"Sete anos", por Fernanda Torres

terça-feira, dezembro 24, 2019 Sidney Puterman

Mamãe recortou a dedicatória de Natal escrita pela nora no papel de presente e colou com durex na primeira página do livro, aquela sem nada impresso. Minto, não era um papel de presente, era um santinho natalino. Trazia um ancião com um cajado, ao lado de uma mulher sentada numa pedra, com um bebê nos braços. Imagino que a mulher seja Nossa Senhora, com Jesus no colo, e o ancião fosse José. Que tinha a cara de Jesus, a confiar na ilustração. Sobreposto, em negro sobre a imagem esvanecida, o texto começava com "Que os sinos de Natal...". Na parte superior deste cartão pregado com durex Aninha havia escrito "Marieta". Na parte de baixo, ela assinou "Sidney e família". Olhando assim, parece impessoal demais. Poderia ser para o porteiro. Não parece condizente este cartão, pretensamente de mim, mas na meiga caligrafia da minha mulher, para a pessoa que mais amei no mundo. Não sei se Mamãe sofreu com esta impessoalidade, ou sequer a percebeu ou cogitou. Mães e pais se contentam com migalhas. Olhamos os filhos com o embevecimento aparvalhado de quem vê leões marinhos fazendo piruetas num aquário gigante. Tudo agradecemos, quase tudo perdoamos, relativizamos o que não convém reparar. Filhos não entendem o sentimento dos pais. Pelo menos, não a tempo. Pela data da impressão do livro, deve ter sido meu último presente de Natal para ela. Acho que ela não leu. Herdei o título. Herdar livros é fácil, tenho uma ótima razão para nunca me desfazer deles. São livros. O pior são as caixas e caixas de documentos de Mamãe, boletos, agendas, bilhetes, papeizinhos, que não consigo tocar - com trinta segundos já dano a chorar como se fosse um bezerro desmamado. Estou cheio das caixas dela aqui no meu escritório. Tem grande chance de eu morrer e deixar o serviço pro próximo. Mas a resenha aqui é sobre o livro da Fernanda Torres, o tal que dei de presente para ela no último Natal e onde ela colou a dedicatória com durex, com mais amor na colagem do que eu na letra que não escrevi. Então, o livro é um apanhado de artigos. Publicados entre 2008 e 2014. Políticos, eruditos, pessoais. Tem de um tudo. São bons. Fernanda escreve bem. Discordo de algumas posições políticas dela, o que, aqui, não tem a menor relevância. Mentira. Tem alguma. Li uma pesquisa americana esta semana que fala da convivência entre room-mates. O maior grau de intolerância é justamente o que diz respeito às convicções políticas. Os democratas não toleram os republicanos e vice-versa. Compreensível. Mas acho que eu e Fernanda temos convicções parecidas, só acreditamos em soluções diferentes. Não importa. Difícil engolir as palavras com que enaltece a Dilma, sujeita de quem guardei uma péssima impressão. O PT, em si, ela morde e assopra. Mas não dá pra chegar a uma conclusão sobre as opiniões políticas dela por esse catadão: ralo, no volume, e disperso, no tempo. Dá é pra ver que ela é boa. Ainda sobre política, ela se enganou com o Cabral, que, na verdade, enganou muita gente. Já o texto dela com o Dirceu não me desceu bem, embora deva soar como música para quem se deixa fascinar pelo magnata sedutor. Mas nada supera os ensaios em que ela fala de cinema, teatro (incluindo a zoação do slogan dos Cassetas: "Vá ao teatro mas não me chame"), pinturas, cena cultural. Artista falando de arte é muito bom. Mas não é só comentando o próprio métier que ela manda bem. Fernanda se sai tão bem ou melhor em seus textos mais pessoais, ao falar dos filhos, da mãe, do pai. Ela falando do pai (o dela) dá mais razão ainda para eu falar da mãe (a minha). É gente que a gente ama demais, e quando eles vão embora a gente descobre que ainda amava muito mais do que pensava que amava. E os pais dela? A dupla de pai e mãe que pariu Fernanda é covardia, não tinha como não dar certo. Talentosa, gaiata, zoiuda, a filha da Dona Arlete sempre me chamou a atenção. Fernanda, roliça, estava uma delícia em "A marvada carne". Só não sabia que (cheguei beeem atrasado) Fernanda escrevia bem. Parágrafos curtos, ideias inteligentes e um quê de erudição. No mais, foda-se o esquerdismo. No Brasil, onde a esquerda festiva é um patrimônio, artista não-engajado é que nem churrasco vegetariano. Além de insosso, soa falso.

Companhia das Letras, 186 páginas

P.S.: E a foto? Mamãe de chapéuzinho, short e maiô, toda risonha num orelhão-arara, toda serelepe nalgum fim-de-mundo desse Brasilzão, hospedada em algum albergue da juventude? Nada mais Mamãe.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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