"A Primeira Guerra Mundial", por Martin Gilbert

domingo, março 21, 2021 Sidney Puterman


Como toda a minha geração (e as seguintes...), eu varei noites jogando War. Testemunhei o lançamento do jogo, pela Grow, nos anos 70, e foi paixão à primeira partida. Quando, dois anos depois, a mesma empresa distribuiu no mercado o "1914", já fui logo juntando as moedinhas. O jogão, enigmático, vinha numa caixa sisuda, verde-militar, com o subtítulo "o jogo da diplomacia". Logo descobri que o jogo era ruim e hoje sei também que o epíteto era equivocado. Nada poderia ter sido menos diplomático do que foram os quase quatros anos e meio de carnificina europeia.

Nem de longe é o caso de "A primeira guerra mundial", de Martin Gilbert, livraço que traz um subtítulo bem mais realista. "Os 1.590 dias que transformaram o mundo" dão uma pista concreta do verdadeiro impacto do evento. Passados 102 anos de seu término, que se deu rigorosamente às 11 horas do dia 11 do mês 11 de 1918, o mundo em que vivemos permanece atrelado às consequências do assassinato do arquiduque austríaco Franz Ferdinand pelo adolescente sérvio Gavrilo Princip, de quem você provavelmente nunca ouviu falar.

Contando assim, esse fato, distante no tempo e no espaço, confunde qualquer tentativa de compreensão preliminar do que se passou em 1914. Volto a isso já, já.

Todo mundo sabe que, aos olhos contemporâneos, a Primeira Guerra é uma epopeia arcaica, eclipsada pela Segunda Guerra. É uma superposição compreensível, até porque estão ambas muito distantes no tempo. A Primeira, encerrada há mais de um século, tem sua silhueta envolta em bruma, quase fantasmagórica, enquanto os fatos que envolvem a Segunda Guerra nos são bem mais íntimos e explosivos, vinculados à história recente (bomba atômica, Guerra Fria, muro de Berlim etc) - e foram exaustivamente registrados.

Hoje, com "1917", "They Shall Not Grow Old" e várias outras superproduções, o cardápio cinematográfico da Grande Guerra ganhou sustança. Só que isso ainda não é suficiente para atenuar a enorme diferença entre as duas no nosso imaginário - e, principalmente, no nosso conhecimento.

Mas o fato é que, com um hiato de dezenove anos, a Segunda Guerra retoma o conflito do ponto em que a Primeira Guerra parou. O país derrotado, que não aceitou nem a derrota e nem o preço que lhe foi cobrado por ela (mas jamais pago), resolve reiniciar o confronto, ao julgar que já estava suficientemente forte para vencer seus oponentes (como, aliás, achava também que estava quando deu início à guerra anterior - e foi esta suposição que lhe fez declarar guerra).

Por isso, para entendermos as complexas minúcias da geopolítica, esta nossa madrasta, temos que mergulhar de cabeça no confronto que iniciou em 1914. Chafurdar em uma terra de ninguém, numa massa disforme de lama, ossos e cadáveres.

O livro de Martin Gilbert é uma ferramenta ímpar para que o leitor tenha dimensão apropriada das forças envolvidas no conflito. Historiador experiente, o autor dosa a contabilidade fria das operações táticas com o lado humano das vítimas e dos combates.

O trabalho monumental de Gilbert faz o dever de casa com capricho. Já li outras obras fundamentais sobre a Primeira Guerra e não tenho dúvida em alinhar este texto do inglês com o que de mais relevante foi escrito. Mais analíticos,  "Os sonâmbulos", de Christopher Clark, e "O horror da guerra", de Niall Fergunson estão também neste patamar e são imprescindíveis: o primeiro se dedica a interpretar todos os movimentos que precederam a eclosão da guerra; o segundo avança nos números que deram sustentação ao confronto: conscritos, armas, navios, produção industrial, linhas de suprimento etc.

Você acha ambos aqui no blog, basta digitar o título na caixa de busca. E, enveredando pela ficção, você encontra aqui também o impagável "As aventuras do bom soldado Svejk", do tcheco Jaroslav Hasek, e o dolorido "14", do francês Jean Echenoz.

"Os sonâmbulos", a propósito, traz uma esmerada descrição da Mão Negra, grupo nacionalista sérvio que cometia atos terroristas visando pressionar o Império Austro-Húngaro a permitir o desmembramento das províncias eslavas do sul. Seu objetivo era a criação da Grande Sérvia. A linha do tempo da Primeira Guerra retrocede a este atentado - que, em si, foi um despropósito tal que merece algumas linhas.

A Mão Negra recrutava adolescentes e, quando da visita do arquiduque austríaco Franz Ferdinand, herdeiro do Império, a Sarajevo, sete jovens sérvios candidatos a mártir foram treinados e postados em pontos estratégicos do percurso, armados de bombas caseiras e pistolas velhas.

A ação foi um fiasco. Todos falharam e perderam seu momento, inclusive o guri de 19 anos que iria matá-lo, Gavrilo Princip, que mencionei no início. Uma das bombas, mal atirada por Nedeljko Cabrinovic, ricocheteou na lataria e não ameaçou o casal imperial, mas explodiu na traseira e feriu vinte pessoas que vinham atrás. Cabrinovic tentou se matar engolindo uma cápsula de cianureto e se jogando da ponte, mas vomitou o veneno e o rio era raso. Acabou linchado e preso.

O arquiduque achou a tentativa de assassinato um desrespeito às visitas, mas insistiu em manter a sua pompa imperial e foi ao hospital visitar os feridos, no mesmo carro aberto em que já tinha sido alvo. Procurando o hospital, seu motorista pegou a rua errada e, para voltar, resolveu manobrar de ré, passando em câmera lenta na frente de Gavrilo - que, desta vez, não falhou.

O garoto acertou dois tiros na visita ilustre e na sua esposa Sofia. Morreram ambos e, cadáveres, se prestaram a instrumento beligerante da política alemã. Para vingar os mortos, um ultimato humilhante foi dado à Sérvia, que, acovardada, para não ser invadida, aceitou os termos. Mas foi invadida mesmo assim. Tinha se passado já cinco semanas da confusão em Sarajevo.

Deste jeito patético foi declarada aberta a Primeira Guerra Mundial. As hostilidades tiveram início nos confins da Europa, e nos meses seguintes o conflito chegaria a abrir mais de doze frentes de guerra planeta afora.

Uma guerra que, como já disse, não acabaria nela mesma. 

Atente que os dois principais líderes da guerra seguinte, Winston Churchill e Adolf Hitler, são produto desta Primeira Guerra - em que, de certa forma, foram ambos derrotados. Mas de forma inversa: Churchill, pertencente ao lado vitorioso, viu soçobrar seus sonhos de grandeza no Estreito do Dardanellos. Ainda que não tivesse sido culpado pelas decisões erradas que deram a vitória aos turcos neste front específico, passou para a História como se tivesse sido; ou, ao menos, sob a polêmica de que talvez tenha sido. Encardido.

Já Hitler, derrotado, era um reles mensageiro, levando recados de um buraco para o outro. Mas seu comprometimento com a tarefa - como um motoboy que ignora os sinais de trânsito para fazer a pizza chegar quente - resultaram na sua promoção a cabo e na condecoração com a Cruz de Ferro. Um pintor-camelô antes da guerra, sem emprego fora dela, foi indicado pelo seu oficial a permanecer no Exército, após a rendição. Se tornou ouvinte em cursos de proselitismo político e oratória, pagos pelo Estado.

Biógrafo oficial de Winston Churchill, Gilbert surpreende por deixar a presença do então Primeiro Lorde dos Mares espremida nas bordas. Neste livro, Churchill não é protagonista. Ainda que ele tenha tido participação expressiva no primeiro ano e meio de guerra, por meio dos cargos que ocupou com brilho e polêmica, o texto reserva a ele uma atenção não maior que aquela dada a outros coadjuvantes.

A bem da verdade, são tantos os atores, em uma boca de cena tão vasta, que é difícil encontrar alguém que vista o figurino de protagonista. Pela ambição, e por ter sido de fato quem a provocou, penduro esse guizo no pescoço da Alemanha.

A sineta devidamente pendurada antecipa meu ponto de vista sobre alguns pontos considerados polêmicos, e sobre os quais ainda hoje se fundamentam divergências. O conjunto de obras que citei nos levam a crer ser inquestionável que a Alemanha quis a guerra, que a Alemanha decidiu ostensivamente pela guerra e que a Alemanha foi militarmente derrotada no campo de batalha (mesmo que seus exércitos em retirada estivessem em solo francês quando da assinatura do armistício). 

A Alemanha derrubou seu rei, ainda que ocupasse o campo de ataque. Mantê-lo de pé já não lhe valeria nada, além de óbitos. O desenlace já estava claro. Era mate em dois lances.

Ou seja, a resposta para a grande controvérsia é que não há mistério. Os alemães quiseram a guerra porque a guerra lhes convinha naquele momento. Os alemães decidiram pela guerra assim surgiu a oportunidade. Os alemães perderam a guerra porque as forças contra eles eram superiores, material e financeiramente. Como bem disse Luddendorf, às vésperas da capitulação: "Nós não podemos lutar contra todo mundo".

E, por fim, a Alemanha estava em solo francês porque ela iniciou a guerra como invasora, se aboletou na frente, estendeu a guerra por quatro anos (mantendo posições ou com pequenos avanços) e, completados estes quatro anos, passou a fazer recuos diários, a ter seus batalhões capturados e suas armas apreendidas pela ofensiva aliada. Diante do cenário de perdas sucessivas, ela deu início a uma série de movimentos visando trégua, armistício e rendição.

O pedido de paz dos alemães, enfim aceito pela Entente, foi mal digerido pela base da Wehrmatch porque ela estava submersa em suas próprias trincheiras e não lhe era possível a noção do todo. Como resultado, cultivou uma visão distorcida da capitulação, como se tivesse sido traída por políticos - mas, ao contrário do negacionismo militar, a vida dos milhares de soldados alemães remanescentes foi salva pela suspensão dos combates.

No que dependesse do general Pershing, comandante das forças norte-americanas, a paz negociada, proposta pelos alemães, não seria admitida. Ele só transigiria em discutir a paz ao ter seus homens em solo alemão e com a Germânia de joelhos. Mas os ingleses e franceses vetaram. Eles já vinham lutando e morrendo há muito tempo para encompridar aquilo um dia a mais que fosse.

Gilbert é um craque da mescla de relato e testemunho. Razão e emoção. Ele concilia a narrativa política com a estratégia dos comandantes; e a suicida conquista de terreno da infantaria com os poemas e cartas escritos por quem estava no front - cemitério sem cruzes da maioria dos missivistas e poetas.

O autor nos mostra em detalhes como se deu na prática a transformação do conceito de guerra: os bombardeios, os aviões, os dirigíveis, os submarinos, os gases, os lança-chamas, as metralhadoras, os tanques - nada disso houvera em quatro mil anos de conflito armado entre tribos, cidades e nações. A guerra passara a ser uma outra coisa, medonha, inumana, implacável.

Joga luz sobre a presença de todos os países que participaram belicamente do conflito. A contribuição norte-americana foi lenta, atrasada, atabalhoada e decisiva. Inexperientes, chamados de amadores, desprezados pelos alemães como combatentes - mesmo que tudo isso seja verdade, foi o contingente de mais de um milhão de soldados dos Estados Unidos, com seu inesgotável estoque de armamentos, que fizeram a Alemanha levantar a bandeira branca.

(De vez - porque de mentirinha ela levantou diversas vezes durante a guerra. Era comum soldados alemães encenarem uma rendição, para então matarem os ingênuos ingleses e franceses que acreditaram na simulação e abaixaram as armas. Na guerra, confiar em um alemão é uma aposta arriscada.)

Estiveram no primeiro plano as grandes potências - Alemanha, Inglaterra, França, Áustria (Império Austro-Húngaro, com todas as suas etnias), Itália e Rússia - e, em segundo plano, um grande número de países de média expressão: Bélgica, Turquia, Sérvia (pertencente ao Império, na verdade, mas inimiga ativa, de fato), Austrália, Nova Zelândia, Índia e Canadá.

Árabes, iraquianos, armênios, curdos, judeus, africanos, portugueses - muitos outros povos e países tomaram parte. O Brasil, honrando as suas tradições logísticas e militares, conseguiu a proeza de chegar em solo europeu para participar do conflito contra as Potências Centrais (Alemanha, Áustria e Turquia) depois que a guerra já tinha acabado.

Parênteses. Desde o início da guerra, o Brasil vinha tendo seus navios afundados pelos submarinos boches, mas somente no fim de 1917, em 16 de novembro, a menos de um ano do fim da guerra, o Brasil declarou guerra ao Império alemão. Não dava na saliva, ia resolver na pólvora (acho que alguém disse isso recentemente, mas não lembro quem). Exatos seis meses depois de ter declarado guerra à Alemanha - anote aí, 6 meses -, o Brasil mandou uma divisão naval para se somar à Entente. Eram oito navios: cinco destroyers, dois scouts e o transporte de guerra Belmonte. Tinham seguido também nove pilotos e uma missão de médicos-cirurgiões. A partida da costa brasileira se deu em 16 de maio. Quando aportaram na África, parte da guarnição foi posta fora de combate pela gripe espanhola. A fração dos bravos soldados brasileiros que conseguiu ancorar em território europeu chegou em 10 de novembro de 1918 ao porto de Gibraltar. A guerra acabaria no dia seguinte.

Estas informações sobre o Brasil não constam do livro de Martin Gilbert, cuja única menção ao nosso país nas suas 800 páginas é quando ressalva que entre os mortos havia pilotos brasileiros (se referindo à presença dos nove oficiais aviadores que registrei acima).

Embora tenha sido militarmente um tiro nágua, diplomaticamente a participação brasileira nos rendeu importantes dividendos, como um assento na Conferência de Paz, em Versalhes, em 1919, e em um lugar de vulto na Liga das Nações.

Voltando à vaca fria, é fora de questão a força do livro de Martin Gilbert. Ele nos proporciona um conhecimento profundo e sensível da Primeira Guerra Mundial, nos habilitando ao entendimento de um pedaço crucial da história. Uma chave para a compreensão do século 20.

E não só. Para o leitor leigo, como eu, é um presente valioso para o discernimento. A força narrativa de Gilbert é tremenda. Ele escolhe os relatos que expressam a sua história e vai colando-os, em sequência, temperando fatos, circunstâncias e emoções. Uma epopeia como poucas vezes se viu.

E, por fim, quanto aos jogos de tabuleiro, eu e meus amigos de infância chegamos a inventar regras novas, para deixar o tal jogo de War mais competitivo, permitindo até uma emocionante versão mano a mano. Mas confesso que o jogo "1914" nunca teve graça. Já o livro, pode confiar, é supimpa.

Editora Casa da Palavra, 830 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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