"Biography of Mahommah G. Baquaqua", por Samuel Moore e pelo próprio

quarta-feira, dezembro 14, 2016 Sidney Puterman

Há um tempo incerto, folheando o jornal, li uma estória antiga, sobre um negro capturado na África e desembarcado em Pernambuco. Escravo, foi padeiro no Recife e depois vendido para o Rio. Lá, virou propriedade de um dono de navio, pulou do barco em Nova York e publicou suas desventuras. Me interessou. O texto dizia também ser este o único livro escrito por um escravo brasileiro nos tempos pré-abolição. Contava mais: que a obra ia ser relançada, depois de muitas décadas, nos Estados Unidos. Caramba, falei com meus botões. Que estória. Já me imaginava lendo a bio e navegando pelo tempo. Não era pouca coisa: eu iria entrar na barriga do sistema escravocrata brasileiro, por meio do testemunho cru de uma de suas vítimas, sem intermediários. Conteúdo desta relevância, lógico que seria relançado também no Brasil. Com isto em mente, por quase um ano fucei nos sites de livrarias, à cata da edição em português. Deu em nada. Descobri pior: nunca houve aqui uma versão do livro. Ou seja, embora a publicação original na América date de 1854, meros 162 anos depois ainda não tínhamos uma edição em português. Decepcionante, não? Curioso que sou, não tive outro jeito senão encomendar na Amazon a versão em inglês. Paguei R$ 68,93 e achei cara. Ainda mais quando desembrulhei o livro: só 101 páginas, e, para piorar, com diagramação larga e letras grandes. Esperava uma epopeia massuda e teria que me contentar com um livretinho. Encafifei e até pus o livro de lado. Quando passou a birra, li. E, bem, vou te contar: o livro traz menos do que eu esperava. Gira muito em torno do já sabido. Parte substancial da obra fala da África natal, descrevendo os aspectos sócio-político-culturais do reino de Zoogoo (hoje Djougou, Benim), origem do autor. Fala muito da vida de Baquaqua na África. Deve ter tido maior relevância à época, meados do século XIX, pelo desconhecimento sobre culturas distantes e primitivas. Hoje, bem menos. O que importa é que só na metade do livro a estória tem início e o futuro escravo é capturado - tema que retomarei mais à frente -, tendo passado todo o tempo até então descrevendo os costumes locais. E apenas no terço final da obra o depoente embarca para o Brasil, onde, por exíguos 10% das páginas, ele permanece escravo no país (lembrando que 10% de um livro de 100 páginas são só 5 folhazinhas). Dá para perceber que eu fiquei longe de estar satisfeito. Mas voltemos ao livro. Embora não goste e raramente o faça, esse texto vai ter spoiler, porque sem ele não vou chegar onde quero. Vamos à narrativa. Mahommah era mulçulmano e desfrutava de uma vida boa na sua terra natal. O irmão, feiticeiro, tinha as costas quentes por assessorar o chefe da tribo e ele idem. Lá na terra dele a escravidão era comum. Toda tribo tinha os seus próprios escravos, o que ele deplora (nas suas próprias palavras, "the greatest source of misery to Africa is her system of slavery, which is carried to a fearful extent" [sic]). Em um viagem a um outro reino africano, ele acaba capturado e feito escravo de uma tribo local. Mais à frente ele é vendido para um navio negreiro. Ao chegar no Brasil, em Pernambuco, ele é comprado por um padeiro, para o qual, com o tempo, passa a apregoar os pães e se torna um eficaz vendedor. Mas Mahommah era voluntarioso e deu de beber. Por conta disso, ele e seu proprietário se atritam frequentemente. Ele foge, entra no açoite e é vendido, dessa vez para um dono de navio, que comercia de um porto ao outro. A princípio tudo segue melhor do que no "trabalho" anterior, mas logo ele se desentende e sofre novos castigos. Quando o navio leva uma carga para Nova York, ele aproveita e foge, sabedor que lá não havia escravidão - mas desconhecia que havia lei e tribunais. É recapturado, julgado e foge enquanto aguarda a sentença. Uma boa alma o protege e acaba por encaminhá-lo ao Haiti, terra de negros livres (ele tinha a opção também de seguir para a Inglaterra). Rebelde, lá também ele teve percalços com os negros do lugar. Acaba acoitado por um pastor protestante e sua esposa. Dali segue com ela para Nova York, novamente, onde passa três anos, sendo lá alfabetizado e convertido ao cristianismo. Ponto final. Fim da estória. Aí fui verificar se já havia sido lançada a obra em português. Diferentemente de dois anos atrás, achei muita coisa brasileira sobre Baquaqua, até mesmo personagem infantil e um site dedicado ao africano, mas não a tradução do livro (anunciada, mas não publicada). No que li, sobraram estereótipos e informação distorcida. Por exemplo, há sites que afirmam ter Mahommah se formado em uma universidade - quando foi tão somente alfabetizado (se constata na Wikipédia que o McGrawville College mencionado na biografia não era uma universidade, e sim uma louvabilíssima instituição dedicada à alfabetização de negros, logo depois posta abaixo pela sociedade WASP). A impressão que dá é que se apropriaram de alguns lugares-comuns da estória de Mahommah para erigir um semi-Zumbi dos Palmares habilitado no inglês. Torná-lo um ídolo, como o quilombola, provavelmente para proselitismo barato. O que houve de especial com Baquaqua, na verdade, foram menos suas qualidades e mais sua trajetória peculiar. Foi um sobrevivente improvável. Mas quem lê sua biografia não encontra nenhum herói - rótulo que, parece, resolveram pregar nele.

Pomeroy & Co., 101 pgs

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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