"O consentimento", por Vanessa Springora

quarta-feira, abril 21, 2021 Sidney Puterman


O escritor francês Gabriel Matzneff  é o objeto do livro, que foi tema de ampla reportagem do "Fantástico" desse último domingo. Ele é o tal "escritor consagrado" que teve os abusos expostos, como afirmado na capa da edição em português (a versão francesa, por desnecessário, foi menos sensacionalista). O dito cujo pode ser visto, duplamente, na imagem do post, acima. Tipo antes e depois, com quarenta anos transcorridos entre uma foto e outra.

Até então desconhecido no Brasil, o autor sempre desfrutou de prestígio na França. Polêmico, chegou a ser considerado, nos idos dos anos 70 e 80, o nome mais promissor da (então) nova literatura francesa. Um queridinho dos cadernos de cultura. Seu tema predileto eram as relações amorosas.

No caso, entre ele e algumas menininhas. De idades não ultrapassando os dezesseis anos. 

Soa a pedofilia, né? É, mas nem sempre; nem em todo lugar. Um ensaio publicado por ele em 1974, intitulado "Les moins de seize ans" (Os menores de dezesseis anos), fez dele um autor lido e discutido. A obra, noves fora o lirismo barato, era uma apologia em favor da liberdade sexual de menores. A tese suscitou debates nos jornais e nos círculos intelectuais. Provocou uma morna contestação, com uma absorção maliciosa por parte da elite. O escândalo foi bem digerido e bem capitalizado.

Parênteses para quem só conhece os tempos do politicamente correto. Isso foi há muito tempo. Já era errado, mas um certo tipo de "coisas erradas" era tolerado, principalmente no campo do comportamento. Vivia-se numa época dada ao liberalismo amoroso e à sua exaltação - a sociedade francesa, talvez, mais que outras. Havia uma compulsão pela derrubada de tabus. A liberdade individual, elevada à máxima potência, mais do que permitida, era incensada. Como sói acontecer, o universo que concentrava esta ansiedade social por uma atitude revolucionária era o sexo.

Neste cenário, talvez um tanto permissivo, o auto-denominado sedutor profissional, Gabriel Matzneff, se tornou uma celebridade. Ninguém dava a mínima para o fato dele fazer turismo sexual na Ásia, seviciando meninos de onze anos. Em off, ele considerava os encontros pagos como experiências recíprocas, ainda que fizesse sigilo das viagens hedonistas. Pleno de charme e vazio de pudor, narrava detalhadamente suas conquistas em edições disputadas nas livrarias. Ao lê-las, ninguém se incomodava com a idade das amantes. Digamos assim: Gabriel ostensivamente se gabava de comê-las.

Vanessa S. era uma delas. Como sabemos agora, a menina tinha quatorze anos quando foi desvirginada pelo escritor (a consumação teve algumas particularidades - deixo as minúcias reservadas para quem se aventurar a ler o livro, que é bom e pudico). O insinuante Don Juan tinha então cinquenta anos. Insegura, como a grande maioria das adolescentes nesta idade, Vanessa se apaixonou pela celebridade literária, com foros de garanhão delicado, que a tratava como princesa.

A autora, no fim do livro, contextualiza a época em que tudo se deu. Reproduzo aqui um trecho.

"Por volta dos anos 70, um grande número de jornais e de intelectuais de esquerda tomou publicamente a defesa de adultos acusados de terem relações 'culpadas' com adolescentes. Em 1977, uma carta aberta em favor da descriminalização das relações sexuais entre menores e adultos, intitulada "A respeito de um processo", foi publicada no Le Monde, assinada e apoiada por eminentes intelectuais, psicanalistas e filósofos de renome, escritores no alto de sua glória, a maioria de esquerda. Entre outros, encontramos os nomes de Roland Barthes, Gilles Deleuze, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre... Esse texto se manifesta contra a prisão de três homens que aguardam o processo por terem tido (e fotografado) relações sexuais com menores de 13 e 14 anos."

Um manifesto, assinado pela intelectualidade célebre, a favor da liberdade sexual entre adultos e crianças, não é pouca coisa. Hoje, é de cair o queixo; mas cada tempo com suas idiossincrasias. Resvalar para o moralismo comezinho é fácil. A questão é mais complexa que isso, como as consequências que se estenderam por toda a vida da vítima demonstram. Voltemos a ela.

Após um ano e pouco de relacionamento, basicamente acontecido em um discreto estúdio que o autor alugava no sótão de um prédio antigo, Vanessa S. foi "promovida" a personagem dos livros de Gabriel M. Por este tempo, o caso entre eles já havia perdido parte do élan. Vanessa descobriu que foi traída pela concorrência oferecida por outras adolescentes. Confrontou o escritor, que negou e mentiu. E foi enganada também pela exploração da própria intimidade. Sem que ela soubesse, e naturalmente sem que autorizasse, as páginas do novo livro de Matzneff estavam repletas de descrições da nova ninfeta seduzida - ela. 

Para quem a conhecia e leu o livro, a identidade da menina não tinha nada de secreta, era até mesmo óbvia. Mas a menina propriamente dita veio tardiamente a saber, por outros, do seu novo status de personagem do autor aclamado. Ela tinha sido eternizada pelo escritor como "Vanessa S." Vida afora se sentiria reduzida a uma mera inicial, confinada a uma idade imutável. Pesquei numa entrevista recente que ela deu ao Le Figaro ("Affaire Matzneff", fácil de achar no site do jornalão):

"Cette initiale résume désormais mon identité. J'aurais quatorze ans pour la vie. C'est écrit."

Quatro décadas depois, geral passou a saber. Vanessa S. se chamava Vanessa Springora. Em 2020 se converteu em escritora e lançou o livro em que conta a sua história. De caça, se tornou caçadora. Suas páginas revelam os truques de sedução e dominação que o glamouroso cinquentão Matzneff empregava em meninas de 14 anos. Ela era uma dessas meninas e descreve como tudo se deu.

Uma bomba. Passado quase meio século, a denúncia sobre o velho deflorador de crianças estourou, em um mundo agora longe de ser concessivo para comportamentos do tipo. Uma cultura reformulada, onde pedofilia passou a ser chamada pelo nome. Diante da repaginação do escândalo, a França atual lançou um novo olhar sobre o Gabriel de outrora, hoje um octagenário recluso.

O assunto ganhou as manchetes e influenciou no texto de uma nova lei. Se antes o crime de sedução de menores expirava em dez anos, agora passou a prescrever somente após trinta anos. Como disse Springora aos jornais e na tevê, "uma jovem de 24 anos ainda não é capaz de entender bem a repercussão do que aconteceu em sua vida quando tinha apenas 14".

Embora Matzneff negue que ela fosse tão jovem, em um dos capítulos Vanessa tem a oportunidade de ser enfática quanto ao teor da lei à época. Relata que, quando a Brigada de Proteção aos Menores (um equivalente francês do nosso Juizado da Infância) procurou o autor, baseada em uma denúncia anônima, ela sabia então a ameaça que pesava sobre ele: "A lei fixa a maioridade sexual aos quinze anos. E estou longe de ter completado esta idade."

Em decorrência de toda a repercussão negativa, hoje os livros de Gabriel Matzneff não são mais publicados pelas três editoras que têm o direito da sua obra. Nem o que já tinha sido impresso teve mais saída. Encalharam. As livrarias francesas pararam de vendê-los, os exemplares já não estão disponíveis nas prateleiras. Matzneff foi cancelado. Ao mesmo tempo,  "O consentimento", de Vanessa Springora, é um best-seller exposto em todas as vitrines.

Como já diz o nome do livro, a autora refuta que uma adolescente possa consentir em uma relação sexual com homem maduro. Nesta entrevista ao Le Figaro que citei acima, confessa também que o logro não foi o amor do literato, e sim ter feito dela apenas uma a mais de sua série de conquistas.

"Notre passion extraordinaire aurait été sublime, c'est vrai, si j'avais été celle qui l'avait poussé à enfreindre la loi pour amour, si au lieu de cela, G. n'avait pas rejoué cette histoire cent fois tout au long de sa vie..."

Certamente toda a circunstância, envolta em nuances, suscita questões. Não tenho respostas. 

Por fim, se o pano de fundo da obra de Springora desperta o interesse por este conflito de épocas e atitudes, logo nas primeiras páginas fica patente que o texto vai muito além de um depoimento-denúncia. A autora escreve bem. Na sua curta narrativa, Vanessa conduz o leitor com suavidade pelas ausências da sua infância e do seu primeiro encontro com o escritor. 

Falando da edição, as páginas, a propósito, são poucas, as letras são grandes e o texto é espaçado. A capa é um equívoco. Em uma hora e meia, tempo de ver um filme, o livro é lido. Vanessa sai dele digna. Matzneff sai do tamanho que merece.

Não seria justo deixar passar que, no início dos anos 90, em um programa televisivo em que o autor compareceu para ser celebrado pelos participantes, a romancista canadense Denise Bombardier fez jus ao nome e atacou Matzneff com toda a virulência de que foi capaz, ao vivo e em cores. Disse, com todas as letras, que literatura não era salvo-conduto para ele se jactar de deflorar adolescentes. O autor, cheio de melindres, saiu pela tangente.

(Você encontra um trecho do vídeo em https://www.ina.fr/video/I19358012/polemique-sur-le-comportement-de-gabriel-matzneff-vis-a-vis-des-jeunes-filles-video.html e também um trecho menor no twitter do Ina.)

G. privou V. da inocência da adolescência. V., ao descortinar o passado, privou G. da posteridade.

Verus Editora, 191 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: