"Dolores Duran", por Rodrigo Faour

quarta-feira, abril 14, 2021 Sidney Puterman


O miolo do livro. Ah, o miolo! Bom demais da conta. Excesso de Dolores, Dolores em estado puro, com suas melhores canções (que estão também entre as melhores canções que alguém já fez) e seus melhores momentos. Pena que o livro de Rodrigo Faour tenha seu núcleo poderoso embrulhado em uma verborrágica maçaroca de folhas, no início e no fim da brochura. Por isso, advirto o leitor incauto a como proceder. Duzentas páginas pra lá, duzentas páginas pra cá, fique apenas com as que sobraram no meio. O miolo da encadernação. São a essência de Dolores Duran.

(Uma essência que durou pouco tempo demais. E acabou de repente.)

"Esta noite eu vou dormir até morrer". A jovem Dolores deitou, dormiu e morreu. Simples assim. Uma das mais talentosas compositoras que o Brasil já teve, Dolores Duran partiu como quem pregava uma peça. Espirituosa, divertida, prendada, alegre, dadeira, a pequena Dolores sofria de melancolia, tristeza, de amor e também do coração. Que redundância. "Hoje eu quero a rosa mais linda que houver", a frase inicial da sua "A noite do meu bem", é atemporal. Quem não faz a menor ideia de quem tenha sido Dolores, morta há mais de 60 anos, mesmo assim conhece o verso.

"Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / e a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem / Hoje eu quero paz de criança dormindo / e abandono de flores se abrindo / para enfeitar a noite do meu bem / Quero a alegria de um barco voltando / e a ternura de mãos se encontrando / para enfeitar a noite do meu bem..."

O título - hoje eterno - da canção se tornou tão emblemático, que o melhor dos biógrafos brasileiros (não dela, pena), Ruy Castro, o "roubou" para titular o próprio livro sobre o período. Obra, aliás, que ainda não li, mas que já está na minha (longa) lista.

Já o respectivo biógrafo da cantora, Rodrigo Faour, ficou devendo. Diligente, carinhoso, minucioso, abre mil armários repletos de recortes amarelados sobre a artista. Rodrigo, em seu afã, exagera. Parece mais um acumulador compulsivo dessas séries do History Channel. Não joga nada fora. Então, tome-lhe rasgação de seda prolixa e melosa dos colunistas da época. Textos comerciais de contra-capa de vinil. Dá-lhe babação rococó. Carradas de irrelevância. E assim se arrastam quase duzentas páginas.

Mas, como eu disse, até chegar ao paraíso. O mundo de Dolores.

Porque é quando Dolores enfim realiza seu sonho de ir à Europa que tudo muda. A excursão à Cortina de Ferro em que ela se meteu, no auge da Guerra Fria, é uma confusão deliciosa e reveladora, ancorada em um texto com mais sustança. A partir daí passamos a ter conteúdo real, fatos pertinentes e riqueza de depoimentos, com polêmicas, ataques e controvérsias.

Na volta ela já é outra mulher, o livro idem. Ganha outro ritmo, a biografada ganha densidade e sua euforia descompensada transborda em melancolia para o leitor. Ela não é aquela, mas se o biógrafo não é conciso sobre quem ela foi, o volume excessivo de relatos, neste instante, inverte o jogo e joga a favor. Dolores é o que ela escreve - como a gente vê em "Por causa de você":

"Ah, você está vendo só / do jeito que eu fiquei e que tudo ficou / uma tristeza tão grande nas coisas mais simples que você tocou / a nossa casa, querido, já estava acostumada esperando você / as flores na janela, sorriam, cantavam / por causa de você / olhe, meu bem, nunca mais / nos deixe por favor / somos a vida e o sonho / nós somos o amor / entre, meu bem, por favor / não deixe o mundo mau lhe levar outra vez / me abrace simplesmente / não fale, não lembre / não chore, meu bem."

De amor em amor, que duravam uma noite, uma semana ou um mês, ela ia construindo seu legado e suas desilusões. A compositora ia ficando cada vez maior que a intérprete (que já era imensa), mas nem todo mundo percebia. Provável que nem ela, que nem se tinha em grande conta. Tic, tac.

O tempo dela era curto. Nosso tempo com ela era curto.

Depois da narrativa de algumas aventuras amorosas, de alguns pratos preparados para as amigas no seu quarto-e-sala de Copacabana, Dolores cansa. "Essa noite eu vou dormir até morrer". Como eu disse acima, ela chegou em casa, exausta de mais uma noite cantando até o amanhecer nas boates do bairro, e se jogou na cama. Foi a última vez. Dormiu pra sempre.

Faour, desta feita com acerto, transcreve a matéria do "Última Hora" do dia 25 de outubro de 1959.

"Adiléia da Rocha Macedo - artisticamente Dolores Duran - tinha 29 anos e era carioca de nascimento, morando atualmente em seu apartamento, na rua Gomes Carneiro, 139, apartamento 303. Residiam em sua companhia sua filha de criação, Maria Fernanda, de um ano e sete meses, e a empregada Rita Ribeiro. Na manhã de sábado, Dolores chegou ao seu apartamento como de hábito às 7h da manhã. Beijou sua filha adotiva e disse à empregada que não a incomodasse, pois estava muito cansada e queria dormir até tarde. Recolheu-se ao quarto e passou o dia todo sem dar sinal de vida. Às 22h, estranhando a demora da patroa, a empregada Rita Ribeiro entrou no quarto para acordá-la (...). Quando colocou a mão no corpo de Dolores, a empregada o sentiu frio e imóvel."

São também emocionantes as páginas que descrevem a comoção dos amigos, muitos, consternados com a partida súbita da menina genial. Doce, simples, com letras que traziam a delicadeza de toda a tristeza do mundo (e também outras cheias de malícia e vivacidade). Assim, de repente, a maior compositora da Música Popular Brasileira virou saudade - como dizia na época "O poema das mãos", cantado por Miltinho.

Vinicius de Moraes, um dos muitos amigos, estava em Montevidéu quando soube. Escreveu para a amiga.

"Deve estar todo mundo aí muito triste, triste como eu: o Tom, que era tão seu amigo, Maysa, que lhe queria tanto... - gente sua, que poderia segurar sua mão, beijar seu rosto, acariciar sua testa na hora extrema. Mas você é uma menina impossível, escolheu de morrer sozinha, no seu pequeno apartamento que conheci." Naquele jeito peculiar que era dele, encerrou: "Que em qualquer cantinho de terra que haja no seu túmulo seja enterrada esta carta de seu amigo Vinicius, que já foi seu vizinho e um dia voltará a sê-lo, aí nessa cidade branca e interminável, onde a sua solidão não mais acabará com você."

"Ai, a solidão vai acabar comigo", cantava ela com sua voz grave, em sua pungente "Solidão".

Antonio Maria, parceiro, amigo, namorado, dedicou uma extensa coluna à amiga que se fora. O texto começa falando da primeira vez em que se viram. Conta: "Nunca a vi que não dissesse estar apaixonada. Não dizia por quem." Fala dos sonhos da compositora. "Pretendia, mas só pretendia, voltar um dia a Paris, ir ficando e, lá, continuar até a morte: 'Nasci para viver aquela vida. É uma vida que eu não sei dizer como é. Mas é aquela vida que eu quero viver."

Confessa seu desconsolo. "E é só, Dolores. Essas palavras. Só. Depois, pouco a pouco, iremos todos esquecê-la. Lá uma vez ou outra, quando cantarem o Castigo, a gente se lembrará."

"Se eu soubesse naquele dia o que sei agora, eu não seria esse ser que chora, eu não teria perdido você."

Maria partirá cinco anos depois, também precocemente, em um mês de outubro. Mas no dia em que ele escrevia a coluna, publicada apenas três dias da partida de Dolores, ele ainda não sabia.

"Estou que não sei mais o valor e a ordem das palavras. Mando-lhe um beijo para enfeitar sua noite. Se for pouco, depois a gente acerta. Devo ter melhor em mim, melhor que isto, para um bilhete de despedidas. Depois, a gente acerta."

Devem ter acertado lá em cima, mas, aqui embaixo, a partir daí, o livro desanda outra vez. A impressão que fica no leitor é que o texto foi escrito em dezenas de circunstâncias diferentes, não seguindo um raciocínio único; como se partes dele tivessem nascido para serem o livro per si, tivessem sido abandonadas e depois recosturadas. Ao fim, certamente notando que eram vários livros descoordenados que deveriam ser um só, o autor não quis, ou não soube, refazer ou jogar nada fora. Assim, o conteúdo, que seria seu trunfo, tornou-se sua maior deficiência.

Perde com isso o leitor atual a oportunidade de, pelo livro, se apaixonar por Dolores, ainda que não falte ternura, ou dedicação, ao biógrafo. O excesso de material coletado por Rodrigo não foi peneirado. Muito joio para pouco trigo.

E, em termos de nutrientes, foi pouco trigo mesmo. Dolores, compositora ímpar, nos deixou somente 35 canções. Uma meia-dúzia delas se tornaram lendárias, obras-primas. Neste livro extenso, detalhista, você pode comparar as letras de cada uma... ops, não pode. Faour publica milhares de dados desimportantes, mas as letras de Dolores estão dispersas pelo livro, que sequer as coteja, nem publica todas. Em um capítulo ou outro aparecem frações desta letras que marcaram a história da MPB. Mas ficam por isso mesmo: frações, picotes, trechinhos. Vá entender.

Para agravar, o livro, além de inchado, é mal distribuído. Tem 557 páginas e a biografada morre na 301. A partir daí, sucedem-se necrológios, sínteses e apêndices (a partir da página 375 o autor dedica dezesseis páginas a uma biografia da filha adotiva de Dolores; duas, três páginas de informação suplementar, vá lá, mas este tanto?). O disparate só ressalta que é um livro feito de cadernos estanques, que se superpõem, e que em sua maioria ficam aquém do seu potencial.

Em suma, Rodrigo Faour fez um trabalho meticuloso de apuração e produz um livro chato. Menção de deslouvor à capa indiscutivelmente horrorosa. Fui procurar o responsável e descobri a assinatura da designer Tita Nigri, que temi fosse minha contraparente, pelo lado dos Nigri. Mas é um nome artístico, ela se chama Christiane Almeida. Não imagino quem terá feito o desfavor à doce e sensual Dolores de escolher a foto que ilustra o (mau) trabalho de capa. 

Só se fosse para deixá-la metida a besta, ilustrando a sua "A banca do distinto".

Não me agrada expressar tão pouca boa-vontade com um trabalho que muito deve ter custado ao autor, certamente bem intencionado e que, provavelmente, gosta tanto de Dolores quanto eu. Mas achei que seria mais generoso para com a memória da maior artista brasileira do século XX não esconder que a cultura do país continua devendo a ela o reconhecimento.

Um país sem memória é um deserto.

Não obstante, noves fora e apesar de todos os pesares - e de toda minha frustração como leitor -, é necessário frisar que, graças a iniciativas como a de Rodrigo Faour, Dolores não está relegada ao esquecimento (ainda que eu veja o copo meio vazio e o autor o enxergue meio cheio). Julgando a artista grandemente homenageada pela posteridade, Faour se esmera em relatar as centenas de gravações que a obra da compositora mereceu - mas, aos meus olhos exigentes, é tudo muito pouco para o destamanho do seu talento. 

Dolores Duran ocupa um espaço tão precioso na música brasileira que, apesar de ter partido cedo, há muito tempo, e ser tão pouco lembrada, sempre tenho a impressão que ela ainda está presente. Como bem diz ela, em sua "Canção da volta":

"Meu lugar é aqui, faz de conta que eu não saí."

Record, 559 páginas

Obs.: Em itálico, trechos das obras "A noite do meu bem", "Por causa de você", "Castigo" e "Canção da volta". Você acha a obra inteira de Dolores Duran na internet.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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