"O ouvidor do Brasil", por Ruy Castro

segunda-feira, outubro 14, 2024 Sidney Puterman


O livro reúne 99 crônicas escritas por Ruy Castro sobre Antônio Carlos Jobim. Noventa delas já foram publicadas em jornal - ele só as releu e adaptou. Outras nove ele escreveu especialmente para o livro.

Entre as noventa e nove, só pérolas. A fina flor da música. Não só a brasileira, não só a tocada pelos músicos. Porque, ao fim das contas, quem também fazia música de verdade eram os produtores. Eles é quem concebiam, investiam e lançavam os discos (e ficavam donos dos lucros, também).

A crônica sessenta e oito conta a história do maior disco de bossa nova produzido nos EUA - o icônico Getz/Gilberto. Quem os reuniu foi Creed Taylor, um americano de 33 anos que lançou diversos selos de jazz. O LP, além do cantor e do saxofonista título, tinha Tom Jobim ao piano (e autor de seis das oito músicas do álbum) e Astrud Gilberto, mulher do João. 

A propósito, ninguém sabia que madame Gilberto cantava. Por sugestão do marido, aproveitaram que ela tava ali de bobeira e a puseram para cantar "Girl from Ipanema". O resto é história. Se tornou uma das gravações mais tocadas de todos os tempos. Com o sucesso e sem João, Astrud se radicou nos EUA.

Mais rico que o produtor, diga-se de passagem, ficou o letrista da versão em inglês, o desconhecido (para nós) Norman Gimbel. Ruy nos fala dele na crônica setenta. Cada vez que a canção do Tom e do Vinícius foi tocada ou reimpressa mundo afora, ele faturava. Se apegou tanto à música, conta Castro, que a registrou como sua propriedade exclusiva, quando Tom morreu.

Tom ficou rico assim mesmo. Também, pudera. É o mais bem-sucedido compositor que o Brasil já produziu (ainda que sem o boom planetário do Michel Teló... by the way, alguém sabe dele?). Se era visto pela mídia tupiniquim como persona non grata (!) na virada dos 60 pros 70, nos anos 80 Tom Jobim se tornou unanimidade no país. Até garoto-propaganda da Brahma o ex-filho ingrato virou.

Na crônica trinta e quatro, Ruy nos conta que, de tão requisitado para opinar, ouvir, comparecer etc, Tom teria sussurrado a um amigo: "Olha, estou cobrando 100 mil para fazer um show. E 200 mil para assistir". O autor esclarece que não era soberba. E sim a incrível sensibilidade do ouvido do Tom. 

O maestro era capaz de identificar o pio de mais de uma centena de pássaros. A nona crônica nos revela que Tom piava (usando pios artesanais, de ipê ou bambu, fabricados em Cachoeiro do Itapemirim). E metia os pios na música. No álbum "Urubu", de 1975, a faixa "O boto" é, diz Castro, "uma sinfonia de pios". A relação era recíproca. Afirma Ruy que "os tico-ticos, jerebas e patos-pretos o entendiam". Não duvido nada.

"O ouvidor do Brasil" é um livro delicioso, uma pequena obra-prima. Quisera eu fossem duzentas, trezentas, mil estórias escritas pelo Ruy que falassem do Tom. Mas são só noventa e nove. Ops, cem.

É que uma última, a centésima, fui eu mesmo que escrevi. São os últimos parágrafos deste post. Você pode achar uma heresia, eu me meter entre dois monstros. Um da música, outro do texto. Você está certo. Mas a minha crônica é exatamente sobre isso. Eu no meio dos monstros.

Como música de fundo, "Tema de amor de Gabriela". 

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Maestro, recebeu a incumbência de fazer a trilha-sonora do filme "Gabriela". Aquele com Marcello Mastroianni no papel do Nacib. Você já deve ter visto - e ouvido. Mas antes que você ou qualquer outro mortal no planeta tivesse a chance de escutar, Tom saiu pra jantar e pôs no bolso do paletó uma fita K-7. Nela estava a versão caseira na qual gravara, ao piano, a canção principal.

Era uma noite qualquer no início dos anos 80 no restaurante Plataforma, na fronteira entre Gávea e Leblon. O térreo era uma churrascaria sem charme e barulhenta. Na parte superior rolava o espetáculo de mulatas, típico engana-turista. Estávamos, Tom, eu e muitos outros, sentados à mesa, bebendo, depois de um lauto jantar que começara com o inigualável pão de queijo da casa (que eu, um moleque peladeiro esfomeado e duro, sempre comia às dezenas) e uma sucessão de lâminas rosadas de maminha, úmidas, fatiadas em bandejas de inox.

O maître era o Garrincha, uma versão miniatura da efígie do maior ponta-direita de todos os tempos. O dono era o Alberico Campana (que também ganhou uma crônica no livro), um italiano que chegou ao Rio em 1952 e se apaixonou por Dolores Duran - de quem se tornou amigo, sem jamais se declarar à baixinha.

O papo era descontraído, baboseiras aleatórias. Eu mal abria a boca, a não ser para comer (nisso eu superava todos os outros, com sobras). Estes jantares etílicos, regados a pipocas (como Tom pedia os chopes, em taças pequenas), tendiam a ser um Clube do Bolinha - mas vez por outra rolava uma Kate Lyra ou uma Lucinha Lins.

Eu adorava. Não era para menos. Como bem disse o Ruy, na sua crônica noventa e seis, "quem, vivo ou morto, não gostaria de conversar com o Tom?"

Nessa noite, Tom, já alguns graus acima, nos intimou a subir para o salão de shows. As mulatas já tinham ido embora (pena) e a passarela estava às escuras. O maestro mandou colocar no sistema de som da casa a fita com a trilha original. Em seguida, subiu, ele próprio, na pista suspensa, onde regeu a música e dançou, sozinho, para delírio da nossa plateia seleta, no lugar das passistas.

Tom rodopiava e fazia coro com a fita: "Gabrié-é-la... Gabrié-é-la..."

Há quem diga que ele estava bêbado e quase caiu. Calúnia. Finda a avant-premiére, descemos todos e fomos para a rua. Não tínhamos lá muita intimidade. Eu não era nem músico, nem artista, nem sequer contemporâneo. Eu era um intruso, amigo dos amigos dele. Mas dava para ele perceber meu fascínio de garoto, embasbacado, assistindo, em sessão privada, a canja da década.

Na calçada, já duas e tal da matina, Tom, ao se despedir de mim, me sapecou um beijo na bochecha.

Um dia eu tinha que contar. Pois é. Perdão, Mestre, mas "O beijo" é a centésima crônica. 

Companhia das Letras, 229 páginas  |  1a edição, 2024

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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