"A bailarina da morte", por Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling

quarta-feira, abril 28, 2021 Sidney Puterman


Não é um bom indício quando a titulada "Conclusão" do livro - o capítulo final -, encerrando o assunto abordado nas trezentas e dezenove páginas anteriores, traz mais informação do que a obra propriamente dita.

Pior. Além de não ser um bom indício, conta muito sobre o livro em si. E não é boa coisa.

Este "A bailarina da morte", assinado pelas experientes historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, é, sem dúvida, uma publicação de oportunidade. Aproveitou o timing. Nada a recriminar; a afirmativa não a condena de antemão. Discernir as oportunidades, inclusive as comerciais, é um excelente estímulo para a construção de shoppings e relatos.

O problema desta edição é que ela não foi construída com itens de qualidade. A seleção de matéria-prima (fatos, números, narrativas) foi precária. Com isso, o livro peca pelo excesso de contextualização e pela ausência de conteúdo - que, como é o chamariz e a principal razão da obra, equivale a dizer em português marqueteiro que o livro não "entrega".

O assunto em pauta é trágico: a epidemia de gripe espanhola no Brasil. Tema momentoso, com o Brasil sofrendo sob a pandemia do coronavírus. Como não nos interessar, por esta narrativa que, em outra hora, não diria respeito a ninguém? Lógico que a vontade de entender melhor os fatos presentes nos faz lançar um olhar ao passado. Queremos saber mais. Aos curiosos, não bastam as reportagens de jornais, as sugestões do Google. Então, sequiosos, compramos a edição.

Tiro n'água. Fora o vulgarmente já sabido, no livro não há conteúdo adicional relevante. Nada há nele que ultrapasse a reprodução comezinha dos periódicos da época. São extratos burilados, ilustrados, que poderiam dar o "molho" - mas molho sem nada embaixo é sopa. No texto adquirido à Companhia das Letras (pelo qual paguei R$ 41,93), a informação científica, médica e sanitária é praticamente inexistente. Se resume àquela, oficial, publicada nos jornais.

Fora este copia-e-cola da pesquisa às coleções (disponíveis na Biblioteca Nacional e nos bons arquivos país afora), os relatos de testemunhas oculares da epidemia de 1918 são frustrantemente ralos. Se restringem praticamente aos ansiosos, e assaz divulgados, textos de Pedro Nava ("Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro..."). Todo mundo já passou os olhos neles, são figurinha fácil em qualquer retrospectiva da época.

Não venham me cobrar que é difícil obter dados estatísticos e de saúde pública de um país que, cem anos depois, não consegue sequer testar seus doentes, em meio à maior epidemia da história brasileira. Lógico que é difícil. Por isso os historiadores devem ser reverenciados. Acham o que ninguém acha, vêem o que ninguém vê. Mas, aqui, não foi o caso.

Por isso, retorno à metáfora culinária da sopa. Poderíamos nos referir ao resultado final meio que assim. Um caldeirão de sopa aguada. O caldo nos entope, mas não dá sustança.

Sem informação nova, a estrutura pensada para a edição optou por contar esta história fazendo a "cobertura" da epidemia dividindo seu impacto - e enfrentamento -  pelos estados brasileiros. Escolheu sete capitais, as mais ricas e importantes, descendo do Nordeste ao Sul (a ordem em que o Demerara atracou e foi espalhando o vírus) e depois retornando ao Norte. Uma concepção coerente com a pobreza das fontes. Os jornais da época falavam apenas da sua própria província, e olhe lá.

Vamos à obra, literalmente.

O capítulo sobre a chegada da epidemia ao Brasil, dedicado ao seu aporte no Recife, ocupa vinte páginas, mas oferece pouco material novo. Boa parte dos parágrafos foi preenchida com generalidades, imprecisões e volteios periféricos.

Na encheção técnica de linguiça, com o perdão da avaliação azeda, há alguma história e tintas de erudição (conhecimento e classe para apresentá-lo não faltam às autoras), mas saltar da descrição do coronelismo pernambucano para o desenvolvimento industrial da Bahia é abusar do leitor genuinamente interessado. Eu queria entender a pandemia de 1918-19 para compará-la com o non-sense que vivemos atualmente. Não me interessava - não agora, não neste livro - uma enxurrada de noções superficiais da politicagem nordestina.

E não só: o contexto político de cada um dos estados é oferecido, num estilo de verbete de enciclopédia, na (longa) introdução de cada capítulo. Cada um tem seu retrospecto (carioca, paulista, baiano, pernambucano, gaúcho, mineiro, paraense), com personagens, desimportantes ou não, que viraram nome de rua, e terminam na mesmice: as autoridades ignoraram o perigo, negaram a doença e as cidades não tinham estrutura. O povo foi relapso, morreu à farta e tentou combater a moléstia tomando as cloroquinas da época (inclusive a própria, como denunciam as autoras).

Muito rolando-lero, muito clichê e chistes com o apanhado nos jornais que tiveram suas edições preservadas. Mas não há números, depoimentos, relatos de médicos ou o testemunho de vítimas e familiares. O livro não abre aspas. Esta obra sobre a gripe espanhola é incompleta e se limita a uma grande alegoria sobre as dificuldades políticas e econômicas do Brasil no início de século, que são servidas de forma casual e bem-humorada, como se nos restringíssemos a ser uma grande Sicupira. Não que não sejamos...

Um exemplo do dizer nada que é o texto posso tirar da página 126: "Existem, inclusive, relatos de famílias inteiras que feneceram e de outras cujos membros estavam todos acamados." Sim, este é o ponto: cadê os relatos??? Falar neles e não mostrá-los? Pois é. Temos um livro sem relatos. Não há depoimentos, testemunhos, aspas. Há a ladainha monocórdia que descreve como tudo era precário, como o sistema de saúde era ineficiente, como o país era pobre... bem, isso tudo a gente já sabia.

São centenas de páginas com parágrafos que, ainda que soem coerentes com o que imaginamos tenha sido o caos na saúde pública, são absolutamente vagos, não trazendo substância factual ou material crítico para o leitor: 

" (...) A doença se propagava e não se parecia quase nada com o que habitualmente era considerado uma gripe. A sucessão de tropeços foi inevitável. Farmácias não abriam por falta de funcionários, o número de casos crescia, não havia médicos em quantidade suficiente, os hospitais já estavam sem estrutura para o volume de atendimentos ou internações. Sabia-se pouco sobre a espanhola."

Repare que nada é informado. Quais tropeços? Por que inevitáveis? Quais farmácias não abriram, quantos funcionários faltaram, quais abriram? Quantos eram os casos que evidenciavam ser um volume crescente? Quantos médicos para quantos doentes? Que estrutura tinham os hospitais, qual a variação na quantidade de atendimentos e internações, antes e depois do surto epidêmico? 

Ora, para não dizer nada, não é necessário gastar tantas páginas repetindo generalidades.

Porque a questão que se impõe é que os compradores do livro certamente o fizeram para comparar o efeito das duas pandemias, separadas por um século, sobre um mesmo país. Mas o livro de Schwarcz e Starling não fornece este conteúdo. Quem já era superficialmente informado sobre o que acontecera na pandemia de 1918-19, ou que havia lido uma ou duas matérias sobre o assunto, termina a leitura desta "bailarina" sabendo tão pouco como sabia antes.

Pegando algumas páginas ao acaso, vemos, numa curta sequência, a constância da imprecisão que caracteriza o texto. Esta, longe de ser disfarçada, é reforçada pela impessoalidade da narrativa. As informações não tinham sujeito. 

"Comentava-se que, mal as farmácias abriam, as pessoas corriam para seus balcões pedindo qualquer remédio" (página 284); "Até mesmo instituições de caridade não só omitiram socorro às prostitutas, como trataram de torná-las invisíveis durante a epidemia. Dizem que, com o fim da epidemia, muitas delas abandonaram a profissão" (página 287); "Dizem que a espanhola poderia ajudar a esclarecer o desaparecimento abrupto de algumas etnias indígenas no início do século XX" (página 290); "O enterro confirmou o grande ritual-evento, prestigiado por uma multidão de conterrâneos, que lotavam as ruas da pequena cidade. Dizia-se que, naquele momento, não havia ninguém em casa" (página 301, sobre o enterro do presidente Rodrigues Alves).

Ora, não quero pegar pesado demais, mas o uso recorrente do sujeito indeterminado para eventos que aconteceram há um século soa artificial - a menos que você abra aspas e indique o emissor, o que não se deu aqui. É a própria narradora que, como numa sessão espírita, ouve dizer na esquina. Uma ou outra vez, vá lá. Recurso para dar sentido à oração, ou para cumprir a função de ligação entre uma ideia e outra. Mas se valer do truque a cada três páginas é absolutamente inaceitável.

Assim, de topada em topada, a pretensa narrativa da Espanhola vai ao chão, no palco vazio. Faltaram cenário, músicos e parceiros para o pas-de-deux da bailarina da morte.

Hummm... a propósito, péssimo título. O vírus não dançou como num balé, ele avançou como um tsunami. E a capa consegue ser ainda pior que o título, doze quadrados, com quatro no canto inferior esquerdo, com uma foto forjada, e os outros oito com os letreiros e uma mini-caricatura. Certamente a intenção do designer era emular os azulejos dos hospitais da época. Faltou direção de arte para explicar a ele que a ideia dele não era boa, nem na concepção, nem na execução.

(A pequena foto da capa, como também a foto que utilizo na ilustração do post, presente no livro, suspeito pertencer a alguma sessão fotográfica de cunho promocional. A equipe de médicos é demasiado farta e bem posicionada, ostensivamente interessada e os pacientes parecem mumificados, sem saber como interagir com equipe tão cenograficamente prestativa. Não obstante, a óbvia artificialidade das imagens não transparece para as historiadoras.)

Enfim, como disse, as vinte páginas da conclusão contam mais e melhor do que tudo o que foi dito antes no livro. No capítulo final há números sobre a Espanhola no Brasil - de 50 mil a 300 mil mortos, mas confessando que não têm ideia do número final ("uma variação como essa não é aceitável, e nos fazem falta registros mais aferíveis", reconhecem as autoras) - e o texto admite que não traz informação porque simplesmente não existe informação sobre a epidemia por aqui.

"Não sobrou ninguém para contar história, e por isso os números de doentes e mortos são apenas estimados", reforça a publicação, nas suas últimas páginas. "Não está disponível, também, uma explicação científica confiável acerca da mortalidade elevada da espanhola". Não se sabe quantos foram, nem como foi.

"Como fica fácil perceber, ainda estamos longe de ter qualquer certeza acerca do perfil epidêmico da espanhola de 1918" nos narra esta "bailarina". Pois é. Pena que esta frase, tão reveladora, tenha vindo somente na penúltima página. 

Eu resumo então para você, que me leu até aqui, ou mesmo para aqueles que, sem paciência ou prazer na leitura, saltaram até o último parágrafo. E o faço em meia-dúzia de linhas.

Embora o Brasil já soubesse da peste que assolava a Europa, não foi feito nada para evitar que viajantes contaminados desembarcassem nos portos do país. Em chegando aqui, a Espanhola se disseminou. Nosso sistema de saúde era quase inexistente e não deu conta de atender os doentes. O serviço funerário, idem. Os governantes inicialmente negaram a chegada da doença e depois negaram a sua gravidade. Houve muita controvérsia sobre como agir, não se chegando a conclusão nenhuma. Um dia a peste acabou e a vida voltou ao normal. Ninguém sabe porque a gripe sumiu.

É isso aí. Mais não se sabe, porque não se descobriu. 

A Companhia das Letras saiu na frente para atender um mercado ávido pelo assunto. Deve ter sido um sucesso de vendas, imagino. Tinha tudo para dar certo. As autoras são ótimas, os especialistas que fazem críticas elogiosas na contra-capa são dignos, mas o livro é fraco. A "Espanhola" brasileira permanece uma epidemia desconhecida.

Companhia das Letras, 375 páginas

Obs.: A edição foi assinada em setembro de 2020, quando, com seis meses de pandemia, o Brasil tinha 125.000 vítimas fatais. Oito meses depois, temos três vezes mais. 400.000 mortos. E contando.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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