"O Delator", por Allan de Abreu e Carlos Petrocillo

quarta-feira, abril 07, 2021 Sidney Puterman


Como a política brasileira, o futebol mundial sempre foi infestado de corruptos. Aqui mais do que acolá. O ex-juiz Cabelada está fazendo sucessso na série "Doutor Castor", contando, ao modo dele, como funcionava o esquema. Dá nome aos bois. Entre outras muitas cagoetagens, revela que os árbitros sabiam que o Flamengo não podia perder, porque o mais querido era o "trem pagador". Ah, é? Fala o que todo mundo já sabe. Há quem diga que isso é coisa do passado (recente). Mas está aí mesmo o VAR para provar que o esquema permanece atual. Os que estão por cima da carne seca se esbaldam. Chance zero de punição. O mais fraco que vá chorar na cama. Permanece tudo dominado, la plata fala mais alto. Não à toa ladrões de todo o planeta sempre tiveram carinho especial pelos vôos para o Brasil. Se aqui ainda somos um paraíso para que corruptos nacionais e estrangeiros se sintam seguros, com a conivência das mais altas cortes - cujo "garantismo" assegura que o dinheiro surrupiado continuará garantindo boa vida aos criminosos -, ao norte, nos Estados Unidos, o ambiente é mais hostil. E foi justamente o golpe desferido pela Justiça norte-americana contra a quadrilha internacional de cartolas corruptos que provocou a reação em cadeia (com trocadilho, por favor) que desmontou esquemas milionários que vinham subsistindo há décadas. Um Dom Quixote contra esta mega-armação das federações internacionais de futebol sempre foi o obstinado jornalista escocês Andrew Jennings, um fuçador de carteirinha que, com seu "Jogo sujo" (resenhado aqui neste blog em 2012), denunciou cartolas de todos os continentes, com foco nos líderes Sepp Blatter, Jack Warner e João Havelange. Este "O delator" segue de forma competente a trilha aberta por Jennings, ainda que não tenha o vigor investigativo do highlander. O milionário J. Hawilla, então dono da ex-poderosa Traffic (parceira da CBF de Ricardo Teixeira e José Maria Marin por décadas), morto no ano retrasado, é o delator em questão. E, diferentemente dos delatores que a extinta Lava-Jato consagrou - corruptos pegos com a boca na botija e que preferiram confessar seus crimes e as tramoias engendradas com seus parceiros de roubo para serem beneficiados com penas mais brandas -, Hawilla foi o delator de cinema, que andava com um gravador camuflado, agendando encontros com seus cúmplices para provocar conversas que, gravadas, os incriminassem. O que já se sabia sobre ele e as revelações trazidas pela sua trairagem compõem a narrativa dos jornalistas Abreu e Petrocillo. A abordagem jornalística foi conservadora. O texto, comportado, segue cronologicamente a trilha dos ladrões, por meio da trajetória de vida do radialista e empresário J. Hawilla, conhecido na mídia esportiva como Jotinha ou J. Ávila - mas que, ensinam os autores, se pronuncia Rauíla (sempre bom saber, para xingar direito, na língua de origem do cara). Xingado, aliás, é o que ele mais foi, pelos seus ex-parceiros denunciados, com destaque para Ricardo Teixeira e Kleber Leite, respectivamente ex-presidentes da CBF e do Flamengo. A primeira parte do livro foca na ascensão de Hawilla na imprensa e sua precoce sanha empreendedora. Torna-se sócio da Globo em emissoras no interior paulista à medida que a sua Traffic (empresa originalmente dedicada à venda de painéis publicitários no trânsito paulistano, daí o nome) enriquece. Sua receita é simples: ganhar licitações que lhe dêem exclusividade na venda das placas de gramado. O formato é aquele que a gente conhece de velhos carnavais: os contratos e as licitações são previamente armados. Depois que a armação é sancionada no Diário Oficial, o licitante vencedor, em troca de suborno aos agentes públicos e das federações, celebra contratos legais que prevêem baixa remuneração para as instituições licitadoras (pagando sempre números bem abaixo do real valor de mercado), enquanto, na prática, por baixo dos panos, vende a publicidade licitada por altos valores (compatíveis com o mercado). A gorda rentabilidade decorrente da diferença entre o preço licitado e o valor comercializado supernutria a Traffic e os corruptos que lhes favoreciam. Tão velho quanto andar para a frente - é por esta larga tubulação subterrânea que o dinheiro público deixa de financiar a infraestrutura nacional e vai enriquecer políticos e amasiados. Fecha parênteses. Pois foi utilizando esta receita da vovó que Hawilla transformou sua pequena Traffic em um império que dominou as principais receitas do futebol brasileiro e de todo o continente, com a benção da CBF de Ricardo Teixeira e João Havelange. O que o livro mais chama a atenção é como as federações de futebol latino-americanas são todas - sem exceção - antros da bandidagem. Não escapa uma. Os acordos, polpudos, orbitam na faixa de dezenas de milhões de dólares para as pessoas físicas que estão à frente de cada entidade (imagina o tamanho do benefício social se este dinheiro fosse aplicado no desenvolvimento do esporte local). Como irreverentemente bem retratado na série "El Presidente", veiculada na Amazon, que conta uma parte dessa estória, são todos criminosos banais, que fogem como ratos à chegada do gato - nada exemplifica melhor seu caráter do que a debandada dos principais dirigentes esportivos do mundo quando se viram cercados no miliardário hotel Bac das Couves, na Suiça. O FBI planejou pegar a bandidagem reunida onde eles menos esperavam - em um evento da FIFA, no país da picaretagem financeira. Houve quem chorasse, outros tentando se disfarçar de turista e outros fugindo pela cozinha. Veja a ironia. Foi necessário o governo norte-americano se emputecer, ao ser surrupiado na escolha da sede da Copa de 2022 - que foi para o Kuwait, a base de mais propina do que o país tem de areia -, para resolver por um pouco de ordem no futebol mundial. Resumindo: para pegar bandido, tem que ter polícia. Voltando ao nosso biografado, foi exatamente essa onda que deu o caldo no libanês do interior paulista. Habitué de Miami já há muitos anos, Hawilla foi surpreendido com a Dona Justa batendo à porta da suite nababesca que ocupava. Os tiras estavam lá dando prosseguimento à caça de corruptos que surgiam como moscas à medida que a investigação sobre a vitória do Kuwait avançava. Hawilla foi dedurado por um outro dirigente já grampeado. E a partir dali ele tinha uma escolha: cana nos States pro resto da vida ou passar a grampear os cúmplices. O título do livro já conta, com spoiler, a opção do milionário empresário do futebol, que antecipamos acima. São revelações contundentes. Um sócio de alto coturno do clube mundial da roubalheira esportiva dar com a língua nos dentes não é coisa comum de se ver. Além de dar o raio-x das mutretas acintosas, a deduragem do Jotinha ilumina as mais diversas transações. Convido você a ler e se surpreender com a cara-de-pau de toda essa gente (os mais velhos morreram ou foram substituídos, mas o esquema se mantém forte e bem protegido - Marin, Teixeira e Del Pinto, a propósito, por alguma razão recôndita foram esquecidos pela nossa imprensa, sempre mais ligada na última contratação de araque). O livro é quase uma enciclopédia da corrupção no futebol brasileiro, ainda que tecnicamente ultrapassado pelas novas tecnologias. Por aqui a corrupção está sempre meio nariz à frente da moralidade. Pode conferir no VAR.

Editora Record, 262 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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