"O Cemitério de Praga", por Umberto Eco

sábado, setembro 14, 2019 Sidney Puterman

Um deboche erudito. Uma farsa brilhante. Umberto Eco faz o que quer com a História e com as palavras. Este é mais um dos seus livros a fazer do passado um parque temático. "O Cemitério de Praga" nos leva a cenários soturnos da Europa do século XIX e seu protagonista Simonini é soberbo, um estelionatário misógino e glutão. Não somente um mestre dos disfarces e um assassino pragmático - mas também um falsário de talento, que teria sido o autor de uma das obras mais polêmicas de todos os tempos (segundo Henri Rollin em 1939, apud Eco, em seu L'Apocalypse de notre temps, "podemos considerá-la a obra mais difundida no mundo depois da Bíblia"). Ao terminar a leitura do livro de Eco, a referida obra poderia ser promovida a personagem central, tal sua importância. Que livro é este? Do que se trata? Se eu fosse falar à vontade da trama, um certo nível de spoiler seria inevitável. Por isso eu não vou falar à vontade, para ninguém precisar largar a leitura do post: não estou aqui para estragar o prazer de ninguém. Além do mais, vou abordar primeiramente a forma e só depois darei uns pitacos no conteúdo - pisando em ovos. O livro de Eco é narrado por Simone Simonini (no dizer do autor, o único personagem relativamente inexistente da obra), que, por sua vez, tem um diário, que é escrito por ele e também pela sua outra personalidade, o abade Della Piccola. É por intermédio do diário que Simonini sabe o que o abade faz, e vice-versa. Em meio aos conflitos europeus do período, personagens falsos e reais vão e vem, fazendo da obra um carrossel de circunstâncias históricas, cuja ordem cronológica - tanto como a disponibilidade do vasto elenco - fica ao sabor da vontade de Eco. Sem um pingo de moral, um Macunaíma oitocentista, o pivô da trama se envolve com Garibaldi, com Alexandre Dumas, com Napoleão III, com os precursores da psicanálise, com os carbonários, com os maçons, com os satanistas, com o candomblé (!), com os antidreyfussarts, com os fourieristas ("socialistas que aspiravam a uma reforma geral do gênero humano, mas não falavam em revolução, e, por isso, eram desprezados tanto pelos comunistas quanto pelos conservadores"), com a espionagem russa, com a contra-espionagem alemã e com todos os espiões da França. Um lauto cartapácio de receitas, indo dos acepipes mais sofisticados a um tutorial de como recuperar carnes avariadas: "Todas as carnes avariadas que os açougueiros das Halles jogavam no lixo, verdes nas partes gordas e pretas nas magras, eram recuperadas ao amanhecer, dava-se nelas uma limpeza, derramava-se em cima punhados de sal e pimenta, macerava-se tudo em vinagre, pendurava-se aquilo por 48 horas ao ar livre, no fundo do pátio, e elas estavam prontas para o freguês. Disenteria garantida, preço acessível." Um almanaque também de explosivos: explodiu-se de um tudo no romance de Eco, com direito a orientação de manual. Também matou-se muito, com desova na cloaca particular de Simonini. Falou-se de corrupção de militares italianos em meio às batalhas (quando um exército se deixou derrotar por ter recebido um farto incentivo financeiro) e também na que grassou durante a abertura do Canal do Panamá (orçado em 600 milhões de francos, quando haviam cavado metade do istmo os gastos já atingiam em 1 bilhão e 400 milhões; do que se deduz que corromper e se deixar corromper não são exclusividade brasileira). Ou mesmo de como controlar uma seita subversiva ("o único modo é assumir seu comando ou, ao menos, ter na folha de pagamento os chefes principais"). Mas, sobretudo, o livro é uma rocambolesca sátira sobre o antissemitismo - e eu aqui assumo pelo viés cômico o que muitos tomariam pelo aspecto trágico. Reproduzo aqui alguns trechos isolados, que dão bem o tom das ideias do protagonista e dos seus confrades: "Quem são os capitalistas? Os judeus, os soberanos do nosso tempo. (...) Quem são os judeus? Todos aqueles que sugam o sangue dos indefesos, do povo." "É uma raça que passa o tempo recordando sua escravidão, e está sempre pronta a submeter-se ao culto do bezerro de ouro." "Os judeus eram inimigos do altar, mas também o eram das plebes, cujo sangue sugavam, e, a depender dos governos, também do trono." Jocosamente, eram culpados não somente por seus defeitos, mas ainda mais por suas virtudes: "Na Rússia, os judeus são muito mais numerosos do que entre nós e, nas aldeias, representam uma ameaça aos camponeses russos, porque sabem ler, escrever e, sobretudo, contar." "Eu o aconselharia a se informar bem sobre a Alliance Israélite Universelle (...) São médicos, jornalistas, juristas, homens de negócio... A nata da sociedade hebraica parisiense (...) se propõe a ajudar, em nome dos direitos humanos, os perseguidos de todos os países e religiões. Até prova em contrário, trata-se de cidadãos integérrimos, mas é difícil infiltrar informantes nossos entre eles porque os judeus se reconhecem entre si farejando-se os traseiros, como os cães." Ou judiciosos disparates: "Os communards haviam fuzilado um arcebispo e, de algum modo, os judeus deviam ter algo a ver com isso. Se eles matavam as crianças, imagine os arcebispos." Não pense de modo algum que são frases descompensadas, só existentes na ficção, ou extratos de alguma imaginária teoria da conspiração. Como exemplo, cito o contemporâneo (e jovem) comandante russo Mikhail Nikolaievich Tukhachevsky, ostensivo nas suas convicções (apud Adam Zamoyski em seu "Varsóvia 1920"): "Os judeus nos trouxeram o cristianismo, e é o que basta para odiá-los. E, de qualquer modo, pertencem a uma raça baixa. (...) O judeu é um cão, um filho da mãe, e espalha suas pulgas pelo mundo. Foi ele, mais do que ninguém, que nos inoculou a praga da civilização, e gostaria de nos transmitir a sua moralidade, a moralidade do dinheiro, do capital (...). Os grandes socialistas são judeus, e a doutrina socialista é um ramo do Cristianismo universal". Mas larguemos o antissemitismo real e voltemos à sua versão deliciosamente romantizada do Cemitério de Praga. Eco prossegue salpicando suas diatribes antijudaicas até chegar, já quase na metade do livro, ao cemitério que intitula a obra, descrito com esplendor: "...suas tumbas, a fim de cobrir talvez 100 mil cadáveres, e as lápides se espetavam quase uma contra a outra, obscurecidas pelas frondes dos sabugueiros e sem nenhum retrato para aprimorá-las, porque os judeus têm terror das imagens. Os ilustradores (...) exageraram ao recriar aquele viveiro de pedras como arbustos de uma charneca, dobrados por todos os ventos, e o espaço lembrava a boca escancarada de uma velha bruxa desdentada. (...) logo me pareceu claro o partido que eu podia tirar de uma tal atmosfera de sabá, se, entre aquelas que pareciam as lajes de um pavimento soerguidas em todos os sentidos por um abalo telúrico, se dispusessem, curvados, encapotados e encapuzados, com suas barbas grisalhas e caprinas, rabinos dedicados a um complô, inclinados também eles como as lápides em que se apoiavam, formando na noite uma floresta de fantasmas crispados. E, no centro, ficava o túmulo do rabi Löw, que no século XVI criara o Golem, um ser monstruoso destinado a executar as vinganças de todos os judeus." O personagem de Umberto sobe alguns degraus o seu projeto contra os semitas após se encontrar com um espião alemão em uma cervejaria de Munique, o qual faz uma longa dissertação sobre a opinião de Lutero: "(...) dizia que os judeus são maus, venenosos e diabólicos até o miolo; foram durante séculos nossa praga e pestilência, e continuavam sendo no tempo dele. Eram, nas palavras de Lutero, serpentes pérfidas, peçonhentas, ásperas e vingativas, assassinos e filhos do demônio, que mordem e lesam em segredo. (...) Convinha incendiar as sinagogas, destruir as casas deles e fechá-los em estábulos com os ciganos (...), confiscar tudo o que possuíam em ouro. (...) A solução final, para Lutero, seria expulsá-los da Alemanha, como cães raivosos." Ainda que eu tenha deliberadamente reunido aqui citações que até dois terços do livro vinham sendo esparsamente distribuídas, elas lentamente vão convergindo, até se constituirem no objeto precípuo da obra. Temo que em algumas passagens do texto tenha ocorrido uma barriga, um excesso virtuoso - a personagem Diana, que desde os primeiros capítulos era obsessão recorrente do narrador ("Quem é Diana?", ele se auto-perguntava), toma um corpulento naco de páginas que, se retirados, não mudariam em nada o curso final, apesar de terem dado azo a alguns dos mais diabolicamente eróticos parágrafos da literatura mundial. Assim, atendendo às demandas de solicitantes diversos, bispos, maçons e charlatães, e de se prestar a todo papel abjeto e lucrativo (percurso em que atraiçoou sem remorsos todos os seus colegas de elenco), Simonini, o grande falsário, se incumbe de (lá vem spoiler!!!!!) criar o instrumento do ataque mortal sofrido pelos judeus nas primeiras duas décadas do século XX: um livro, o tal que no prólogo Rollin tachou de "o mais difundido do mundo depois da Bíblia". Me recuso aqui a fazer mais referências, para não revelar o alçapão camuflado (não é o da cloaca) do romance de Umberto Eco. Como disse lá no preâmbulo, nada mais mal-visto que um estraga-prazeres. E prazer é justamente o que o livro proporciona, com suas lúdicas mudanças de rumo e sua excursão impagável por um mundo em que não estávamos vivos. Não se deixe acorrentar ao título, deixe-o de lado e desfrute das paisagens oferecidas. "As cínicas aventuras do tabelião Simonini e seu alter ego Dalla Piccola, nas terras de Garibaldi e Napoleão III" seriam um bom (mas demasiado longo) título para o texto. Ou, se fosse dar um título mais conciso vertido para o português lisboeta, bem poderia ser "A vingança de Gaviali". Quem? Pois é. Você vai ter que ler até a última página para entender meu chiste, e só entenderá - ainda assim, talvez - se tiver lido as quatrocentas e setenta e oito páginas anteriores. Mas fique tranquilo que, como já disse algumas vezes aqui, são divertidas.

Record, 479 páginas

P.S.: Sim, é isto mesmo que você está pensando. O maluco (eu, no caso) foi ler o livro e se fazer fotografar pela mulher no próprio Cemitério de Praga. Cada doido com suas manias.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

Um comentário:

  1. Esperava mais uma crítica ou uma opinião pessoal sobre o livro. Muitas pessoas entram desacompanhadas nessas leituras e ouvem histórias d um século atrás e q hj são os pilares da nossa sociedade e cultura atual. As vzs pensamos: em qual dessas malas vimos coisas estranhas, e eu vejo em todas elas, existem índicios d coisas erradas em todas as bagagens q vivemos agora, e continuam passando as barreiras sem nenhuma fiscalização expondo todos às suas radiações, os doentes misturados cm os sãos. E tudo por causa da influência, um inimigo q aparentemente n conhece nenhum obstáculo..

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