"À sombra das torres ausentes", por Art Spiegelman

sexta-feira, maio 01, 2015 Sidney Puterman

Autor da única história em quadrinhos a ganhar um Prêmio Pulitzer - "Maus", cuja resenha você encontra nesse blog aqui mesmo, pertinho de você -, Spiegelman oferece muito do que o cartum faz de forma insuperável: nos põe frente à frente com a perplexidade. Nenhuma das formas de manifestação da arte moderna se presta tanto a esse degradê de estupefação íntima como são capazes os quadrinhos. Talvez por serem uma fusão da nossa capacidade primária de representação aliada a um raciocínio transbordante de sutilezas (e cimentando o discurso com blocos fragmentados, sem o menor compromisso com a dialética convencional), as HQs se comuniquem conosco tão intuitivamente. Há quem diga que elas são sobretudo leitura juvenil; parecem, a princípio, pelo seu aspecto lúdico; mas é uma ingênua simplificação pensar assim. Os quadrinhos nasceram adultos e, pelo seu poder imagético, foram afanados pela garotada. Seus artistas sempre foram expressão de síntese e irreverência. Sejam os mais despretenciosos ou os mais papo-cabeça. Art Spiegelman é um dos ícones desse último e, ao levar pra casa um Pulitzer, chegou aonde nenhum outro cartunista havia sonhado (provavelmente foi justamente o trabalho dos demais grandes gênios dos quadrinhos que pavimentou seu caminho); atingido esse "ápice" - e com seus demônios internos domados -, resolveu se restringir ao jornalismo. Fim de papo? Nada disso. Após ter decidido pendurar o lápis, Spiegelman foi colhido por um 11 de setembro que, com todo o planeta disponível, aconteceu exatamente no seu bairro. Vizinho das Torrês Gêmeas, sua filha estudava em uma escola bem no pé de uma delas justo na hora da explosão. Ela, Nadja, foi salva, mas o mundo, dele, Art, foi literalmente pelos ares. A Nova York e os Estados Unidos onde sempre vivera já não eram mais os mesmos e se tornaram o epicentro do pânico. Ansioso, apoplético, inconformado, retornou à antiga forma de catarse: o desenho. Nessa sua última obra, em seu estilo underground, derrotista e erudito, Spiegelman questiona a política norte-americana e teme o futuro, que prevê (histericamente) catastrófico. Os leitores de Art que se manifestem - sem pressa (esse pessoal criado no caldo da contracultura oscila sempre entre o desbunde e a depressão). Uma outra vantagem - irresistível - é o capítulo-bônus "O Suplemento de Quadrinhos", que toma quase metade do livraço (formato 35cm x 24cm, papel cartonado duplo e aplicação de verniz UV em 100% das páginas). Aí Spiegelman nos conta o surgimento dos quadrinhos nos jornais, numa história que remonta aos estertores do século XIX, quando Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst se enfrentavam, à frente de seus respectivo periódicos, numa guerra pela tiragem onde de tudo foi tentado, até mesmo contar histórias - políticas, cômicas ou ambas - em tiras de quadrinhos. Além de revelar como tudo se deu na primeira década das HQs, sete pranchas reproduzem as páginas dos suplementos da época. Imperdível. E quando, ao final, se percebe que cada página da HQ feita por Spiegelman remetia às HQs de 100 anos atrás, com os mesmos personagens - incluindo uma HQ experimental maluca onde duas histórias aconteciam simultaneamente, uma de cabeça pra baixo e outra de cabeça pra cima, em sentido inverso ("Os altos e baixos da Senhorita Lovekins e do velho Muffaroo") -, se confirma o quanto de arte revolucionária o formato HQ nos proporciona desde o seu surgimento. Não é de estranhar que a Sétima Arte - o cinema - até hoje continue bebendo sofregamente na fonte generosa e inventiva das HQs. Os quadrinhos são mesmo demais.

Companhia das Letras, 42 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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