"O que é fascismo? e outros ensaios", por George Orwell

segunda-feira, novembro 19, 2018 Sidney Puterman

Fascista? Eu? Você? Ninguém? Bem, apenas três semanas depois, esta questão ficou datada. Obsoleta. Ninguém chama mais ninguém de fascista, como se a ameaça suprema do fascismo nunca tivesse existido. Pelo menos, não aqui no Brasil. Até há pouco, ser ou não ser"fascista" era o que determinava quem era ser humano e quem era anti-ser humano. Agora o assunto acabou. Ou seja, não era uma questão política, como se assemelhava tratar. Nem ideológica. Era menor, era somente uma questão eleitoreira. Não falávamos de princípios, falávamos tão somente de conveniências eleitorais. Perda de tempo. Para não dizer que absolutamente ninguém mais fala nisso, o ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot, tuitou esta semana seu entendimento de fascista e citou um livro da Madeleine Albright sobre o tema. Humm. Eu nem achei a autora essa coca-cola toda e ainda implico com alguém que escreve "facista". Um PGR com problemas de alfabetização, que se reúne com advogado das partes no botequim e que cita a secretária de Estado do Bill Clinton acaba ficando demais para mim. Para falar de fascismo, preferi uma rota incontroversa e ir de Orwell. Todo mundo conhece George Orwell. Pelo menos de ler ou, no mínimo, ouvir falar sobre algumas das suas obras mais famosas. O indiano é autor de "1984" e de "Revolução dos bichos". Foi um obstinado defensor da liberdade, sobretudo a de expressão, que definia como "o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir". Em artigo publicado no ano seguinte ao término da Segunda Guerra Mundial, se auto-definiu: "Cada linha de tudo o que eu escrevi a partir de 1936 foi escrita contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático como o entendo." É pouco. Mais do que um escritor comprometido, foi combatente na Espanha, pelo POUM (Partido Operário da Unificação Marxista), contra as forças de Franco, onde deu baixa após tomar um tiro no pescoço na linha de frente. Para escrever sobre os despossuídos, viveu meses como miserável nas maiores capitais europeias, mendigando, dormindo na rua e aceitando os piores serviços (daí surgiu o seu ótimo "Na pior em Paris e em Londres"). Intelectual e jornalista, manteve no londrino Tribune, por meio da sua coluna As I Please (que poderíamos traduzir "Como eu quiser"), uma visão engajada das suas convicções sócio-políticas. A questão do fascismo, que me interessa aqui, foi recorrente nos seus artigos na imprensa inglesa. Por isso, na compilação de ensaios feitas neste livro pelo botafoguense Sergio Augusto (o fato dele ser botafoguense não tem nada a ver, mas eu gosto de citar), o fascismo é tema central, ou periférico, em muitos dos seus textos, sejam artigos políticos ou resenhas de livros. Ora, eu e George temos mais ou menos o mesmo hobby, escrever sobre livros. Ele teve mais experiências de guerra (muitas dele contra nenhuma minha), mais talento e mais leitores, mas, fora isso, fazemos a mesma coisa. Como não gostar do cara? O artigo que dá título ao livro foi publicado em março de 1944, há gloriosos 74 anos e meio. E ele, que lutou contra o fascismo, na época do fascismo, já abre antecipando: "De todas as perguntas não respondidas sobre nossa época, talvez a mais importante seja: 'O que é o fascismo?" Já eu me questiono que, se continuamos a perguntar a mesma coisa três quartos de século depois, algo nisso aí cheira mal. Mas vamos dar a palavra à Orwell: "Não existe quase nenhum grupo de pessoas - certamente não um partido político nem um corpo organizado de nenhum tipo - que não tenha sido denunciado como fascista durante os últimos dez anos." Sim, essa coisa de chamar todo mundo de fascista não é novidade nem no tempo, nem no espaço. É figurinha repetida. E enfadonha, por tola. Orwell relaciona os grupos que costuma ver chamados de fascistas: 1) Conservadores ("todos os conservadores, apaziguadores ou anti-apaziguadores são tidos como subjetivamente pró-fascistas"); 2) Socialistas (diz ele que há quem sustente que "socialismo e fascismo são a mesma coisa"); 3) Comunistas (refere-se a escolas de pensamento que defendem que "todos os fascistas e comunistas visam aproximadamente à mesma coisa"); 4) Trotskistas ("os comunistas acusam os trotskistas de serem um órgão criptofascista sustentado pelos nazistas"); 5) Católicos ("a Igreja Católica é quase universalmente considerada pró-fascista"); 6) Os que resistem à guerra ("pacifistas são acusados de sentimentos pró-fascistas"); 7) Os que apoiam a guerra ("os que resistem à guerra aplicam o termo fascista a qualquer um que queira uma vitória militar - os que apoiaram a Convenção do Povo chegaram perto de proclamar que a vontade de resistir à invasão nazista era um sinal de simpatia pelo fascismo; além disso, toda a esquerda tende a comparar militarismo com fascismo"); 8) Nacionalistas ("o nacionalismo é sempre considerado inerentemente fascista, mas entende-se que isso é aplicável apenas a movimentos nacionais desaprovados por quem o está avaliando"). Ou seja, segundo George Orwell, nos idos de 1944, no continente europeu em guerra contra o nazifascismo, "do modo como é usada, a palavra fascismo é quase desprovida de todo significado". Para ele, a expressão carregava um forte componente emocional. Seu conteúdo era tão ralo, que quase todo conterrâneo seu aceitaria "troglodita" como sinônimo de "fascista" e que a palavra foi degradada ao nível de um palavrão. Não para ele, entretanto. Em um artigo escrito quatro anos antes, "Profecias do fascismo", George traz Marx para o debate: "Às vezes se alega que Marx falhou ao não prever a ascensão do fascismo. Não sei se ele previu ou não, mas seus seguidores falharam ao não perceber perigo algum no fascismo até eles mesmos atingirem o portão do campo de concentração. Um ano ou mais depois que Hitler chegou ao poder, o marxismo oficial ainda proclamava que Hitler não tinha importância e que o fascismo social (isto é, a democracia) é que era o real inimigo." Então, para o socialista Orwell, o comunista Marx aliviava o nazismo e achava que a democracia é que era fascista? Que dureza, ehm? Atribuir a alcunha a outrem é rápido, mas escarafunchar suas raízes requer mais tutano. Me pergunto se não será fascista chamar quem discorda da gente de fascista. Ao menos, parece. Neste debate que reputo artificial, por todo o exposto, pelas razões acima e pelos últimos dois meses do entorno midiático, vou me valer de um outro ensaio do autor, citado pela economista Monica de Bolle em seu delicioso "Como matar a borboleta-azul".  O texto é intitulado "Na frente do nariz" e, nele, a flexibilidade individual perante uma mentira (hoje sob o clichê eufemístico fake news) é a protagonista: "Todos somos capazes de acreditar no que sabemos ser falso, e quando enfim os acontecimentos provam que estávamos errados, reinterpretamos os fatos de modo despudorado para mostrar nossos acertos. Intelectualmente, é possível continuar assim por tempo indefinido; o único problema é que mais cedo ou mais tarde uma crença falsa esbarra na dura realidade." Põe dura nisso. Mas defendo que quebrar a cara é um direito inalienável do ser humano. Bem, já que estamos bem acompanhados, vamos abrir o nosso leque. A saborosa seleção de ensaios de Orwell feita por Sergio Augusto vai muito além do tema fascismo e da política, embora ela esteja sempre presente. O jornalista inglês se aprofunda na crônica de filmes de Charles Chaplin e navega pelo universo literário de James Joyce, T.S. Eliot e W.B.Yeats - indo até, pasme, Mein Kampf, de você sabe quem. Este último foi resenhado em março de 1940, onde Orwell identifica um plano de "esmagar primeiro a Rússia, com intenção explícita de esmagar a Inglaterra em seguida". A ordem, segundo ele, acabou invertida, porque a Rússia foi "mais fácil de subornar, mas que a vez da Rússia chegará quando a Inglaterra estiver fora de cena". Profético. A despeito do pacto russo-alemão, no ano seguinte a vez da Rússia chegou, para surpresa de Stalin. George Orwell analisa as possibilidades de efetivação do programa de Hitler: "O que ele imagina para daqui a cem anos é um estado [territorialmente] contínuo com 250 milhões de alemães com abundante espaço vital (estendendo-se até o Afeganistão ou arredores), um horrível império desmiolado no qual, em essência, nada jamais acontece, exceto o treinamento de jovens para a guerra e a interminável produção de bucha fresca de canhão." Sobremodo delicioso nos depararmos com uma visão irreverente dos fatos extraída no calor dos acontecimentos, em um momento em que tudo que, no futuro, se tornaria História definitiva, ainda estava em curso. Este é o grande barato. Visto à distância, de agora, é tudo uniforme (sem trocadilho), porque hoje o passado é uma verdade monolítica. Por falar na dicotomia passado vs presente, não deixa de ser curiosa a menção feita na resenha do livro The Secret of the League, de Ernest Bramah, escrito em 1907, onde Orwell analisa uma então utópica chegada do partido dos trabalhadores ao governo: "Chega ao poder com uma maioria tão imensa que seria impossível desalojá-lo. No entanto, eles não estabelecem uma economia totalmente socialista. Apenas continuam a operar o capitalismo em seu próprio benefício, elevando todo o tempo os salários e criando um enorme exército de burocratas." O resenhista falava de uma Inglaterra de um século atrás, mas jamais imaginava que um outro partido dos trabalhadores faria algo semelhante no terceiro milênio, em um folclórico país de terceiro mundo. Falando em capitalismo, que algumas vezes é empregado à guisa de fascismo, como um insulto, por quem se arvora no discurso pretensa e ingenuamente ideológico, Orwell cita uma palestra sobre Shakespeare, proferida para uma plateia socialista, que foi interrompida pela pergunta: "Shakespeare era capitalista?" Havemos de convir que a burrice, na sua avidez por rótulos simplistas, é atemporal. Em todos os seus ensaios, não importa o tema, o texto limpo de George é instigante. O impulso é listar suas tantas agudas observações, mas vou me conter e sugerir a você que adquira este simpático compêndio. O leitor inteligente não desperdiçará seu tempo. Por fim, pulando dolorosamente sobre Churchill, Mussolini, Cidade do Sol, revolução russa, Oscar Wilde, Aldous Huxley e tanto, tanto mais, é fascinante ver "O grande ditador" ser avaliado por um contemporâneo, em dezembro de 1940, antes do filme virar um clássico à prova de crítica. Orwell enaltece aquilo que vê como uma manifestação política engajada: "Um poderoso e combativo discurso em prol da democracia, da tolerância e da decência (...), uma espécie de versão do discurso de Gettysburg de Lincoln num inglês de Hollywood, uma das mais fortes peças de propaganda que já ouvi". Mas o filme em si George acha desconexo, ainda que ressalte a capacidade de Chaplin representar "uma espécie de essência concentrada do homem comum, a inerradicável crença na decência que existe no coração das pessoas normais". Interessante definição. Aposto que teria aplicação no entendimento do voto do brasileiro nas eleições presidenciais de 2018.

Companhia das Letras, 158 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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