeu Desconhecido" ("os judeus só são considerados poloneses quando mortos, como encarnação do sofrimento nacional"). Eu, aqui, não sou isento. Halter nasceu em Varsóvia, em 1936, e sua família conseguiu escapar do gueto em 1941 e emigrar para o Uzbequistão. Meu pai Samuel nasceu em Varsóvia, em 1926, e meu avô Izrael abandonou a Polônia em 1930 e emigrou com a esposa Cirla e o filho de 4 anos para o Brasil. Como ativista, Marek proclama sua inconformação com a passividade do povo judeu, que "se deixou covardemente assassinar". Procura razões e as encontra, mas eu, se não as nego, também não as professo. Idêntica inconformação sempre me rodou a cabeça, e, quando Halter escreve "compreender, isto era tudo que eu queria", comungo da mesma obsessão, ainda que este mundo do qual ele e todos os demais eram parte integrante fosse apenas uma referência remota para mim. De todo modo, tanto o diário como o posfácio me tocaram. Curioso é que o pai de Rutka e Zahava, Yaacov Laskier, é personagem deste e também de um outro livro sobre os crimes nazistas, "Os Falsários", uma célula clandestina criada pelos alemães, com trabalhadores judeus especializados, para produzir dinheiro falso. Yaacov, apartado da filha, que nunca mais veria, sobreviveu ao Holocausto, emigrou para Eretz Izrael, onde criou nova família, e morreu, em 1986, sem jamais saber do diário. Zahava, filha única deste seu segundo casamento, trouxe ao mundo a história da sua meia-irmã jamais conhecida. O mundo gira, as gerações se sucedem e o ser humano aprende muito, muito devagar.

Editora Rocco, 83 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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