"The diary of Petr Ginz 1941 - 1942", por Petr Ginz e Chava Pressburguer

quarta-feira, novembro 07, 2018 Sidney Puterman


Caso se tratasse de uma única pessoa morta premeditadamente pelo Estado, por conta da sua religião, bastaria isto para fazer de Hitler e seu reich nazista criminosos. Mas o regime alemão genocida assassinou milhões de inocentes. Crianças, mulheres, idosos e homens inofensivos foram segregados, espoliados e mortos de forma covarde e sistemática. Foram tantos, que se tornaram indistintos, todos pertencentes à mesma massa amorfa de corpos fuzilados e asfixiados. Suas casas foram tomadas, seus bens roubados, seus itens pessoais queimados. Era complementar ao projeto do Grande Crime a supressão total da memória dos assassinados. Por pouco não se deu tudo exatamente desta forma abjeta. Para alívio da civilização, uma reviravolta se deu, a carnificina foi interrompida e o mal absoluto foi abortado. Mesmo assim, as características individuais de milhões de seres humanos foram apagadas da História. Ou quase isso. Vez por outra, emerge dos destroços um relato solitário, uma voz indefesa de criança vinda do passado para denunciar o horror - como já o tinham feito a holandesa Anne Frank e a polonesa Rutka Laskier. O tcheco Petr Ginz veio se juntar a elas. Quando os Estados Unidos lançaram a espaçonave Columbia, em 2003, um dos membros da tripulação, o astronauta israelense Ilan Ramon, filho de uma sobrevivente de Auschwitz, resolveu homenagear seu povo e levar consigo um símbolo da tragédia. Havia visto no Museu do Holocausto, em Jerusalém, um instigante desenho feito 60 anos antes, retratando uma imaginária paisagem lunar, cujo autor era um garoto assassinado pelos nazistas no mesmo campo de concentração de Auschwitz. Por meio do gesto carinhoso do astronauta judeu, a ilustração iria até pertinho da lua - e a singela aventura espacial do desenho se tornaria uma delicada notícia de pé de página nos jornais de Israel. Tocante, mas uma não-notícia. A explosão da Columbia, porém, ao reingressar na atmosfera terrestre, após pouco mais de duas semanas em órbita, trouxe para o noticiário mundial a história dos sete astronautas mortos. Isto incluiu a divulgação da perda da Moon Landscape (acima) e do nome do seu jovem autor, Petr Ginz. Alguém no planeta ouviu este nome e o achou familiar. Algumas semanas depois, o museu foi contatado por um tcheco, que dizia ter comprado uma velha casa em um bairro de Praga e, junto com todas as velharias que estavam guardadas no porão, encontrou alguns cadernos manuscritos assinados pelo mesmo nome que assinara aquele sombrio desenho da lua. O nome era Petr Ginz - e foi assim que os diários ex-perdidos-para-sempre de um menino judeu, registrando a escalada da deportação da população judaica da capital tcheca para os campos de concentração, saíram da obscuridade. E revelaram como uma criança testemunhou os fatos acontecerem ao seu redor, nas ruas, no colégio, na própria casa, e os registrou com a acuidade de um jornalista. As páginas de Petr contam da sua rotina e de como a cidade foi se tornando dia a dia um espaço proibido aos judeus: ruas, quarteirões, transportes públicos, armazéns, lojas, profissões, moradias, pertences, médicos, remédios, a simples leitura de jornais. Com apenas 14 anos, Petr fazia parte da força de trabalho da remoção (perversidade suprema, os judeus eram obrigados a gerir o seu próprio processo de expulsão e aniquilamento). O jovem Ginz foi encarregado de levar a bagagem de muitos parentes para a plataforma de onde partiam os trens rumo aos campos de concentração. Na rígida e bem sucedida metodologia alemã, nem a um guri era permitido carregar malas sem as devidas permissões legais: como era proibido aos judeus irem às ruas antes das 6h, e os trens partiam às 5h30, Petr precisava no dia anterior conseguir um passe que lhe autorizasse a auto-locomoção no horário vedado (ressalte-se que o direito à bagagem era apenas um estratagema do governo nazista para que os condenados não soubessem que o eram, e se dirigissem para a morte cordatamente; a bagagem seria confiscada no embarque pelos SS). Nos seus cadernos, Petr discriminou de forma sucinta sua rotina diária e como o cerco foi se apertando ao redor dos judeus, da sua família e dele próprio. O tom ameno dos seus apontamentos disfarça a tragédia que o cercava, mas também deixa claro o seu profundo grau de entendimento. Seus comentários pontuais sobre o bombardeio aliado e o atentado de maio de 1942, que matou o SS Gruppenführer, não deixam margem à dúvida. Ele foi capaz de descrever com sobriedade até mesmo quando recebeu a notícia de que chegara a sua vez de seguir para um campo de concentração. Sabia também que a expectativa dos pais de que ele voltaria em breve não procedia. Petr seguiu para Terezin, denominada pelos nazistas Theresiensdat, onde ficou preso por dois anos, e de lá foi mandado para a morte em Auschwitz. Theresiensdat era uma exceção entre os campos de concentração. Era a estas instalações que os nazistas recorriam, quando queriam negar a existência dos campos de extermínio. A estrutura do campo tcheco permitia a simulação de que aquele era um espaço de relativa liberdade para os judeus em confinamento. A Cruz Vermelha foi até o campo para checar como os judeus eram tratados e aprovou publicamente as condições. Mas foi uma visita arranjada - não só o campo era uma farsa, como os visitantes eram cúmplices dela. Este selo de aprovação do campo não evitou que 33.000 prisioneiros saíssem mortos de lá. Ou que 88.000 fossem de lá para os campos especializados em extermínio. De todo modo, as condições sui generis da prisão permitiram a Petr escrever e desenhar enquanto esteve preso. Lá ele viveu junto com outros 50 garotos da mesma idade, onde chegaram a editar um jornal, "Vedem" (em tcheco, "venceremos"). Toda a sua produção hoje pertence ao Museu do Holocausto e à sua irmã Chava. Vendo os muitos desenhos deixados pelo jovem Petr, um leitor voraz, é impossível impedir que seu talento nos emocione - ainda mais por sabermos em que condições a sua arte intensa, genuína, floresceu. Dói vermos a beleza dos seus desenhos e termos o conhecimento que logo ele seria assassinado, sem chances, sem culpa. Ginz foi além, tendo escrito oito livros de ficção científica, sob inspiração do seu ídolo Jules Verne, antes mesmo dos 14 anos. Tivesse sobrevivido, teria sido um gênio que iria assombrar a segunda metade do século XX? Estaria entre os grandes? Jamais saberemos, mas é uma hipótese e tanto. Seus traços tinham tanto poder que foram eles que, sessenta anos após seu desaparecimento, resgataram a sua história e a sua curta biografia do limbo. Assassinado covardemente por um regime criminoso quando tinha apenas 16 anos, Petr hoje é um símbolo vivo. Na web é fácil encontrar vídeos inspirados nos seus desenhos e filmes diversos contando a sua história. Lógico que aqui no Brasil ele é totalmente desconhecido. O horizonte de interesse dos nossos conterrâneos é curto. Nosso panorama cultural vem dando preferência nesta década ao sertanejo universitário e às memes de whatsapp. Mas, se você teve interesse na história de Petr Ginz e me leu até aqui, certamente terá prazer em conhecer a obra desse garoto-prodígio que o nazismo assassinou. Mais um deles. Em Vedem (https://www.youtube.com/watch?v=fPxE21mTXQ8) se vê em detalhes a sua produção editorial no gueto. Em The Last Flight of Petr Ginz (https://www.youtube.com/watch?v=_CrEyO_Buro) vemos o presídio e sua belíssima reprodução artística do lugar. Temos a história de Petr e seus companheiros em Terezin, em Petr Ginz and the boys of Vedem. E muitos outros. Retornando aos diários de Petr, não espere encontrá-los em português. Como eu dizia há pouco, nosso interesse local é um pouco mais restrito. Nenhuma editora pátria acreditou que os leitores brasileiros teriam sua atenção despertada para esta história desinteressante. Por isso, o meu exemplar, tradução do tcheco para o inglês, eu encomendei diretamente na Amazon. Tem uma introdução do Jonathan Foer, o prefácio e o posfácio de Chava Pressburger (irmã de Petr, ao lado dele na foto), imagens de família e ilustrações. Ah, a propósito, quando eu falei do triste acidente espacial que, por vias indiretas, permitiu à posteridade resgatar do anonimato a história e a obra do jovem artista Petr Ginz, esqueci de mencionar o dia em que isto aconteceu, 1o de fevereiro. Não sei se vem ao caso, mas Petr Ginz veio ao mundo justamente em um dia 1o de fevereiro. Coincidências.

Grove Press, 176 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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