"Os judeus e a Polônia", por Marek Halter

domingo, março 28, 2021 Sidney Puterman


O texto publicado à guisa de posfácio em "O diário de Rutka" (manuscrito recém-descoberto de uma adolescente judia enviada para um campo de extermínio) - este "Os judeus e a Polônia" que trato aqui -, não deveria ficar circunscrito como apêndice daquele. Não que o comovente e revelador diário de Rutka Laskier não o mereça; pelo contrário, merece tanto, que a narrativa profunda de Halter ainda mais o valoriza; mas, pela densidade e pelo abrangente mergulho histórico proporcionado pelo texto de Marek, não é justo mantê-lo confinado: é certamente um dos depoimentos mais legítimos sobre a presença judaica na Polônia do pré e do pós-guerra.

Não apenas porque seu autor seja um estudioso e um judeu; mas porque ele é um judeu polonês retornado, um entre milhares que conseguiram escapar do Holocausto e que, finda a guerra, decidiu voltar para a a Polônia. Um ponto fora da curva, uma exceção, uma testemunha rara.

E que, convém antecipar, não nos traz um depoimento conciliador.

Halter aponta o dedo para a deliberada omissão polonesa, ao testemunharem os nazistas sequestrarem um milhão e meio de compatriotas judeus e os assassinarem. Ainda que seja sabido que os poloneses tenham sido também vítimas e também executados pelo invasor alemão, Marek sentiu na própria carne e no seu espírito de criança o que se passou e como se passou. E seu ponto de vista, ainda que tingido pelo rancor, é insubstituível.

Atente, porém, que Marek não se restringe a este momento de trágica ruptura entre judeus e poles - sua análise retrocede 800 anos no tempo, para registrar a chegada judaica ao que era um gigantesco território inabitado. Conta como a Polônia e os judeus cresceram daí entrelaçados.

Como ele explica, os judeus são tão misturados com a história polonesa que o primeiro trono de rei polonês foi oferecido a um judeu - que, sabiamente (a seu ver) recusou. Prova do envolvimento ancestral polaco-judaico. O povo hebreu que existia lá não chegou por acaso, nem chegou sem convite. As planícies polonesas eram vastas e desocupadas. Precisavam de gente. O país era incipiente, um novo campo de ocupação, um vazio demográfico rodeado por nações mais antigas.  

Conta ele que, cercados por russos, tchecos, eslovacos, turcos, austríacos, alemães, com suecos do outro lado do mar, os polanos receberam de braços abertos os khazars, os askhenazis, os escoceses, os italianos. Os khazars eram eslavos convertidos ao judaísmo, que por três séculos mandaram no Volga. Os askhenazis eram judeus que vinham sendo gradativamente expulsos da Península Ibérica. Havia muito espaço e pouco povo para ocupar o que viria a ser a Polônia.

O desenvolvimento do país foi uma operação conjunta, em que os judeus foram parte importante, sempre com mais destaque no comércio, nas finanças e na cultura. Cidades inteiras eram quase que exclusivamente judias, como revelam seus nomes, entre elas Zydowo e Zydõwka (Zyd significa judeu em polonês). Ou ainda as aldeias khazars Kozari e Korazow, a oeste do reino. 

Após séculos de crescimento independente e ter se transformado em uma das maiores e mais relevantes nações europeias (peça-chave no tabuleiro diplomático do continente, como grande reino católico que era), a Polônia foi tomada pelo caos político - devido a suas próprias idiossincrasias - e se viu retalhada entre Rússia, Áustria e Alemanha. Os judeus representavam então um terço da população urbana, de 1,3 milhão de pessoas. O país tinha nove milhões de habitantes.

Em quase um século e meio de ocupação estrangeira, os judeus participaram das revoltas - frustradas - contra o invasor. Mas sua organização política crescente tendia para a construção de partidos socialistas e para o sionismo, enquanto os poloneses étnicos se apegavam ao nacionalismo. Este afastamento viria a resultar na rejeição aos judeus quando da reconquista da soberania polonesa, em 1918. A guerra contra a Rússia, logo em seguida, também contribuiu para este afastamento, pois os judeus foram considerados entusiastas da revolução soviética, simpatizantes do comunismo, o que os colocava do lado russo e contra a Polônia.

(Ressalte-se que a identificação não era à toa: os judeus foram componentes ideológicos de destaque na revolução russa de 1917 e ocupavam muitos cargos na cúpula do novo regime.)

Barafunda étnica à parte, as forças polonesas venceram (veja aqui no blog o ótimo livro de Adam Zamoyski, "Varsóvia 1920", que conta esta história) e o estigma contra os judeus subiu alguns graus. Em meados da década de 30 nasceu o autor do livro, que testemunhou a Polônia de então e a invasão do país pelos alemães. Recolhidos aos muros do gueto como todos os demais judeus não fuzilados, ele e sua família conseguiram escapar do Gueto de Varsóvia em 1941 - sorte que poucos tiveram. Fugiram para Kokand, no Uzbesquistão.

Passada a guerra, em 1946 os Halter voltaram para a Polônia, sua terra natal. Pátria dos seus antepassados por mais de seiscentos anos. Não foram bem recebidos. Os poloneses espancaram seu pai, jogaram pedras nos judeus retornados, chamaram-nos "ratos". Duro de suportar; mas, ainda assim, eram outros tempos. Não havia mais guetos e a perseguição aos judeus não era mais uma ação legal. O comunismo se fazia passar, temporariamente, como inimigo do anti-semitismo. Uma oportuna diferenciação ao regime nazista. Assim, os judeus, ainda que malquistos, tentaram ficar. E dar legitimidade à sua presença, como nos conta o autor:

"No dia 19 de abril de 1948, cinco anos depois da insurreição de Mordechaï Anielewicz e seus amigos, nós inauguramos um monumento em homenagem aos combatentes do gueto de Varsóvia. Nós conseguimos reunir, trazidos por trens e por caminhões, os remanescentes dos 3,5 milhões de judeus da Polônia: 75 mil pessoas, sobreviventes dos campos da morte ou dos combates armados - um sobrevivente para cada quarenta mortos."

Não foram bem-vindos. Após a tentativa mal recebida de retorno, muitos judeus partiram, de novo. Os Halter entre eles. Marek e sua família emigraram para a França. Lá ele se tornou um artista plástico respeitado e também um escritor internacionalmente conhecido. Em 1967, criou o Comitê Internacional em prol de um Acordo de Paz Negociada no Oriente Médio, que ele reputa responsável pelas primeiras conversações de paz entre israelenses e palestinos.

"Hoje, tanto tempo depois da guerra, numa Polônia na qual restam quando muito cinco mil judeus, a relação dos poloneses com o judaísmo não se modificou. É sempre a mesma mistura de fascínio e ódio. (...) A maioria dos poloneses permaneceu indiferente à deportação dos judeus para os campos de extermínio. Alguns chegaram até a auxiliar os nazistas e muitos denunciaram os judeus escondidos."

São cicatrizes que não saram. Mesmo descendentes longevos deste passado perverso sofrem, tentando compreender como tudo isso foi possível. Só que a cicatriz de Marek não é um holograma, uma tristeza emprestada, uma reflexão; um trauma da infância e mocidade, está gravada na própria pele. O mundo em que ele debutou foi o do gueto. Menino, foi carregado em uma fuga, e depois experimentou a esperada libertação pessoal pela via redentora de um retorno à pátria. Mas chegou lá e não havia pátria.

"Hoje, na Polônia, muitos afirmam que eles não sabiam de nada na época. Talvez. Mas e depois da guerra? Como explicar a atitude dos poloneses contra os sobreviventes que, como nós, retornaram em 1946 para suas aldeias e suas cidades? Estas manifestações de ódio visavam dar cabo das últimas testemunhas da própria covardia deles? Não conseguiram. Os judeus faziam, e continuam fazendo, parte de sua memória. Eles não podiam - e ainda não podem - apagar os judeus de seus livros de história, sem apagar toda a história da Polônia."

Pena que o relato esteja escondido como posfácio em um livro que ninguém sabe que existe. 

Editora Rocco, 83 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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