"Cinzas e diamantes", por Jerzy Andrzejewski

sábado, setembro 21, 2024 Sidney Puterman


Nas páginas finais de "Cinzas e diamantes" há um embate moral entre dois personagens. Um deles, um ex-juiz que passara um longo tempo como prisioneiro em um campo de concentração alemão, se justifica para a nova autoridade do local. Acuado, argumenta em defesa do comportamento desprezível que tivera. Diz que em situações anormais as pessoas agem de forma anormal.

"Agora a guerra terminou", pontua Kossecki. "Não há mais guerra. Acho, portanto, que voltamos às relações humanas normais". Em seguida, explica seu entendimento de retomada da normalidade. "O fato é que os crimes foram cometidos", assente. "Mas significará isso que, em condições normais, muitas dessas pessoas não possam voltar a ser cidadãos úteis e honestos?"

O novo manda-chuva suspeita que o outrora respeitável ex-juiz tenha sido um chefe de barracão enquanto prisioneiro. Ou seja, alguém que, a serviço do invasor, vigiava seus próprios patrícios.

Para os não muito afeitos ao assunto, a nota de rodapé esclarece o que seria um "chefe de barracão": "Função desempenhada pelos prisioneiros servis que se sujeitavam aos alemães e que estes nomeavam para desempenhar o cargo. Geralmente se transformavam em carrascos de seus companheiros e, traidores, muitas vezes eram mais odiados que os próprios alemães".

Para salvar a própria pele, Kossecki teria traído seu próprio povo. O mal incomum cometido por pessoas absolutamente comuns. A circunstância nos lembra o muito falado, mas pouco lido, "A banalidade do mal", livro que tornou célebre a intelectual judia Hannah Arendt. Ele versa sobre a capacidade de homens medíocres, absolutamente banais, cometerem atrocidades inomináveis.

O romance de Jerzy Andrzejewsk tem nitidamente por objetivo propor esse balizamento.

A ação se passa em exíguos quatro dias, de 4 a 8 de maio de 1945, em uma pequena cidade do interior da Polônia. Estavam nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Na prática, faltava apenas um fiapo de guerra, o golpe de misericórdia para a derrota definitiva do Reich alemão. Para o dilacerado povo polonês, após seis anos de mortes e destruição, a guerra contra os nazistas já havia acabado. Os alemães que não conseguiram fugir foram mortos ou feitos prisioneiros.

O combate acabara, mas não o conflito. Restou uma profunda divisão entre os sobreviventes de um país em ruínas, e novamente invadidos (agora pelos russos). Ainda que todos odiassem os alemães, o povo estava fracionado - entre os que apoiavam e aqueles que eram contra os soviéticos.

Como você sabe, historicamente, o buraco ali é mais embaixo.

Vale a pena dar uma contextualizada. A Polônia foi rachada entre alemães e russos em setembro de 1939, logo após a invasão do país. Foi esta invasão que deu início à Segunda Guerra Mundial. O tratado Ribbentrop-Molotov, celebrado entre fascistas e comunistas, escriturava a partilha da Polônia e duraria até junho de 1941, quando a Alemanha invadiu seu ex-aliado, a União Soviética.

Durante a ocupação, mais de três milhões de poloneses morreram, seja em combate ou em campos de concentração. Foram mortos por russos e por alemães. Em agosto de 1944, houve um levante na capital do país, Varsóvia, contra a Werhmacht, o exército alemão. Os revoltosos aproveitaram que a Alemanha recuava e tentaram retomar a capital com um pelotão de guerrilheiros.

A revolta, que apostava na chegada do Exército Vermelho (que tinha também uma divisão polonesa, formada por poloneses que fugiram para a União Soviética após a invasão alemã), poderia ter sido vitoriosa, caso os russos não tivessem estacionado às margens do Dnieper e deixado a resistência - o Armja Krajowa - ser dizimada pelas forças nazistas. Ainda que esfacelada, a Wehrmacht era um exército regular, muito mais contundente que qualquer guerrilheiro apaixonado.

Somente quando a resistência polonesa foi destruída é que os russos cruzaram o rio e trucidaram os alemães (sobre o tema, sugiro o excepcional "O levante de 44", de Norman Davies, resenhado aqui no blog). A partir daí, os poloneses que vieram à reboque dos soviéticos se tornaram os candidatos aos novos cargos do poder. Os que não aderiram aos russos passaram a ser a oposição a eles - e à URSS.

Pronto. Lembrando que, no livro, esta contextualização também foi feita, ainda que de forma sucinta, na conversa entre o coronel Staniewicz e o jovem Andrzj.

"A Segunda Guerra Mundial está chegando ao fim", diz o coronel. "Mais dois ou três dias, talvez uma semana... e estará terminada. Mas não poderíamos prever um fim como este. Pensávamos que não só a a Alemanha sairia vencida, mas que a Rússia também fosse derrotada. As coisas sairiam um tanto diferentes. Na atual conjuntura, nós, poloneses, estamos divididos em duas categorias: aqueles que traíram a liberdade da Polônia e aqueles que não a traíram. Os primeiros querem submeter-se à Rússia. Nós, não. Eles querem destruir-nos. Nós temos que destruí-los. Estamos numa batalha, numa batalha que apenas começou".

O cenário do autor é Ostowiec, um lugarejo a meio caminho entre Varsóvia e Cracóvia, as duas maiores cidades do país. As autoridades locais, indicadas pelos russos, já controlavam a cidade. Um grupo de poloneses, entretanto, insatisfeito com o rumo político das coisas, executa um atentado. Este é o pano de fundo da estória.

Jerzy nos oferece um ácido panorama da sociedade polonesa da época, em meio ao desconsolo e à mesquinhez. São habitantes que partiram e depois retornaram. Muitos morreram e muitos fizeram coisas vergonhosas para não morrer. Seus diálogos são curtos e sarcásticos. 

O vazio, a ironia e o acaso costuram a narrativa, dinâmica. Mas nem tudo funciona. Com a enxurrada de personagens, o leitor se perde ante tanta gente entrando e saindo dos capítulos. E, pior, todos têm nomes sem apreço pelas vogais - como o do escritor, Andrzejewski -, o que não ajuda em nada.

Como a trama se desenrola em quatro dias, o desdobramento de cada núcleo acaba incompleto - idem a descrição do assassinato. Jerzy foi tão sutil e dissimulado que li e reli o trecho e não consegui descobrir, em meio às palavras, o momento em que o autor conta que o sujeito foi morto (sei que provavelmente você não vai ler, mas não vou dar spoiler mesmo assim, questão de princípio).

O livro foi lançado ainda nos anos 40 e em 1958 foi para as telas do cinema, pelas lentes de um cineasta que se tornaria mundialmente famoso (coisa rara para um polonês): Andrzej Wajda. A película, típica da década, tem o estilo dramático e sombrio do período.

Com o elenco compondo um mosaico da aturdida nação polonesa, não há propriamente um protagonista. Mas há um sujeito solitário que aparenta ser o alter-ego do autor. Um vingador errante na nova Polônia, ele, o sniper, conhece uma garota simples que o faz querer abandonar tudo.

Seguindo sua próxima vítima, mas ao mesmo tempo perdido nas próprias reflexões - contraposição que era o gran finale do texto -, Chelmicki, o alter-ego, anda pelas aléias de um cemitério. Súbito, depara com uma lápide, que serve de legenda à melancolia dos personagens.

"Passante, eu era o que és; tu serás o que sou. Vamos orar um pelo outro."

A obra não está mais à venda e provavelmente nunca será reeditada. Não há mercado aqui para este conteúdo. Esgarçado, meu exemplar se desmanchou enquanto eu lia. Encomendei de um sebo e já chegou em estado crítico. A contracapa rasgou e a encadernação diluiu com a leitura.

Veio morrer aqui em casa, como boa parte dos seus personagens. Vou cuidar bem do que restou.

Editora Saga S.A., 298 páginas  |  Impressão: 1968  |  Tradução  Maria de Lourdes Modiano

Título original: "Popiol I Diament"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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